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A cultura da abundância

Armários de família costumavam ser herdados. Eram parte de um patrimônio físico e emocional inestimável e não havia uma única casa de classe média da Europa que não possuísse um desses grandes móveis de carvalho, trabalhados nas portas, que ao abrir-se exalava outros tempos, outros amores, outros sofrimentos e alegrias. A  moda era uma preocupação supérflua de minorias. A cultura da reposição era o passatempo dos nobres enfadados com o ócio. A abundância também virou aspiração da burguesia, que rivalizava assim com os carcomidos de sangue azul e o mesmo com o trabalhador face ao burguês abonado: o sonho de passear imensos carrinhos na Ikea e aumentar os limites no cartão de crédito.

No século XXI, o valor supremo das sociedades dominantes é quantitativo. Prosperidade é fator da velocidade do sucateamento. E o armário de família foi para o mercado das pulgas ou para o guarda-móvel, substituído pelo closet abarrotado.

O maior problema dos países em crise é o excesso de abundância e a falta de pobres em quantidade suficiente para consumir o descarte dos ricos.

A nossa “vantagem”, da China, da Índia, é ainda termos muitos pobres. Mas nosso azar é que só sabemos curar excesso de abundância com mais abundância.

Entrar em outlet de Miami abarrotado de brasileiros é a visão dantesca de uma catástrofe anunciada: o culto da abundância versão mortos de fome.

Compra sorvete do Saponga que ele é pobre

Somos muito maniqueístas. E infelizmente a única revolução possível se dá pela dialética. Se não tem pobre, não tem rico e se não tem ricos e pobres, não tem progresso. É triste mas é verdade.

Durante quase toda a história da mídia, sensacionalista por força da audiência, o mundo além-túnel, além-rio, além-dignidade, além-respeito, além-cidadania foi tratado de forma dramática. Era apelação em cima de apelação e parecia que nunca estava pior o bastante. Quando o pobre que morria na fila do atendimento médico não levantava as sobrancelhas, “inventava-se” uma grávida estuprada pelo pai, quando a grávida não arrepiava mais, “inventava-se” um traficante cruel, quando o traficante cruel não revoltava mais “inventava-se” uma mãe descabelando-se do filho morto pela guerra das facções e quando a guerra das facções não provocava mais, “inventava-se” um genocídio de inocentes menores.

Mas até a miséria acostuma. E aos poucos uma outra agenda foi substituindo a antiga. Surge a hora do bem, do exemplo, dos símbolos raros, da flor que desabrocha na merda. Nove entre cada dez matérias falam do menino pobre que aprendeu a tocar violino, da mãe que se prostituía e virou empresária, do ex-traficante que estrela nos cinemas, da freira caridosa, do gringo que se hospeda no cortiço, da madame que ensina corte e costura na favela, do empresário que passa o fim de semana batucando no morro, do rappeiro que frequenta o templo do novo-riquismo.

Por um passe de mágica, os ex-fodidos são coqueluche da burguesia, pochetes em todos os eventos sociais, cobertos de glórias e discursos emocionados. Um otimismo histérico toma conta dos corações, uma mão de cal cobre as consciências cansadas, Madonnas caridosas pululam na high society, um amanhã fogoso se descortina e rega-se a esperança renascida com muito dinheiro incentivado e renúncia fiscal.

Está na hora de impor o terror, porque esse bom-mocismo dá preguiça. Daqui a pouco voltamos a vestir o pijama e a brindar a pobreza que nos embriaga.