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A Internet finge

É esse mundo sem fronteiras, em que as distâncias derretem, as geográficas, de língua, de idade, de raça, esse mundo imediato em que as relações se estabelecem sem pudores nem vergonhas, esse mundo sem privacidade nem propriedade, esse mundo sem limites, da consagração, da comunhão, é esse mundo que vivemos.

Nessa sociedade wiki, a informação flui e a dúvida derrete, a estranheza dá lugar à simples diferença, a maioria dá o tom da verdade e a mentira perde as calças, nessa sociedade o conhecimento vence o dogma e o ópio, nessa sociedade que fizemos.

Mas por que, então? Por que as velhas mágoas, as velhas disputas, as velhas identidades mortíferas? Por que branco versus não-branco, rico versus sujo, pobre versus parasita? Porque, fingimos.

Este mundo livre, esta sociedade informada e a Internet, não resolveram o tato, o faro, o químico. Só existe relacionamento entre seres de carne se existe troca de energia, de líquidos, bafo, humores, carícias, afagos, aconchegos e tapas, e beijos.

Sem toque, o preconceito persiste.

Preconceito parte 2

Outro dia me perguntaram o que faz a propaganda brasileira ser diferente, original, e por isso mesmo interessante, atraente, inspiradora em outras culturas. Tive enormes dificuldades de responder, até porque, infelizmente, não acho que a propaganda brasileira tenha tanta personalidade assim.

Mas talvez possamos fazer uma análise um pouco mais futuro do pretérito: “o que faria da propaganda brasileira” ao invés de “o que faz”.

Pois pensamos um pouco na própria formação da cultura nacional. Essa cultura crioula, miscigenada, “maxixada”. Essa cultura da preguiça antropofágica.

Talvez devêssemos, sem nenhuma pretensão, remontar ao final do século XVIII, início do século XIX, aos indícios tão férteis da formação da nossa identidade cultural. Naquela época em que a aristocracia culta debruçou-se sobre a rua, abriu seus salões e, não sem ironias e sarcasmos, recebeu os libertos mestiços para seus saraus dançantes. Quando a intelectualidade européia saia às escondidas dançar maxixe nos bordéis enquanto as jovens prometidas tocavam valsas ligeiras nos seus Pleyel importados.

Foi então que o fenômeno se deu. Foi então que da busca frustrante pelos píncaros do pensamento culto europeu contaminado pela influência contagiante da senzala e dos libertos segregados que nasce esse jeito, essa ginga tão brasileira, essa mistura sincopada, essa inspiração tão extraordinariamente original.

É desse pulso irresistível que surge a nossa ímpar, admirada, comprada, copiada cultura nacional, mais tarde sintetizada pelos modernistas.

E, para ser propositalmente radical, não há absolutamente nada de realmente interessante na produção cultural nacional fora dessa perspectiva. Só pastiches pobres, torpes, datados ou tardios.

Mas parece que, hoje, tangenciamos, nos meios “cultos”, de forma assustadora, uma certa amnésia obtusa que reverencia a produção cultural “estrangeira” (não dizem que até a China é mais legal?).

Parece que o nacionalismo criativo, o patriotismo cultural – palavras propositalmente batidas – não está mais na ordem do dia. Parece que estudamos estrangeirices antes de Machado de Assis ou Guimarães Rosa. Como se estivéssemos padecendo de um neo-clasissismo envergonhado. Cabala antes de Candomblé, Baudrillard antes de Wally Salomão, Phillip Starck antes de Lina Bo Bardi, Nietzche antes de Gilberto Freire, Cirque du Soleil antes da Mangueira, Big Brother antes do auto da compadecida, Friends antes de Grande Família, antes Olivier Messien do que Villa Lobos.

Antes morar na Place des Vosges, my dear, beber vinho chileno, arrotar em Aspen e torcer o nariz para os selvagens que somos.

Ou então que se aplauda o mau-humor nihilista e preconceituoso de Diogo Mainardi antes de Caetano Veloso, que dispensa elogios e cujo currículo não merece tão rasa comparação.

O preconceito está na ordem do dia…

Portanto, a propaganda brasileira (e quem a aprova)… ah sei lá… Deu preguiça.

O preconceito, quem tem culpa?

Conversa na periferia, um coxinha (eu) e dois meninos de 20 anos.

– O que vocês fazem à noite quando chegam em casa e não tem balada?
– Internet né?
– Claro! Sou viciado. Orkut, MSN, bate-papo, baixo música, uns sites aí…

Minhas pernas tremem e para disfarçar minha emoção pergunto se eles têm computador em casa.

– Claro. Não dá para ficar sem.
– É. É o que pingo todo mês em casa. Oitenta reais, o preço da conexão de alta velocidade.

É assim agora. Pobre tem computador, pobre entra na internet, pobre consome e se expressa. Olha o preconceito aí, Fernand! Isso é lá jeito de chamar o jovem de periferia?

Continuo o papo. Queria saber mais. Eu não estava em Calcutá, só no morro, longe do asfalto.

– Como é que a gente se dá bem aqui no baile?
– Ah, tem que tá com as marcas, né?
– É só aparecer com o tênis X ou o celular Y na mão que já vêm as cachorras pra cima de você.

É assim agora. Pobre consome marcas, pobre escolhe as marcas, pobre se monta pra chover cachorra. Olha o preconceito aí, leitor. Cachorra não é o que você está pensando. É o jeito meio sem jeito de falar das garotas.

E assim vai o papo, quase uma iniciação pro coxinha aqui.

Chego em casa e tomo de assalto o computador. Estava precisando desabafar. Escrevo um artigo. Daqueles. Cheio de metáforas, difícil, hermético. Baixou um sentido de urgência urgentíssima.

Eu tinha vontade de dizer “Gente, a gente chegou lá! Eu sabia!”, mas só falei do meu preconceito, do nosso preconceito mediado por pesquisas que nós, os coxinhas, fazemos. Que nós, os do asfalto, interpretamos. E a gente confia. Jogo Corinthians X Palmeiras. Os dois comentam o jogo para um terceiro que não foi. Ué, os dois estavam no mesmo estádio? Viram as mesmas jogadas?

O entusiasmo era tanto que não controlei meu complexo de enciclopedista. Eram os bons selvagens falando de internet, de expressão, de leitura seletiva, de escolha, de opinião. Um preconceito às avessas. Porque é assim. A mídia fala de lá e a gente acha que lá eles assistem. E, lá, a mídia fala, daqui e eles acham que aqui a gente assiste. Uma farsa míope bem orquestrada. Deixa pra lá.

O artigo foi publicado e começo a receber mensagens. Espontâneas, entusiastas, de gente desconhecida. Gente que mora lá, longe do asfalto. Gente da periferia. Olha o preconceito!

Não sei o que fica agora. Não sei o que pensar. Porque não acredito mais nas pesquisas e nem na mídia. Nas pesquisas do asfalto, na mídia do asfalto. Nosso olhar, nossas ferramentas, nossa comunicação é inocentemente preconceituosa.

Só sei dizer que vamos pensar nisso tudo. Vamos pensar nas nossas pesquisas. Vamos pensar na nossa mídia. Só sei dizer, afirmar, peremptoriamente, que, se a sociedade, as empresas, as marcas querem falar com o jovem brasileiro, é melhor pensar de novo na internet. Sério. Ou seja, investindo dinheiro. Bastante e certo.

Senão é morte anunciada. Senão, daqui a pouco, a gente só vai estar falando para os velhos achando que estamos atingindo os jovens. “Ué, as pesquisas dizem! Ué? O que está acontecendo?”