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Cannes faz-de-contas

Fui ao Palácio de Versalhes com meu sobrinho, na época com 8 anos. Ao final do passeio, com um ar aborrecido, Gabriel achou o palácio pequeno. “Ué, ele não era o sol?”

O Taj Mahal é mirrado, a capela Sistina parece uma HQ, Paris é uma aldeia provinciana.

É de bom tom voltar do festival de Cannes blasé: “não vi nada que já não tivesse visto antes” ou “nossa, todos aqueles publicitários de bermuda jeans, que brega!”.

É também legal dizer que a qualidade criativa do festival é duvidosa, que passamos vergonha, que é mais do mesmo, que já não é um festival de criação mas uma feira de negócios, que o Carlton é careta e que os restaurantes são caros e vagabundos.

Mas no caso do festival de Cannes, o ar blasé não é só um disfarce cool.

Existem evidências demais do que o Festival de Cannes não é.  Não avalia a melhor criação, nem a melhor agência, não sedia as melhores palestras nem as melhores reuniões nem as melhores festas.  Até porque, tudo que rola lá, rola on-line e on-time sem torrar em euros.

Mas todo mundo emenda o feriadão de Cannes porque continua sendo o maior leilão de head-hunting da publicidade. O festival é um monstruoso circo montado para negociar salários, fees, honorários, in loco ou a distância, na hora ou mais tarde.

Um faz de conta que as agências financiam para roubar ou perder os melhores, ou os melhores faz-de-conta.

Povo é nossa matéria-prima

A boa moral católica não aprecia muita transparência de propósitos, e quando uma linguagem serve a um interesse sem subterfúgios é feio. Assim, a propaganda é, das linguagens de comunicação, a menos “nobre”. Sua franqueza (“é pra vender mesmo, tá?”) não lhe permite comparar-se com outras de mais elevados (e sorrateiros) interesses – a linguagem artística e a jornalística, por exemplo. Mas vamos cometer o pecado da comparação.

Por linguagem, entenderemos aqui o elo entre uma ideia e um público receptor. A linguagem é aquilo que usamos para codificar, traduzir e transmitir. É o que dá sentido ou compreensão à mensagem.

Ao separar os três tipos de linguagens – artística, jornalística e publicitária –, façamos um esforço teórico para evitar as intersecções mágicas. Um artista pode expressar-se com uma linguagem publicitária (Nelson Leirner?), um publicitário, com uma artística (Paulo Leminski?), um jornalista, com uma artística (Rubem Braga?), ou vice-versa para não ser xingado. Mas, para qualificar com precisão as diferentes linguagens, tentaremos entender as motivações (não as inspirações)  autorais por trás de cada linguagem.

Será que dá?

Um artista tem compromisso com a sua expressão individual. É garimpando na profundeza da sua alma que ele desenvolve a sua ideia. Essa ideia tem e sempre terá um público incerto, não premeditado, que irá na obra reconhecer-se, emocionar-se, inspirar-se. A motivação do artista é, portanto, individual, autocentrada, egoísta. É por isso que tantos foram e são incompreendidos ou amaldiçoados.

O compromisso do jornalista, por sua vez, é com o relato do fato histórico. É apurando, pesquisando, consultando, ouvindo e relacionando fontes que ele se exprime. O público que ele alcança é definido pelo hábito e também com objetivos de instrumentalização da informação. O jornalista é um observador do real, um retratista da verdade, ou da verdade que ele consegue depreender de sua própria subjetividade. Sua motivação é, portanto, científica. É por isso que muitos são perseguidos ou censurados.

Finalmente, o compromisso do publicitário é precisamente com o público definido como alvo do produto ou marca para o qual ele trabalha. É sensibilizando-se com as aspirações e desejos, hábitos e comportamentos ou níveis de compreensão e preconceitos das pessoas que serão impactadas pela sua mensagem que ele esculpe sua ideia. Um publicitário é um farejador, um animal com enormes orelhas e olhos em todos os membros. Sua motivação é escancarar-se para o povo. É por isso que somos vistos por artistas e jornalistas como prostitutos.

Dar-se conta dessas fundamentais diferenças entre as linguagens separa muito o joio do trigo. E na propaganda, naquilo que fazemos e gostamos de fazer, a gente fica se perguntando por que diabos tem gente que gosta de inverter as motivações.

Tem gente que inventa e acha que a motivação individual – artística – é primordial na propaganda, e dá no que dá: propaganda de museu. Tem gente que inventa e acha que a motivação pode ser factual – jornalística – e que chata que é essa propaganda-conteúdo. Fora a confusão.

Por treino e por talento, o publicitário fala melhor com o povo do que o jornalista e o artista.

Se publicidade é cultura, se grafite é arte, se podemos usar (de novo) a Sarabanda de Handel ou o Adágio de Samuel Barber numa propaganda, se podemos dizer que xixi no banho vai salvar a Mata Atlântica, interessa menos, contanto que o povo (que não é burro nem surdo) ouça.

Esse artigo foi originalmente publicado no Meio & Mensagem de 28/02/2011