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Interatividade é para os brutos que nos tornamos

Quando Constantinopla foi tomada pelo exército otomano, em 1453, os soldados do islã invadiram Santa Sofia e impressionaram-se com as imagens sacras que ornavam a catedral. Chocaram-se também com a ousadia de contrariar a palavra de Maomé que proibira a imagem como representação do divino. O dilema se armara entre a destruição daquelas maravilhas e o respeito à palavra santa. Trataram então de revestir as imagens com suas descrições, num inebriante entrelaçado de frases e palavras.

Não muito longe dali mas séculos depois, quando os colonizadores trouxeram o cinema para a Argélia – cinema propagandístico das glórias do exército – eles convidavam os notáveis das aldeias para a avant-première. Os muçulmanos, naquele tempo, ainda respeitavam a palavra do profeta: era ímpio reproduzir o ser humano. Preocupados com a recepção, os generais colocavam as cadeiras de costas para a tela para receber os convidados. Quando a tela se acendia, um narrador descrevia para a plateia as imagens, mudas ainda, que se sucediam.

Ler parece meio fora de moda. Precisamos de imagens, movimento, som. Carecemos de estímulos sensoriais para despertar. Crescemos as telas, aceleramos a ação, aumentamos o som. Como se a vida moderna, ao invés de agitar nossas sinapses, as calcificasse. O sentir passa a ser fator de volume e intensidade.

É nesse turbilhão que se insere o apelo à interatividade. A nova fronteira do estímulo sensorial são esses simulacros de participação – que ensaiamos no cinema, nos games, nos ARGs – e toda a parafernália tecnológica que não cessam de nos excitar. O sussurro do vento, o rugir do mar, a voz a capela, o canto do realejo não despertam mais.

Minha mãe dizia que, quando tomava o bonde no Rio de Janeiro, adorava concentrar-se na ponta da orelha de algum passageiro à sua frente. Invariavelmente, após alguns instantes, ele virava o rosto e respondia ao chamado. Hoje, entupimos nossos tímpanos com fones de ouvido, penetramos no game, e de todo jeito ausentamo-nos do mundo simulando participação nas narrativas.

Não é saudosismo, é como tem de ser. E se a nova descoberta for a imersão neurológica, que assim seja.

Mas minha sobrinha continua encantada quando lhe conto pela enésima vez a história triste da pequena vendedora de fósforos: “fazia um frio terrível, caía a neve e estava quase escuro, a noite descia: a última noite do ano…”

Histórias interativas: ai que preguiça!

Em Marrakesh tem uma praça mágica. É uma zona gigantesca, cheia de barraqueiros, amestradores de macacos, encantadores de cobras, ambulantes sinistros, fantasmas que perambulam numa densa fumaça de temperos exóticos. E tem contador de histórias. Muitos. Um deles me atraiu. Ele gesticulava, falava pouco, olhava muito. E fiquei ali, muito tempo, paralisado e enfeitiçado sem entender uma única palavra do que o barbudo contava.

Ontem, a noite era fria e silenciosa. Me larguei na frente do computador, como todo dia, e comecei a chafurdar na Internet. Aqui, ali, de todos os lados. Ao compasso dos cliques, a adrenalina subiu, a ansiedade martelando nas meninges. Me deu náuseas e, apesar da atividade frenética do meu cérebro, me senti profundamente desamparado. Larguei o aparato todo e despenquei no sofá. Liguei a TV no primeiro canal que minhas forças me permitiram ligar. E ali fiquei, muito tempo. Deu um calorzinho gostoso.

Uma história exige linearidade, uma cronologia, um começo, um meio, um fim. Uma história precisa de um narrador (ou mais de um) que tece o fio, passo a passo, segura a atenção. Ele é o foco, o centro. Se uma porta se abrir, se pessoas conversarem ao fundo, se o seu vizinho te cutucar ou roncar, a história desmorona como um castelo de areia. Para que a história fisgue, a relação que se estabelece entre o contador e o ouvinte é de atividade-passividade.

Claro que uma história pode ser interativa. Mas uma interatividade “passiva”, não “intrusiva” e quanto menos “colaborativa”, melhor para a história.

Eu preciso de passividade e atividade, atividade e passividade. Preciso ser e estar. Ser ativamente e estar passivamente.

Quando quero ouvir uma história, ainda prefiro um livro onde a página dois vem depois da um, e a três depois da dois. Ou um filme, uma novela, onde o segundo minuto vem depois do primeiro.

Quando quero uma história, eu quero um contador e quero que ele não conte comigo para fazer o seu trabalho.