Existe uma resposta famosa nas redações de jornais quando o editor pauta um assunto sem debater com os jornalistas: “A favor ou contra? Em quantas palavras?”.
Cinismos à parte, qual é o “erro” das plataformas de “curadoria” de conteúdo que automatizam as recomendações? Sou cliente da Amazon há décadas (duas, quase), e até hoje, com toneladas de dados sobre mim, dificilmente acertam. Essas plataformas partem da lógica simplória (ou comercial) de que aquilo que é popular tem mais chances de agradar. Os algoritmos são todos construídos com esse raciocínio. Na verdade, a lógica deles é: o que é popular tem mais chances de vender.
Vejamos com as plataformas de música. Meu caso pode parecer atípico, mas as plataformas puramente comerciais de recomendação de música falham incessantemente quando tentam trabalhar com a música dita “de concerto” ou clássica por exemplo. Há pouco tempo, a Apple anunciou sua grande virada, e quem já testou pode constatar como é ruim. Por quê? Não é só porque a música clássica não se classifica pelos mesmos critérios da música não clássica (uma obra pode ter inúmeras interpretações, formações e versões, tem nomes que se repetem, números de “opus” variados, tem durações extremamente variadas, são divididas em trechos/movimentos com silêncios ou sem silêncios no meio dependendo da versão, etc) mas principalmente porque qualquer escuta artística (inclusive para a música popular, é claro) não reage de forma previsível.
As plataformas comerciais de música baseiam seu modelo de negócio em popularidade, e como a popularidade perpetua a obviedade, o lugar-comum, o que todos gostam, a imprevisibilidade da apreciação ou gosto artístico (insisto, inclusive para a arte popular) resulta em recomendações insatisfatórias ou, no mínimo, decepcionantes.
Outras plataformas, criadas com uma lógica diferente, qualitativa, (Idagio para os amantes da música de concerto por exemplo), acertam mais nas recomendações, porque o gosto se desenvolve mais pela experimentação do que pela repetição. O “algoritmo” dessas empresas, como é o dos programadores de salas de concerto, museus e outras entidades artísticas é mais complexo e sensível do que a simples repetições de padrões de popularidade basais, vide vulgar.
É muito razoável acreditar que existem (ou existirão) Inteligências Artificiais capazes de desenvolver padrões de gosto muito sofisticados. É altamente provável até que esse poder computacional e técnico já esteja à disposição. Mas é pouquíssimo provável que ele seja experimentado porque não teria sentido econômico nem escalabilidade.
Por que a Wikipédia é um dos mais fabulosos conteúdos que a internet nos proporciona? Porque seu modelo de negócio – se modelo de negócio há – não é baseado em popularidade.
Com tanta inteligência concentrada nas plataformas comerciais, seria pretensioso achar que é um erro ou um acaso. Como seria um erro histórico achar que são inocentes as intenções de quem constrói sistemas com esse tipo de filosofia. Desde os primórdios, existia a intenção de ganhar dinheiro, e não a de fazer o certo ou o melhor.
Há dias em que eu tenho muita vontade de ser lobotomizado pelo “mais visto, mais ouvido ou mais falado”, então surfo nessas ondas de piscina quentinha até adormecer. Mas não é todo dia, porque a vida é curta, e só tem uma – como dizia uma propaganda: a minha. Quando quero viver minha própria vida, e não a dos outros, as recomendações falham grosseira e irritantemente. Nesses momentos, procuro quem não coloca a grana acima do gosto e do bom gosto. Nessas horas, vou procurar quem evita encher de programática seus canais, não importa se são plataformas, empresas, influenciadores, pessoas comuns. Porque quem me aconselha, nesse caso, pensa na qualidade, no aprofundamento, no conhecimento de causa. Aí, eu me entrego e surfo em um mar cheio de surpresas, novidades, novas praias.
Por que é legal fazer uma criança comer alcachofra e brócolis? Por que é legal uma criança ouvir Mozart e Miles Davis? Por que uma criança deve ler mais e ver menos plataformas que criam tiques e toques? Por que a gente falha catastroficamente deixando que elas só comam macarrão com manteiga, só ouçam música vulgar e não saiam do scroll nervoso? A gente falha catastroficamente quando acha que o gosto vem do comum, do mediano, do mínimo denominador comum. A gente falha catastroficamente quando a gente educa, vive, ganha dinheiro e vota assim.