All posts by Fernand Alphen

O inimigo das utopias

Já ouviram falar de nutricionista que coloca açúcar escondido nos remédios do paciente para não perder o cliente? Ou do amigo do alcoólatra em abstinência que esconde garrafas de pinga na casa dele caso tenha uma recaída? Ou, ainda, o patrão perverso que deixa dinheiro espalhado pela casa para ver se o funcionário que está passando necessidade é honesto?

Já tentei uma dieta radical e longa de documentários-cabeça, filmes clássicos e cinema independente, e as diligentes plataformas-que-fazem-tudo-para-te-ajudar-na-vida seguem gentilmente me oferecendo, com destaque, conteúdos que eu não quero ver.

Talvez elas saibam mais de meus gostos do que eu mesmo.

Se você zapear com método a oferta de conteúdo nos canais de streaming disponíveis, perceberá que uma grande parte dela é dedicada à exploração de “histórias reais”, geralmente mórbidas; outra, também não desprezível, traz as “hard news”, sempre trágicas; e uma terceira, bem grande, corresponde a “ficções distópicas”, obviamente catastróficas. Sobrou aí um tanto de fantasias infantilizadas, comédias basais e um tico que classificaremos de “outros”, de tão irrelevantes que são em termos de audiência algorítmica.

Se seu dia foi vazio e monótono, é só arrumar um maníaco assassino para você ter a sensação de fazer parte da estirpe bem-pensante da humanidade. Se seu dia foi agitado e estressante, é só arrumar algum gigantão do bem lutando contra outro do mal, para você embriagar sua raiva da luta diária de cada dia. Em ambos os casos, você não mexe o bumbum da poltrona, mas se sente higienizado pela bondade intrínseca de sua passividade. Você se sente recompensado pela compreensão das suas mais profundas fraquezas por esse Deus bondoso do mundo moderno: o Algoritmo.

Quem idealizou as pirâmides tinha um sonho, quem voou pelos ares pela primeira vez e quem defendeu direitos iguais para todos os humanos também. Quem pensa que ainda é possível lutar pela paz, pela justiça climática e pelo direito dos oprimidos também. Quem sai de casa todos os dias e enfrenta o mundo, quem não se deixa abater por um mal-estar, uma dor de cabeça, um “não” na cara, dois “nãos” na cara, mil “nãos” na cara, não se deixa escravizar pelos algoritmos.

Não existe progresso sem utopia.

Não existe utopia com algoritmos.

Não minta para uma criança

A humanidade pode parar uma guerra, pode diminuir a fome, a ganância, a covardia, o egoísmo, pode se desculpar pelos crimes, genocídios e todas as injustiças.

A gente pode escrever a história, debater, interpretar, pode olhar para os fatos, todos os fatos, sem paixão, sem disputas ideológicas.

A gente também pode chamar um gato de gato, um terrorista de terrorista e esperar menos de 57 dias para um organismo internacional que defende os direitos das mulheres denunciar estupro e violência em massa.

A gente pode ir numa conferência do clima com mais propostas do que representantes, a gente pode questionar que ela aconteça em um dos países mais poluidores do mundo e também tentar entender porque a usina de Belo Monte continua operando sem licença ambiental, aqui, debaixo do nosso nariz.

Mas tem uma coisa que a gente não pode fazer. Tem uma coisa que a gente não deve fazer: mentir para as crianças.

Mentir dizendo que estamos preocupados mas está tudo bem, mentir dizendo que a gente está cuidando do futuro delas. Mentir convence a gente que acredita no fim da guerra e que Belo Monte vai fazer as compensações ambientais que se comprometeu a fazer.

Mentir para uma criança é feio.

O mundo deles não vai ser legal.

Ainda q a gente consiga parar as guerras e fazer a ONU Mulheres reconhecer que houve crimes hediondos contra mulheres em 7 de outubro, ainda que a gente consiga sentar pra negociar um cessar fogo na Palestina e na Ucrânia e na Armênia, ainda assim, a gente não vai conseguir evitar que o mundo entre em colapso ambiental se a gente não colocar os principais interessados no futuro, no centro da questão, no centro da mesa, no centro dos debates e das decisões: as crianças.

Esse é a linda briga do ALANA com a UNICEF na COP de Dubai. Veja o filme.

 

A imagem e a verdade

Quando os terroristas do Hamas invadiram o Sul de Israel, muitos deles tinham câmeras ajustadas em seus uniformes. Para quê? Haja visto o horror testemunhado depois, não parece que a motivação tenha sido prevenir “abusos”, como é o caso das câmeras da polícia em algumas cidades do mundo.

Se numa guerra, a primeira vítima é a verdade, nas redes sociais, a primeira vítima é o direito à neutralidade.

Quando uma imagem é postada numa rede social existe uma espécie de ditatura que recusa o direito à neutralidade. Ver é implícita e perniciosamente renunciar ao direito de nem concordar, nem discordar. Isso sem falar de quem vê e espalha, mesmo que seja repudiando. Somos vítimas de uma corrida maluca que nos obriga a ter lado, ter um lado. A ditadura da imagem nos impõe sermos pró um ou pró outro. E ao ser pró um, somos anti outro. E vice-versa. Somos todos antisemitas ou islamofóbicos.

Já se dizia o mesmo da mídia quando as redes sociais nem existiam. O consumo da informação em contínuo também nos fazia correr para o abismo. Mas a mudança, com as redes sociais, é de nota, porque a regra de ouro é performar. Como se performar fosse sinônimo de informar-se. Como se performar fosse sinônimo de analisar. Performar é apenas ser o mais rápido da turma, mesmo que seja com o prejuízo da verdade.

Já estamos em queda livre.

A menos que, a gente siga o conselho do meu amigo Joaquim que, do alto dos seus 8 anos de idade, ficou 3 dias fora das redes e conseguiu dormir melhor.

Você confia em quem vende recomendação?

Existe uma resposta famosa nas redações de jornais quando o editor pauta um assunto sem debater com os jornalistas: “A favor ou contra? Em quantas palavras?”.

Cinismos à parte, qual é o “erro” das plataformas de “curadoria” de conteúdo que automatizam as recomendações? Sou cliente da Amazon há décadas (duas, quase), e até hoje, com toneladas de dados sobre mim, dificilmente acertam. Essas plataformas partem da lógica simplória (ou comercial) de que aquilo que é popular tem mais chances de agradar. Os algoritmos são todos construídos com esse raciocínio. Na verdade, a lógica deles é: o que é popular tem mais chances de vender.

Vejamos com as plataformas de música. Meu caso pode parecer atípico, mas as plataformas puramente comerciais de recomendação de música falham incessantemente quando tentam trabalhar com a música dita “de concerto” ou clássica por exemplo. Há pouco tempo, a Apple anunciou sua grande virada, e quem já testou pode constatar como é ruim. Por quê? Não é só porque a música clássica não se classifica pelos mesmos critérios da música não clássica (uma obra pode ter inúmeras interpretações, formações e versões, tem nomes que se repetem, números de “opus” variados, tem durações extremamente variadas, são divididas em trechos/movimentos com silêncios ou sem silêncios no meio dependendo da versão, etc) mas principalmente porque qualquer escuta artística (inclusive para a música popular, é claro) não reage de forma previsível.

As plataformas comerciais de música baseiam seu modelo de negócio em popularidade, e como a popularidade perpetua a obviedade, o lugar-comum, o que todos gostam, a imprevisibilidade da apreciação ou gosto artístico (insisto, inclusive para a arte popular) resulta em recomendações insatisfatórias ou, no mínimo, decepcionantes.

Outras plataformas, criadas com uma lógica diferente, qualitativa, (Idagio para os amantes da música de concerto por exemplo), acertam mais nas recomendações, porque o gosto se desenvolve mais pela experimentação do que pela repetição. O “algoritmo” dessas empresas, como é o dos programadores de salas de concerto, museus e outras entidades artísticas é mais complexo e sensível do que a simples repetições de padrões de popularidade basais, vide vulgar.

É muito razoável acreditar que existem (ou existirão) Inteligências Artificiais capazes de desenvolver padrões de gosto muito sofisticados. É altamente provável até que esse poder computacional e técnico já esteja à disposição. Mas é pouquíssimo provável que ele seja experimentado porque não teria sentido econômico nem escalabilidade.

Por que a Wikipédia é um dos mais fabulosos conteúdos que a internet nos proporciona? Porque seu modelo de negócio – se modelo de negócio há – não é baseado em popularidade.

Com tanta inteligência concentrada nas plataformas comerciais, seria pretensioso achar que é um erro ou um acaso. Como seria um erro histórico achar que são inocentes as intenções de quem constrói sistemas com esse tipo de filosofia. Desde os primórdios, existia a intenção de ganhar dinheiro, e não a de fazer o certo ou o melhor.

Há dias em que eu tenho muita vontade de ser lobotomizado pelo “mais visto, mais ouvido ou mais falado”, então surfo nessas ondas de piscina quentinha até adormecer. Mas não é todo dia, porque a vida é curta, e só tem uma – como dizia uma propaganda: a minha. Quando quero viver minha própria vida, e não a dos outros, as recomendações falham grosseira e irritantemente. Nesses momentos, procuro quem não coloca a grana acima do gosto e do bom gosto. Nessas horas, vou procurar quem evita encher de programática seus canais, não importa se são plataformas, empresas, influenciadores, pessoas comuns. Porque quem me aconselha, nesse caso, pensa na qualidade, no aprofundamento, no conhecimento de causa. Aí, eu me entrego e surfo em um mar cheio de surpresas, novidades, novas praias.

Por que é legal fazer uma criança comer alcachofra e brócolis? Por que é legal uma criança ouvir Mozart e Miles Davis? Por que uma criança deve ler mais e ver menos plataformas que criam tiques e toques? Por que a gente falha catastroficamente deixando que elas só comam macarrão com manteiga, só ouçam música vulgar e não saiam do scroll nervoso? A gente falha catastroficamente quando acha que o gosto vem do comum, do mediano, do mínimo denominador comum. A gente falha catastroficamente quando a gente educa, vive, ganha dinheiro e vota assim.

As novas skills

Em uma pesquisa rápida (e totalmente não científica) nesta plataforma, percebe-se que uma boa parte dos currículos postados incluem, com destaque, dois tipos de predicados muito valorizados. O primeiro diz respeito ao que chamarei aqui de Person-to-watchismo, e o segundo, apelidarei de Palestrismo.

O Person-to-watchismo compreende aqueles predicados, doravante profissionais, que consistem em anunciar um destaque em perspectiva. É uma espécie de por vir, de promessa, de “honoris-futuri-causi” (em uma livre vulgata do latim) ou, mais precisamente, de qualidade de ser um potencial. Em tempos de redes sociais, é uma distinção que significa, para a pessoa autointitulada, que esta precisa se provar uma “metralhapostadora” de conteúdos autoelogiosos. Para os demais, o Person-to-watchista deve ser seguido e julgado com a mortífera sentença dos analytics de emoticons elogiosos.

Resumidamente, se você é um Person-to-watchista, significa que não chegou lá ainda, que continua na fila do pão. Mas está quase.

Já o Palestrismo quer dizer que você chegou aos píncaros da glória. Que você já é um exemplo a ser seguido, que já pode reivindicar citações e, por que não, como ex-presidentes norte-americanos, uma biblioteca em seu nome. O Palestrista costuma falar na primeira pessoa do presente para narrar sua biografia: “em 1990, eu crio minha primeira start-up”, “em 2000, ganho meu primeiro prêmio”, “em 2010, conquisto meu primeiro milhão de seguidores”. O Palestrista justifica todas as suas opiniões, visões de mundo, valores e conquistas à luz de sua própria trajetória. É porque ele nasceu onde nasceu, comeu o que comeu e sofreu o que sofreu que ele palestra. O seu suor, emocionante e exemplar, é o que lhe dá cartas de nobreza do direito à palavra.

Resumidamente, se você é um Palestrista, significa que o comércio de sua vida tem muito valor, e suas ideias também. Mas menos.

ChatGPT: o plágio está nu

Não vamos desperdiçar nosso espaço explicando o que é ChatGPT: pergunte diretamente a ele. Ele irá se autoexplicar de forma convincente, mas o que provavelmente não dirá é que seu método já estava sendo praticado há muito tempo.

Uma enorme parte de tudo o que se produz de texto na imprensa, nos lançamentos editoriais e, claro, na digisfera parece ter sido feita por uma mentalidade ChatGPT premonitória. Não foi o ChatGPT que inventou a platitude, mas a liberação da palavra nas redes socias distribuiu títulos de influenciador aos mais loquazes. Assim, somos submergidos diariamente por uma massa flácida de mediocridades com ares de sabedoria. Para somar esforços a essa inundação, o escrutínio da opinião alheia e certo moralismo castrador completam o afogamento.

É claro que o poder dessas ferramentas tem mão dupla.

De um lado, seu potencial de fomentar movimentos antidemocráticos e radicais é enorme. Em primeiro lugar, o comportamento dessas “inteligências” é preditivo, e não factual: não dizem a verdade, e, sim, o que queremos escutar. Em segundo, elas aprendem por regularidade (probabilidade) a partir de uma base de dados preestabelecida, cuja fonte é opaca, e não revelada. Assim, é relativamente fácil inundar a “complosfera” de teses falsas a serviço de um ideário qualquer e de maneira convincente. O ChatGPT, por exemplo, pode ser tão útil para esse fim que já há movimentos construindo uma contranarrativa de disfarce, segundo a qual essa tecnologia estaria a serviço da grande imprensa e da academia (os inimigos de sempre) para implantar um comunismo “raiz” nos países ocidentais. Tudo é tão fascinantemente complexo que o Google já planeja lançar uma ferramenta para desindexar de sua busca os conteúdos gerados por essas ferramentas, ao mesmo tempo que existem também IAs criadas para identificar conteúdos gerados por IA (obviamente oferecidas pelos inventores da ferramenta inicial).

De outro lado, as ferramentas de inteligência artificial podem ser uma redenção – especialmente aquelas capazes de estabelecer um diálogo que refina a pergunta.

O que fascina no ChatGPT não são suas proezas criativas. Convenhamos: se ele fosse capaz de alguma criatividade, começaria por se autobatizar com um nome um pouco mais interessante, como a ferramenta de inteligência artificial de imagem chamada Dal-i. O ChatGPT não é um criador, é um maker. Mas também é um dedo-duro: graças a ele, a “plagiosfera” ficou, repentinamente, desmascarada. É como se, da noite para o dia, todos os textos “autorais”, análises “críticas” e artigos “opinativos” que “copy-colam”, com consciência ou não, pudessem ser substituídos, com incremento de qualidade, por uma ferramenta automatizada. O ChatGPT e essa “inteligência” artificial vão substituir muita produção de conteúdo e aposentar um sem-número de produtores!

Ou melhor: essas “inteligências” vão separar o que precisa de cérebro, sensibilidade e estudo (ou o que já foi chamado, um dia, de inteligência) daquilo que precisa só de uma máquina, algoritmos e nuvens de armazenamento. Essas “inteligências” também vão substituir todas as pessoas que as usam hoje, achando que estão sendo espertas ao plagiar dissertações, defesas, ensaios, artigos e trabalhos de escola. Na verdade, essa gente espertalhona já fazia isso antes com um pouco mais de trabalho. Antigamente, copiava-se da enciclopédia ou da Wikipédia. Hoje, é só pedir um PF (plágio feito) ao ChatGPT. É claro que essas novas tecnologias causam um problema temporário e uma confusão passageira. Professores, jornalistas e publicitários do mundo inteiro estão alarmados. Mas se eles forem mesmo professores capazes de cativar alunos, jornalistas que curtem garimpar as fontes, publicitários que saibam surpreender os consumidores, seus empregos estão mais do que garantidos – serão até mais valorizados.

A “inteligência” artificial, o oxímoro mais hype dos últimos anos, é, portanto, um grande passo para a humanidade. Vai revalorizar a criatividade, a verdadeira. Muito mais do que se suspeita ou se previu.

Até o final da década de 1960, a técnica usada para o salto em altura era o método straddle, que substituiu o salto tesoura. Se perguntássemos, na época, a uma ferramenta de “inteligência” artificial hipotética como saltar em altura de forma ideal, nenhuma teria sido capaz de sugerir o salto de costas que Dick Fosbury realizou em 1968, nas Olimpíadas do México. Dick foi medalha de ouro, e seu salto virou a técnica mais usada pelos atletas em todo o mundo. Uma inteligência natural que nenhuma “inteligência” artificial é ainda capaz de criar.

Inteligência artificial mente?

“Ninguém nunca perdeu dinheiro subestimando o gosto do público”, disse Jack Warner, ou Samuel Goldwyn, ou H. L. Mencken, ou o Tio Patinhas.

Perguntei a uma inteligência artificial de quem era a frase, e, cada vez que eu duvidava de uma resposta e sugeria outra, ela gentilmente se desculpava e concordava com minha sugestão.

Ninguém nunca perdeu dinheiro subestimando uma inteligência artificial.

Ou, continuando a paráfrase, ninguém nunca perdeu dinheiro “chutando”. Ou ninguém nunca perdeu dinheiro mentindo. Melhor ainda: ganha-se dinheiro subestimando o público, “chutando” e mentindo – há muito tempo.

Napoleão mentia muito quando propagandeava suas derrotas como vitórias. Ridley Scott também mentiu filmando o bombardeio da pirâmide, pintando uma Josephine muito mais jovem que seu marido ou dizendo que Napoleão só pensava “naquilo”.

Licença política, publicitária, poética ou artística?

Em “O nome da rosa”, de Umberto Eco, Jorge de Burgos e Guilherme de Baskerville debatem sobre o riso. Este pode ser fonte de dúvida e, por isso, deveria ser proibido para o bibliotecário. O riso é o apanágio da racionalidade humana e, por isso, deveria ser encorajado para o aristotélico Baskerville.

E se, em vez do riso, falássemos da mentira – também atributo próprio do ser humano?

Nunca ninguém perdeu dinheiro fazendo rir. E talvez nunca ninguém tenha perdido dinheiro fazendo as pessoas mentirem.

Somos “team Burgos” ou “team Baskerville”, quando uma inteligência artificial mente?

Licença computacional existe?

 

Marca sem propaganda é corpo sem calor

Em Haroun e o mar de histórias, Salman Rushdie conta um mundo em que as histórias acabaram. Todas as histórias viraram fios soltos, à deriva.

Se uma marca é a encarnação de um produto ou de uma empresa, o papel da propaganda é insuflar-lhe vida, é dar-lhe personalidade, movimento e rumo. Uma marca sem propaganda é como um computador sem bateria, um prato sem comida, um corpo sem calor.

Damos o nome genérico de “propaganda” a muita coisa: um logotipo que pula, uma foto de produto, uma frase de efeito, um texto recitado, um ator sorrindo. Tudo é propaganda, mas muito pouco disso sozinho dá personalidade, movimento e rumo a uma marca.

A gente faz a maior confusão quando acha que apenas um formato ou um suporte é suficiente para convencer alguém a aderir a uma marca. Um filme, um depoimento, um product placement ou uma manobra de PR não dão personalidade, movimento e rumo a uma marca – tampouco uma fórmula, um pacote, um algoritmo de plataforma de mídia. Não, não é suficiente.

A gente também confunde tudo quando ainda raciocina como o sobrinho rico de Freud, o Big Brother de 1984, o Mechanical Hound de Fahrenheit 451: como se as pessoas fossem frágeis, manipuláveis e suscetíveis. Repita, insista e persiga; repita, insista e persiga até as pessoas agirem como desalmadas autômatas. Nada disso dá personalidade, movimento e rumo a uma marca – e não deveria ser chamado de propaganda.

Uma marca precisa de história. Nem um logotipo saltador nem um funil aprisionador são suficientes para contar uma.

Comece com uma ideia, desenvolva-a em uma sinopse, construa uma estrutura, escreva um roteiro e dê vida a ele. Não pense no formato nem no suporte. Não pense no que está na moda nem na palestra que viu. Conte uma história, só isso. Depois, se quiser, capriche com logotipos animadinhos, fotos lindas, frases impactantes, textos bem escritos e bons atores, além dos scripts, dos stunts, dos placements, dos influencers, do messy middle… Depois, não antes.

Em Haroun e o mar de histórias, Salman Rushdie conta um mundo em que as histórias acabaram. Todas as histórias viraram fios soltos, à deriva, escuridão, silêncio, logotipos que pulam, fotos, frases, textos recitados, atores perdidos, algoritmos, desalmados algoritmos autômatos. Haroun parte, então, para reatar os fios perdidos desse mundo triste, desse mundo sem história, desse mundo com propagandas de fórmulas prontas e automatismos estéreis, que não deveriam ser chamados de propaganda.

O ardil sinistro nas redes

Em Emílio ou da educação, o filósofo francês Rousseau ensina ao jovem Emílio que falar de si é vulgar. Madame de Sévigné e Whoopi Goldberg também acham. Mas não é isso o que prega o manual do influencer de sucesso em redes sociais.

Do outro lado da cerca, seguidores gostam da falta de vergonha. Que ninguém venha com filosofias, análises e, muito menos, poesia. Quem bebe o sangue dos exibidos se inspira nas narrativas autobiográficas do dia a dia.

O conteúdo-astro das redes, portanto – porque arregimenta seguidores e engajamentos eufóricos –, é a futricagem pessoal temperada de muitas mentiras e fabricações. A vida dos ricos e famosos sempre fascinou; a diferença, agora, é que todo mundo pode parecer rico e famoso: é só escolher o ângulo, ter uma ring light (a partir de R$ 15,00 nos melhores marketplaces) e gostar de pose.

Mas também é possível que isso ocorra por causa de uma interpretação equivocada de “lugar de fala”. Segundo esse entendimento precipitado (“cale-se, esse não é seu lugar de fala!”), só pode falar sobre determinado assunto quem o estiver vivenciando como personagem central no contexto. O perspectivismo, no entanto, nunca pretendeu inibir qualquer fala, mas, sim, ressaltar a importância de sempre identificar de que lugar a pessoa fala e, principalmente, dar voz para quem tem lugares de fala distintos (de diferentes tipos de opressão).

É claro que cada um é livre para lidar com sua própria miséria como quiser. Exibi-la ou escondê-la é uma questão de gosto (ou mau gosto). Nenhum lugar de fala sacraliza o que se fala. Menos nas redes sociais, em que o exibicionismo justifica qualquer bobagem ou desvio (“é minha experiência, então ‘pronto-falei’”).

As redes sociais são um banco de dados fascinante sobre o egoísmo. Rousseau não conheceu esse palanque nem suas versões presenciais, que são nossos eventos, conferências e outros palcos em que o “eu soberano” se manifesta com todas as vergonhas de fora. Na época do filósofo, só havia observação vivida, mas ele já tinha sacado que o individualismo é uma merda.

A merda é quando a experiência individual é instrumentalizada para manipular opiniões. O difícil é quando as visões do mundo, da sociedade e do outro derivam exclusivamente da irradiação mesquinha do umbigo. Esse estratagema, anabolizado pelo palco fácil das redes (e o fomento comercial da influencer society), castra o contraditório. Quando a experiência individual inicia a narrativa, a defesa das causas, por mais nobres e necessárias que sejam, vira um ringue cheio de ódios e ressentimentos, sem complexidade e maniqueísta. Quando o “eu” destrona o lugar de fala do “outro”, por qualquer que seja a deriva identitária, perdemos para sempre a busca pelo bem de todas as pessoas. É pelo próprio bem e pelo bem do seu grupo de iguais que os influenciadores falam, e não pelo bem de todas as pessoas. É assim para qualquer assunto: da moda mais prosaica à defesa de interesses comunitários, da cria de gatos à escolha de candidatos a cargos eletivos.

As redes sociais eram a promessa de um ambiente democrático e livre, bem como de uma aldeia global sem divisões e com espaço para criar relações de intercâmbio socioculturais. Uma promessa de construção de um coletivo humanista que acolheria diferenças para edificar – pela miscigenação pacífica e pelas respeitosas visões de mundo – um futuro mais justo. Mas as redes sociais e suas vis explorações se tornaram o ardil moderno de uma visão de mundo desenterrada dos escombros das correntes totalitárias mais primitivas.

Talvez ainda seja cedo para fazer um balanço – entre ganhos e perdas – da revolução provocada pelas redes, mas os indícios são de mais egoísmo, mais divisão entre perspectivas distintas, mais separação entre mundos diferentes e mais acirramento de irreconciliáveis disputas de pontos de vista. A bagunça é grande e muito perversa (ainda?).

Como dizia o grande poeta martinicano Aimé Césaire, a luta contra o antissemitismo não é a luta dos judeus: é a luta da humanidade inteira. A luta contra o racismo não é a luta dos negros: é a luta dos judeus, dos uigures, dos palestinos, dos mundurucus, dos brancos com ou sem privilégios de classe, de todos os gêneros, de todas as identidades.

Rousseau, autor do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, teria muito a falar sobre o estado atual da sociedade e o sub (ou será supra?) mundo das redes. Seria um crítico lúcido das bolhas identitárias que essas redes cultivaram e ficaria fascinado com o individualismo exponencial da era moderna. E, como em seu tempo, seria perseguido (ou cancelado) por publicar pensamentos livres e sem amarras ideológicas.

As redes sociais assumiram tamanho protagonismo na construção da nossa sociedade, substituindo o debate público pelo debate enclausurado entre membros já convertidos, que é tempo de reagir criticamente. Já é tempo de se perguntar por que pessoas outrora abertas abraçam teses “complotistas” como se fossem dogmas divinos. Já é tempo de se preocupar sobre o modo como estamos preparando filhas e filhos, pois os muros estão cada vez mais altos, e os bunkers virtuais, mais impermeáveis, pouco diversos e tristemente furiosos.

O engajamento tóxico

Se aparecer uma postagem na sua rede social favorita dizendo que as vacinas são eficientes contra determinada doença em 90% dos casos, você acredita tranquilamente. Mas, se meia dúzia de scroll abaixo, outro post afirmar que as vacinas podem causar infertilidade ou impotência, qual será sua reação? (Repare que a segunda postagem é menos exata – e isso não é sem importância.) É quase inevitável que você clique no link, se houver um, e/ou procure mais informações em alguma ferramenta de busca. Até aqui, tudo aparentemente indolor, a não ser pelo fato de que, em algum lugar, esse comportamento está sendo armazenado (ou vigiado). Na verdade, sabendo ou – mais provável – não sabendo, você acaba de acionar uma engrenagem bem pensada.

Acontece que, naquele lugar em que o seu comportamento de clicar ou buscar mais informações sobre a notícia que lhe deixou com curiosidade (preocupação ou pavor), uma máquina vai interpretar que você tem interesse em “vacinas que provocam infertilidade” ou simplesmente “fertilidade ameaçada”. Esse lugar, plataforma ou rede social, vai, portanto, atender a esse interesse e lhe propor, mais vezes, conteúdos relacionados a esses temas por um motivo prosaicamente econômico: a empresa que gerencia tais dados é remunerada por aquilo que o jargão chama de “engajamento”, ou seja, o interesse que provoca uma ação (clicar, comentar, compartilhar). Quanto mais “engajamento”, mais receita publicitária que remunera tanto a plataforma – “mera” intermediária (ou pelo menos, é a argumentação que esta usa para isentar-se de sua responsabilidade jurídica sobre a legalidade do conteúdo) – quanto o produtor do conteúdo (aquela pessoa ou empresa que criou um conteúdo sobre “vacinas com risco de esterilizar”).

Continuando o raciocínio, é muito fácil entender, então, que quanto mais engajamento um conteúdo tiver, mais dinheiro vai receber; quanto mais dinheiro receber, maior será o interesse em criar conteúdos engajadores. E, como os conteúdos mais engajadores são aqueles que tocam nossos medos e culpas, a própria lógica de remuneração das plataformas impulsiona a criação de conteúdos que acionam essa engrenagem. Não é ideológico, é simplesmente econômico.

Tem mais: existe outra lógica por trás desse thriller. Todo conteúdo é sempre cuidadosamente classificado pelos próprios criadores para que as máquinas – animais burros, mas capazes de aprender – possam interpretá-lo. Pois bem, se o conteúdo for bem classificado, por exemplo, na rubrica “infertilidade” ou “impotência”, o engajamento não somente garante mais dinheiro como ainda por cima assegura capacidade preditiva. Em outras palavras, quanto maior o engajamento, mais fácil será antecipar o que as pessoas “querem” ver e, assim, retroalimentar o sistema.

Resumo da ópera: por que existe interesse político em desacreditar a vacina (para ficar apenas nesse exemplo)? Simples: porque isso engaja mais. E, se engaja mais, é oportunismo “ideológico” e, indiretamente, “econômico” criar, divulgar e remunerar conteúdos sobre o tema.

A referência à vacina é ilustrativa (podemos falar de qualquer outro assunto – não necessariamente fake), e, embora seja um caso patente de desinformação, o estrago na opinião de milhões aconteceu. E o estrago na decisão política de muitos, por pouco, não ocorreu.

Posicionamento: por que estamos investindo mal

A coerência e a consistência fazem parte do códex sagrado da boa convivência social. Posicionar-se firme, inabalável, intransigente e com onipresença é a qualidade dos grandes, dos fortes e dos dominantes. A gente passa a vida tentando encontrar modelos arquetípicos, astrológicos, psicológicos ou “coachlógicos” que nos ajudem a nos encaixar, a nos posicionar. A gente molda nossa imagem à semelhança desses rótulos classificatórios. E, assim, evoluímos, fingindo-nos personagens de uma realidade exemplar.

É assim com as marcas também: elas precisam ter um posicionamento e disciplinar, com rigor, seu estrito cumprimento. Dizem por aí que uma marca tem até valores, personalidade e DNA. Deve ter manias também, vícios, pulsões, taras e abissais incoerências.

Gente? Como a gente? Que, certos dias, nem sabe se vai conseguir sair da cama? Que, após os torpores do despertar deixarem de rodopiar, já começa a se embriagar com as vontades, os desejos e as dúvidas?

Como dizia Agnaldo, marca é gente à procura de gente?

Digamos que a gente aceite essa distopia.

Pois bem. O que fazem os publicitários? Encarceram a gente em uma jornada bonitinha, com as regras de um game, limpa como um metaverso, quadrada como o queixo do personagem que pesquisaram que somos. E, então, é só colocar aquela outra gente, as marcas, no caminho dessa gente, a gente. Nesse mundo das planilhas e dos keynotes, essas gentes se entendem.

O problema é que, nessa ficção que é a vida de verdade, nunca acordamos iguais a como estávamos na véspera. Nunca. Nunca somos o personagem da véspera – nem na véspera. Nem sequer sabemos o que somos na véspera de amanhã.

Vamos também aceitar agora que o mundo muda mais do que mudava antes, que as coisas estão aceleradas, que antes era tudo mais parado, estático, sólido e inamovível per saecula seculorum. Vamos aceitar que as esfinges do passado morreram esfinges, e que, hoje, levantamos esfinges e deitamos belas adormecidas. E, entre um momento e outro, é uma corrida maluca, um after-hours, um parcours acidentado. Que um bilhão de coisas – pensamentos e impulsos, desesperos e desejos, conteúdos e propagandas – nos atropelam, em uma multitude de formatos e meios. E, nesse tohu-bohu imprevisível, a gente toma decisões de vida, de morte e de compras.

A gente é diferente a cada minuto que passa. E tudo que passa, passa diferente a cada instante. Como Alice e a Rainha de Copas, que correm sem parar, mas não saem do lugar, já que o mundo também corre sem parar.

Parece que essa ditadura do posicionamento pétreo – que, do alto de seus muitos anos, nos aprisiona – já era.

Por que isso faz sentido? Porque os públicos, há muito, alforriaram-se das jornadas de planilha. Porque os consumos de meios são de lua, anárquicos, imprevisíveis e complexos. E, principalmente, porque não importa mais falar de consumo de meios, mas, sim, de como estes estão sendo consumidos. Porque adianta pouco, cada vez menos, impactar um público que não está prestando atenção.

A atenção de um consumidor não se cativa mais com um posicionamento palha de aço, passe-partout, poção mágica. Isso funciona mal e, principalmente, gasta muito mal.

A atenção se conquista adaptando formato e mensagem à atenção, e não ao impacto. Quem manda é a atenção, e não mais a intenção da marca.

Este é um manifesto pela liberdade de criar “desposicionamentos” móveis, correntes, mutantes, camaleônicos, incoerentes, inconsistentes e livres, como a gente.

Propaganda é para dizer

Graciliano Ramos disse certa vez: “Deve-se escrever da mesma maneira com que as lavadeiras lá de Alagoas fazem em seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.

Este post poderia parar por aqui, e nada do que você ler daqui pra frente se compara ao que já foi dito acima. Assim mesmo deu vontade de parodiar a frase do mestre exatamente naquilo que faço todos os dias: comunicar.

A propaganda – e que o velho Graça me perdoe tamanha “intromissão e ousadia” – não foi feita para “enfeitar, brilhar”. Não foi feita para surfar modismos nem enfeitar estantes. Comunicar não é repetir chavões de encomenda nem aplicar receitas prontas. Também não é parar na primeira ideia, aceitar qualquer prato feito cuspido por uma inteligência qualquer, mesmo natural, mesmo artificial. Colocar à prova, surrar até não ter mais forças. Precisa de capricho. Precisa de disciplina. Suor e sorriso. Tem que torcer, retorcer e contorcer.

Precisa limpar a poluição, a sujeira, a preguiça, a distração, a platitude, o fluxo alienante de informação e distração.

A propaganda precisa vencer a dúvida, a insegurança, a mediocridade. Precisa passar por muitas águas, até “não pingar uma gota só” de besteira e ego.

Quem se mete a fazer propaganda devia fazer a mesma coisa. Excluir a vaidade, o brilho do ouro falso, a tagarelice, o automatismo. Para dizer.

Propaganda: se perguntar muito, nem vem

É antigo – até onde alcança a minha memória – perguntarem se a propaganda ainda é necessária e se é um bom mercado para se investir e trabalhar. O conselho mais adequado deveria, antes de tudo, levar em consideração a situação biográfica e psicológica de quem indaga. Isso evitaria a resposta lugar-comum e a perda de tempo. Tentemos o exercício.

Quando alguém é ex-publicitário, voluntário ou involuntário, a resposta correta é “não”: a propaganda é uma futilidade dispensável e nociva à sociedade. Podemos também tentar um passe-partout como “o mundo mudou” e confirmar que o capitalismo moderno criou ferramentas mais eficientes, baratas e automatizadas para convencer consumidores a comprar produtos e marcas. Podemos também dizer a essas pessoas saudosistas, mesmo as mal-humoradas, que os bons tempos se foram e que é melhor aprofundar-se nos criptometaversos-AI do momento, investir em psicodélicos ou aprender de cor mais uma palestra de alguma Amy Webb. Isso vai ser bom para ex-publicitários e melhor ainda para aqueles felizardos que ainda trabalham com propaganda ou marketing. De um lado, reforço positivo pela decisão de largar o filé, de outro, alívio sem rancor de se livrar do peso dos grandes “heróis” do passado.

Quando a pessoa é aspirante, a melhor resposta também é “não”: a propaganda é uma profissão difícil e que dá pouco dinheiro. E ainda podemos assustá-la dizendo que a propaganda envolve trabalhar mais do que os gurus do mindfulness aconselham e que está ensanduichada entre dois potentados decisórios, os anunciantes e os veículos – portanto, faz mal à vaidade, à beleza e à ambição ter que incorporar ideias fracas ou mecânicas à genialidade criativa. Os coitados que ainda tentam mostrar que boas ideias edificam a existência e que vendem apenas de modo acessório são sobreviventes, lutando com poucas armas contra a brutalidade das ferramentas automatizadas e a visão a curto prazo de quem paga a conta. Melhor não entrarem nesse antro de perversidade, exploração, futilidade e arrogância. Melhor também para o mercado, que tem pouca paciência e espaço para o turismo profissional.

Finalmente, quando a pessoa sofreu alguma desilusão, grande ou pequena, deitada em um divã ou diante do espelho, a melhor resposta é “sim”: a propaganda sempre será uma missão crítica enquanto as marcas existirem no sistema capitalista que conhecemos. E “sim” de novo: os mecanismos automatizados de insistência, perseguição e interrupção – a convencidinha propaganda científica – podem estar cansando a beleza dos consumidores. Além disso, essas práticas, quando concentram todo o investimento, se provaram caras e ineficientes a longo prazo. “Sim”, pois – a menos que a gente volte muitas casas, venda produtos sem o verniz lúdico das marcas e mude para um sistema sem competição e no qual monopólios são a regra – a propaganda, a boa propaganda, é o que faz a diferença quando tudo comunica-se de forma triste, medíocre, vulgar ou simplória. E “sim”, porque é desafiador ser, todos os dias, há décadas, ameaçado por ferramentas que decretam o fim da boa ideia. É divertido ter uma boa ideia que contraria a ameaça. E, obviamente, “sim”, porque desafio e diversão são o que nutre, de energia, realização e dinheiro, a vida que vale a pena ser vivida.

Miséria é quem tem culpa

Às vezes, dá vontade de esquecer as guerras em Gaza e na Ucrânia, as eleições na Argentina e nos Estados Unidos, os rebeldes houthis no Iêmen e o Boko Haram na Nigéria. Às vezes, dá vontade de apagar do feed a banquisa que derrete no Polo Norte e a inutilidade de mais uma COP em Dubai. Dá vontade de esquecer que a usina de Belo Monte está sem licença ambiental há vários anos. Dá vontade de esquecer que centenas de pessoas desmaiaram em um show no Rio e que tem tiroteio da polícia todos os dias no Complexo da Maré.

A convite do AfroReggae, fomos conhecer uma de suas operações no Centro Cultural Waly Salomão, em Vigário Geral, no Rio de Janeiro. E foi redentor, como sempre é. Sem intenção nenhuma de dourar a pílula de nada – nenhuma favela é linda –, por detrás dos nossos medos e preconceitos – medos e preconceitos de elite –, existe vida, negócios, consumo, esperança, criatividade e potência.

E existe o trabalho de instituições comprometidas com a sustentabilidade de sua atuação, formação, geração de renda e empreendedorismo. Não é captação de filantropia ou caridade. Não são, tampouco, organizações com engajamentos ideológicos estéreis que exploram a culpa da burguesia bem-pensante. É criação de progresso para que o dinheiro circule. Ganha-ganha. Sem vergonhazinha do capitalismo.

O AfroReggae tem centros de treinamento de e-gamers, o AfroGames, com mais de 500 alunos, em várias comunidades do Rio de Janeiro. Lá, eles recebem, de modo gratuito, capacitação, oportunidades para criar times e cursos de inglês, além de acompanhamento médico e psicológico. Tudo isso para que a turma se forme e ganhe dinheiro jogando profissionalmente.

É de verdade, é sério, é crível, é sustentável. Ninguém é coitado: ninguém é menos porque é pobre ou preto ou favelado. Tem disciplina, tem trabalho, tem incentivo, mérito e recompensa. Ninguém se encosta, brinca, cochila ou cabula. A turma quer progredir, vencer e se dar bem – na paz, mas com dinheiro no bolso.

Às vezes, dá vontade de esquecer as guerras daqui e de lá longe.

Às vezes, dá vontade de dizer que não deu errado um país que tem um AfroReggae e um Waly Salomão. Deu errado quem chora com as lágrimas dos outros. Quem tem medo com a miséria dos outros. Quem sente culpa com a miséria dos outros.

Rede social: cabeça, coração e tripas

“You have three roles in a war: a victim, a torturer or a bystander.
And all three roles are traps.”
Nadav Lapid

Nadav Lapid, cineasta engajado e autor de Synonyms e Ahed’s knee, em recente entrevista, declarou que não se sentia eticamente capaz de julgar (ou condenar) decisões políticas que não sejam as de seu próprio país. Isso o coloca, portanto – e para quem já viu seus filmes, isso é claro –, em uma posição moralmente segura para criticar, com inequívoca violência, a política de seus dirigentes, suas elites, suas maiorias e suas minorias. Se, no entanto, Lapid se sente no direito de ser duro com seus eleitos, ele também solicita a mesma atitude dos outros lados. Sejamos inclementes conosco para que os outros ajam de igual modo com eles próprios: essa é a lição dos olhos inquietos e tristes do cineasta.

Este post não é sobre a tragédia que está acontecendo no Oriente Médio nem sobre a barbárie terrorista do Hamas nem sobre o drama palestino. É sobre o mundo “cropado” que chega até nós, todos os dias, por meio das redes sociais. Inclusive essa guerra, claro.

Nos dias de hoje, enxergar a palha nos olhos dos nossos irmãos sem ver a trave nos nossos parece ser, infelizmente, o mais banal e inútil dos ensinamentos. O narcisismo exacerbado e a autoestima masturbatória não dão espaço para nenhuma autocrítica.

De outra perspectiva, quem se atreve a emitir qualquer opinião que escape das convenções ou da ditadura da bolha é alvo fácil de um moralismo militante e covarde.

E para fechar as tragédias atuais, a opinião parte à deriva com o fluxo incessante de notícias, imagens e dados falsos, sem contexto ou manipuladores.

O ser humano pode pensar com três diferentes partes do corpo: com o coração, com a cabeça ou com as tripas. As redes sociais são incríveis para a análise e apropriadas para o sentimento, mas imbatíveis para a brutalidade.

Dar opinião é diferente ter opinião

Já reparou que quanto mais tentamos entender um assunto, mais perdidos ficamos? Quanto mais aprofundamos, mais boiamos? Então por isso, melhor desistir de qualquer complexidade e abandonar-se à tentação do scroll histérico, da opinião ejaculada e da postagem precoce?

Se a opinião não tivesse importância, se aquilo que falamos e postamos fosse apenas um reflexo involuntário, como respirar ou coçar, nenhum mal faríamos em distribuir, sem filtro, ideias ao vento. Mas ninguém é uma ilha. Todo mundo é influencer de alguém.

Mas será realmente importante dar opinião? Será que precisamos tomar partido e posição sobre tudo? Por quê? Pra ser o primeiro da classe, da turma, do grupo a vomitar, qual telefone sem fio, uma imprecação categórica? Uma informação que circulou, editada em cada nó de retransmissão, sem fonte, sem contexto? Uma opinião adjetivada, numa língua frágil, imprecisa, mas radical?

A viagem pode ser tão mais gostosa que a chegada. A descoberta é tão mais legal. E tudo bem não chegar ao fundo. Tudo bem perder-se nos meandros infindáveis do pensamento complexo, tudo bem não saber quem tem razão – o que é ter razão? – na guerra da Ucrânia, na guerra da Palestina, na guerra no Cazaquistão no Alto Carabaque.

E principalmente, tudo bem recolher-se para pensar, meditar, rezar ao invés de postar como se faz cocô, opiniões fisiológicas.

O trabalho pode ser bom, mas pode ser excelente.

Existem bons restaurantes, e restaurantes excelentes. Nos bons, o endereço é central e fácil de chegar. Nos excelentes, pouco importa onde fica. Nos bons, a galera é legal, bonita e alegre. Nos excelentes, você encontra pessoas que você nem pensaria em ver. Nos bons, a comida é inventiva, bem feita e farta. Nos excelentes, não tem comida, tem experiência e ela será inesquecível. Nos bons, o serviço é atencioso e sorridente. Nos excelentes, você nem percebe que está sendo servido.

Uma empresa de serviço não se chama serviço à toa: sua missão é servir. Um banco, um comércio, uma academia, um hospital, uma agência de propaganda são empresas de serviço. É óbvio, mas é importante lembrar-se, sempre, se queremos ser bons ou excelentes.

Servir não é um ato vil nem vergonhoso. Servir é retribuir às pessoas e ao mundo o que elas e ele lhes deram. Servir é a palavra que qualifica a palavra trabalho, qualquer trabalho.

Desde a revolução industrial, o trabalho foi associado a uma mercadoria, algo que se vende – ou algo que se explora, dependendo do espectro ideológico.

Podemos ver o trabalho como um cárcere (é uma certa origem etimológica da palavra inclusive), que tortura e espreme nossa energia para que seja usada, sempre mal paga, a um poder ou força que nos oprime. Aqui o trabalho é usado, sem ser servido. É uma visão de mundo e, nela, felizes os libertos que mandam.

Mas também podemos ver o trabalho como um “don de soi” ao mundo (“don” de doação, doação de si em tradução desajeitada). Trabalhar é um ato de generosidade, de justiça, de entrega. Nessa concepção, o trabalho não aprisiona, liberta, não confina, define. O humano que trabalha é agente do mundo, da sociedade, dos seus. Aqui o trabalho é servido, e nunca usado. É outra visão de mundo e, nela, felizes aquelas maiorias que dão antes de de receber.

Na primeira visão, o trabalho só serve para ganhar dinheiro. Na segunda, o trabalho serve (e ganha dinheiro).

Essas concepções opostas, não são conjugáveis. Não é possível conceber o trabalho como mercadoria e como doação. Se o trabalho é cárcere, se servir é mero ato de troca, então seu produto será sempre mediano, correto, passável. Já se o trabalho é dar-se aos outros, então seu produto será sempre cuidado, capricho, inventividade.

O trabalho pode ser bom ou excelente. Servir pode ser bom ou excelente. É uma questão de escolha de vida e de mundo em que queremos viver.

A travessia do deserto

Tive o privilégio de visitar, há duas semanas, uma aldeia do povo Kamaiurá, no Alto Xingu e assistir a um Kwarup, a convite do Cacique Kotok Kamaiurá.

Para boa parte dos brasileiros, a frase acima inspira enigmas exóticos, entusiasmos lisérgicos ou interrogações jocosas. Não é a intenção desse texto desvendar, incentivar ou bater boca. Mas a experiência me fez refletir para além dos clichés circunstanciais e dos frissons indigenistas que percorrem a Sociedade de Privilégios, a minha. Arrependidos da indiferença ancestral, tanto os neófitos quanto os engajados, colocaram a causa dos povos indígenas no centro de seus interesses e debates. E pouco importa se é para turismo de aldeia, experiências mágicas ou fazer um décor levemente étnico em casa, a pauta arrepia muitas conversas.

Mas o que não dá pra negar porque é visível, respirável e triste, quando se faz a travessia terrestre, de Goiânia até Gaúcha do Norte e de Gaúcha do Norte até uma aldeia do Alto Xingu, é que falhamos miseravelmente. Falhamos miseravelmente – ainda que se tenha tentado – para encontrar meios de garantir o futuro da humanidade que não passe pela exploração desalmada dos recursos naturais. Entre Goiânia e Gaúcha (15 horas de estrada), criamos um deserto (e já são tantos outros Brasil afora). Não tem passarinho, não tem inseto, não tem gente. Nos arrabaldes do horizonte bem-pensante da Grande Pinheiros, arrepiada com a causa indígena, tem um deserto, enorme, quente, feio e que, incontrolável, espalha suas ramas.

O que não dá pra negar, porque é visível, respirável e alegre, quando se faz a travessia, é que lá, na aldeia, as cores vibram, a vida é solta e o sorriso orgulhoso. Lá, na aldeia Kamaiurá do Alto Xingu a gente conseguiu – ainda que se tenha tentado impedir – conservar beleza, riqueza e origem. Quanto à bem pensante Grande Pinheiros, ao exibir braceletes de miçangas e tomar florais amazônicos, ela está por fim aderindo a uma onda maior, irreversível, mundial. Pouco importa se é modismo, oportunismo, culpa reprimida ou reflexiva convicção e pouco importa como se manifesta: se para preservar as culturas tradicionais ou encontrar saídas criativas para os desertos que pululam.

O que interessa é que ela existe, é forte, é legítima, é nossa. O que interessa é que tem a força de reverter.

Ainda dá tempo de atravessar o deserto sem morrer de desesperança.

Coitados dos desapaixonados

“A paixão é cega. Por isso que ela funciona.
Senão até ela já tinha desistido!”
Eduardo Lima

Para alguns, a paixão é uma doença; para outros, um maná – mas, qualquer que seja a definição, aquece, “posto que é chama”.

Como seria possível enfrentar o sono; os humores da manhã; as picuinhas domésticas; o trânsito atormentado; os bons-dias; os beijos; os crachás; as senhas que mudam; os elevadores que não chegam; as chamadas com superpopulação; as câmeras fechadas; as caras também fechadas; os quebra-cabeças de reuniões; as conversas – esquecidas, novas, escapulidas, inesperadas –; os pedidos de atenção; o aumento; a ajuda; os nãos, todos os nãos, tantos nãos; os não suaves; os “não foi dessa vez”; os nãos sem razão; os “não, mas tudo bem”; os “não quero”, “não sei”, “não vou”, “não posso”, “não aguento”, “não é isso”, “não é aquilo”, “não, quantas vezes vou ter que dizer que é não”?

Como podemos encarar briefings que mudam na primeira apresentação; briefings que não vêm tão cedo, mas prazos que vêm tão rápido; briefings com interjeições, repetições, hipérboles; briefings que não são brief, e briefings que são brief demais; briefings que precisam de rebriefing e debriefing; briefings com anexos; briefings com briefing no anexo; briefings prato-feito, álbum de figurinha, requeijão, rapadura ou iogurte escondido na última prateleira da geladeira?

Como aguentar pessoas que não acreditam, que choram, que choramingam, que têm taquicardia de humores, pessoas que dizem “sim”, mas é “não” e falam “não”, mas é “sim”, pessoas que esquecem, que entendem antes de perguntar, perguntam antes de pensar, pensam antes de dialogar?

Como lidar com a fragilidade de uma ideia, a insegurança de acalentá-la antes que veja o dia; como acreditar nela depois de passar por mil humores, mil emendas, mil tormentas; como convencer a realizá-la com tantos suores, tantas horas e tantos autores, mentores, conselheiros, gurus e todos os demais olhos – de juízes, censores e outros sabidões?

Como ainda dá pra crer em um negócio que tem concorrentes descendo do telhado, surgindo do chão, atormentando no escuro e nos tribunais da internet; um negócio que vai acabar a cada inovação, a cada nova mídia, método ou ferramenta; um negócio que precisa trazer resultado e poesia, pragmatismo e sonho, que deve ser criativo e sofisticado e inovador e revolucionário e big e wow! E que-que-é-isso-esse-filme-da-nova-kombi e, ao mesmo tempo, ser superparceiro-amigo-compreensível-tolerante-e-esperançoso na mesa de compras?

Se não tiver coração, sangue, nervo e paixão, não dá.

Um bilhão de seguidores

Recreio, escola primária, eu, 6 aninhos.
Multidão em volta de mim.
Todo mundo querendo ser amigo.
Me chamando para o time.
Muitas perguntas.
Adulação.
Eu?
Tímido, enfim redimido.
Peito estufado.

— Sim, brasileiro. Sim, como ele.

Pela primeira vez, orgulho da pátria incógnita, distante, fantasiada.

Que orgulho desse Rei que me coroou!

Um Rei que descobri na véspera, na festa em casa, na noite do domingo, 21 de junho de 1970, Paris, Boulevard Malesherbes: adultos chorando, gritando, dançando; mãe abraçada em uma bandeira; e, acima da TV, ele, gigante-gigantesco, o mais orgulhoso, o mais forte, o mais brasileiro de todos os brasileiros, Pelé.

Pelé me ungiu brasileiro.

Muitas décadas depois, eu, brasileiro-meio-francês-meio-brasileiro, saio de uma reunião profissional e ouço uma voz rouca e gingada. Pergunto ao cliente:

— Marcos, Tonico, essa voz… essa voz é do Pelé?

Era.

Dei uma mão comportada ao Rei. Mas eu queria era beijar-lhe os pés. Dizer-lhe que ele era o meu Brasil. O Brasil criativo. O Brasil sorridente e carinhoso. O Brasil soberano, inclusivo, inteligente, aberto e generoso. O Brasil da gana. Balbuciei um obrigado tímido, todo francesinho envergonhado.

Naquele ano, a F/Nazca Saatchi & Saatchi, onde eu trabalhava, teve a felicidade de criar o site da biografia superlativa do Pelé para o zip.net, que estava lançando um portal de esporte com seu nome (pele.net). Implorei essa honra ao Fabio Fernandes, meu chefe, e Marcos de Moraes, nosso cliente. Justiça feita ao Rei: Leão de Ouro em 2001.

Pelé foi um grande homem, um grande jogador, um grande brasileiro. Foi também o maior de todos os garotos-propaganda, a maior celebridade, o melhor influencer do Brasil de todos os tempos. Se as redes sociais existissem na década de 1970, Pelé teria um bilhão de seguidores, dois bilhões talvez. Seguidores no sentido metafórico da palavra: discípulos do seu talento, imaginação, tenacidade e visão. Discípulos da sua insuperável gana.

Vivemos um tempo em que a fama – e a grana que dela depende – se mede em quantidade, e não em qualidade. Vale mais quem tem mais, e não quem é melhor. Apesar de nos fazerem acreditar que a falaciosa métrica de engajamento dá a verdadeira dimensão qualitativa dos conteúdos, no fundo, lá no fundo, é com a quantidade que nos locupletamos. Quantidade de seguidores, likes, risadinhas, aplausinhos, “emoticonzinhos”, “kkks” e inúmeros outros comentários superlativos. Nesse mundo quase distópico, a fama se alimenta da fama. E o conteúdo, o feito e a ideia – a ideia também – viraram tributários da fama.

— Por que escolheram tal pessoa para ser seu influencer?
— Porque essa pessoa é gigante!
— Ela fez o que para ser gigante?
— Ué, milhões de seguidores, likes e “kkks”.

Ninguém é gigante porque criou o clipe, o fósforo, a palha de aço ou a batata chips. Ninguém é gigante porque é talentoso, criativo e original. É gigante porque conquistou seguidores. A fama se alimenta da fama. A fama não se merece. A fama se cria.

Mas Pelé não tinha seguidores. Tinha discípulos. Lição do Rei: não me sigam pela fama, sigam-me pela gana.

Pelé fez Pepsi, Atari, Bombril – é claro –, VW Gol – é óbvio –, Nokia, Vivo, Emirates, a emocionante homenagem do Itaú e tantas mais propagandas. Algumas campanhas publicitárias inesquecíveis, outras não tão memoráveis. Não era pelas fotos, pela pose. Pelé não era bom ator. Estrelava as propagandas que retratavam espírito, originalidade, vitória e gana.

Pelé, sempre escalado pelo que era, e não pelo que parecia, foi um Rei digno de seu 1 bilhão de discípulos.

Publicado originalmente no Meio e Mensagem de 09/02/2022