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Madeleine Castaing: chique à francesa

Ela ficou conhecida do grande público em 1989, quando posou para seu amigo, o fotógrafo de moda e celebridades François-Marie Banier, em uma foto monumental na entrada de uma exposição no Centro Pompidou em Paris. Ela tinha 95 anos e aparecia despenteada, de camisola, com um sorriso de espanto e um olhar desfocado. Aquela frágil senhora era Madeleine Castaing, possivelmente uma das mais aclamadas referências da decoração de interiores do século vinte.

O fotógrafo estava longe de se importar com a polêmica já que também foi acusado de abuso de inocência com Liliane Bettencourt, uma das maiores fortunas da França. Intrusão infame na intimidade? Interesses sujos? Oportunismo? Sensacionalismo? Madeleine Castaing merece mais do que essa discussão moralista.

Nascida em uma família da pequena burguesia tradicional do Sul da França, Madeleine conheceu, ainda adolescente, seu primeiro marido, o crítico de arte Marcellin Castaing, herdeiro de uma fortuna fabulosa, 20 anos mais velho do que ela. Menor de idade, ela foge, e retorna à família dias depois anunciando o casamento. Uma paixão à primeira vista que vai durar mais de cinquenta anos.

O casal, muito unido, coleciona obsessivamente os maiores artistas da primeira metade do século 20, e em particular o pintor emigrado russo Chaïm Soutine por quem nutre uma amizade cheia de sobressaltos. Eles sustentam o pintor durante muitos anos e compram muitas das suas obras para salvá-las da crítica implacável e destrutiva do próprio artista. A relação triangular do casal Castaing e Soutine é cheia de reviravoltas febris dignas de uma série blockbuster.

Mas o que distinguia Madeleine era a erudição que inspirava suas criações. “Faço casas como outros escrevem poemas”. E não se tratava da pretensão piegas, superficial e afetada que reveste tantos discursos comerciais atuais, em particular nessa atividade.

Madeleine abriu seu antiquário durante a segunda guerra mundial e por décadas foi um grande polo de atração da Rîve Gauche em Paris. Ela filtrava sua clientela e recusava-se a vender ou projetar para aqueles clientes que não demonstrassem algum tipo de sensibilidade artística ou conhecimento das referências que nutriam seu arsenal criativo. Assim, milionários de todos os calibres, origens e repertório imploravam à sua porta. Mas ela era inflexível com o mal gosto do novo-rico ou a ignorância dos poderosos.

Se o leitor tiver a curiosidade de entender o estilo Castaing, comece buscando seu oposto. Por exemplo o apartamento de Donald Trump e potentados brasileiros que nele se inspiram. Ou aquela planta decorada de tantos apartamentos de alto luxo com 8 garagens, adega e deck molhado. Ou exposições de ambientes decorados onde a colcha de renda conversa com a cortina de tule que por sua vez pisca para a cômoda restaurada de um lixão, tudo integrado num ambiente pensado para ficar “combinandinho”.

O estilo Castaing é um luxuriante patchwork de estilos, formas, cores e texturas. É uma fantasia desordenada e vivida. Madeleine criou cores (como o famoso azul Castaing) e mandava fazer infiltrações nos apartamentos vizinhos para que á água que se espalhava pela laje desenhasse arabescos orgânicos e musgos mutantes no teto dos seus clientes. Seus interiores eram, como estalactites, a obra do tempo e da história dos felizes contratantes. Castaing tinha horror do funcional, nojo do desenho em série e culto total ao conforto e à fantasia despretensiosa. A narrativa onírica de seus ambientes era avessa às rígidas escolas de arquitetura de interiores e inimiga dos modismos exibicionistas.

Ao longo de uma vida exuberante, Madeleine, lindíssima na juventude, cultivou uma vaidade iconoclasta. Sempre discretamente elegante, Madame Castaing disfarçava a gastura da idade com desenvoltura: luvas de pelica para as mãos e uma peruca com franja que ela fixava habilmente com um elástico em volta do queixo, o que lhe permitia também um leve repuxo da papada.

Em tempos tão castigados pela padronização do gosto, a vida e obra de Madeleine Castaing são um exemplo. A foto da frágil nonagenária é uma demonstração de força, liberdade e coragem. Vergonha é de quem faz pose e não ousa.

Publicado originalmente no FFW

Kiesler ou Lamarr?

Você está muito provavhedy-lamarrelmente segurando uma caixinha delicada que, além de te fazer conhecer mulheres incríveis aqui no FFW, também ajuda a ser mais pontual nos seus compromissos, a se sentir seguro com seus muitos desconhecidos amigos, não te deixa esquecer um único aniversário nem uma conta para pagar e muito menos a sua mãezinha do coração que adora ouvir o que você fez de manhã, de tarde e de noite, uma vez por dia.

Você deve imaginar que essa coisinha maravilhosa, mais conhecida por celular, sem a qual você não vive foi inventada por um nerd de óculos e espinhas, que desmanchava seus relacionamentos amorosos por total incapacidade de conversar, que não tinha quase nenhum amigo, nem contas para pagar, tinha acessos de introspecção criativa que duravam longos meses sem banho nem barbeiro e ligava para a mãe de manhã, ligava de novo à tarde e mais uma vez à noite e antes de dormir também.

Esse gênio poderia ser austríaco, filho de uma legítima jewish mama, ter feito seu début científico provavelmente para a aviação na segunda guerra mundial, se chamar Hedwig Kiesler e emigrar para os Estados Unidos para fugir da perseguição onde continuou sua obra ao sol da Califórnia.

Poderia, só que esse que queremos homenagear não era um nerd, era uma nerd. Uma nerd que passou a se chamar Hedy Lamarr e foi trabalhar no cinema, do jeito que os estúdios dos anos 40 (e certos presidentes) viam as atrizes: estonteantemente lindas, dóceis e burras. Casada 6 vezes, e viciada em operação plástica, suas interpretações lânguidas e olhares hipnóticos estavam muito longe da imagem que se faz de um gênio tecnológico: estonteantemente feio, chato e inteligente.

Fugindo do primeiro marido austríaco doente de ciúmes com a participação da esposa na primeira cena que explora a sensualidade feminina no cinema (mais inocente que qualquer beijo de shopping-center), levando, é claro, todas as suas joias, Edwig Kiesler, aliás Hedy Lamarr, instalou-se em 1938 em Hollywood onde estrelou, por exemplo, Sansão e Dalila entre muitos outros sucessos. Ela foi considerada por seus milhões de fãs a mulher mais linda do mundo.

Mas pelo jeito, Hedy ficava entediada com o esforço de posar de maravilhosa e, nas horas vagas, voltava a ser Kiesler. E, como todo Kiesler que se preza é cientista, ela inventava, como, por exemplo, o frequency hopping (que idealizou com o compositor George Antheil, autodidata como ela). A invenção que deu origem ao desenvolvimento do celular – coinsinha maravilhosa – e do wifi, tinha como objetivo auxiliar os torpedos teleguiados a passarem desapercebidos dos radares. Ela tinha aprendido muita coisa apenas observando os negócios de seu primeiro marido com o exército nazista. Hedy, pró-americana convicta, ofereceu a invenção à marinha que só iria utilizá-la de fato, anos depois, na crise cubana, quando a patente já tinha vencido.

Nada mal. Mas quer mais? Então dizem que ela também inventou um produto muito parecido com o Sonrisal, muito antes dele aliviar nossos abusos digestivos.

Artigo originalmente publicado no FFW

O chique, o esnobismo e o espírito

Ela morreu encavernada numa favelinha que tinha construído com os restos dos lambris de madeira de sua casa.

Mas a Condessa Greffulhe vestida com as criações de Charles Frédéric Worth, Nina Ricci e Jeanne Lanvin, apoiou e financiou, entre outros, o cientista Édouard Branly, o compositor Gabriel Fauré, o empresário artístico Diaghilev, e inspirou Marcel Proust, o maior escritor francês do século 20 a construir um dos personagens mais chiques e apaixonantes de sua obra colossal, À Procura do Tempo Perdido na Paris da Belle Époque: Madame de Guermantes.

A moda para a condessa era antes um reflexo de seu interesse intelectual e artístico do que de sua extraordinária fortuna.

A Paris da Belle Époque era o canto do cisne de uma elite que valorizava, acima do dinheiro e do nascimento, l’esprit, cuja definição transcende, é claro, o sentido literal de espírito. Ter esprit significa uma combinação de sensibilidade e capacidade de expressão. Uma pessoa d’esprit navega confortavelmente nos mais democráticos ambientes e sabe fazer-se notar, conciliando humildade e originalidade. L’esprit não ostenta nem tampouco recata-se.

O Salon da Condessa (termo que indica, em francês, uma espécie de círculo artístico-social) recebia quem se destacasse e pouco importa se morria de fome como a cientista Marie Curie, não tomava banho, como o compositor Erik Satie, ou tinha preferências sexuais liberais, como o dandy Robert de Montesquiou. Eram as faculdades do espírito e não as físicas ou da fortuna o verdadeiro passaporte para o chique convívio de Madame de Greffulhe.

Porque chique (do alemão Schick) significa capacidade de sedução intelectual, habilidade do espírito. Portanto, ser chique não é desfilar grifes nem malhar o abdômen, não é a mesa posta com porcelana e cristal, não é o guarda-roupa em degradê, não é a boca chupada nem a primeira fila do desfile, não é a instafoto produzida e filtrada. Isso é esnobismo.

Na Inglaterra do século dezenove, quando a burguesia começava a enviar seus filhos aos colégios antes reservados aos bem-nascidos, as nobres crianças, divertidas com os modos exibidos dos seus novos colegas, colocavam placas em seus dormitórios nas quais escreviam Sine Nobile (sem nobreza). Esnobismo é essa necessidade de demonstrar mais beleza, mais riqueza, mais relacionamento, do que se tem. Esnobismo é pose, esnobismo é selfie. Nada a ver com chique que, com o uso, esqueceu-se da origem e virou mais ou menos um esnobismo não pejorativo.

Madame De Greffulhe morreu pobre mas com todos os visons para aquecer seus 92 anos. Em sua residência, em Paris, palco de tantas festas, permaneceram as coleções que jamais quisera vender, apesar da penúria na qual seu marido a deixou quando a preteriu por uma mais jovem, mais simples e mais dócil. Chique na riqueza e na pobreza.

Na cabeceira de sua cama, o maior romance do século, que ela em parte inspirou, nunca tinha sido aberto. Seria esnobe demais envaidecer-se com a homenagem imortal.

Publicado originalmente no FFW

O criador e a crítica

Ulzyvan von Zuberovsky nasceu em Garça. Sua mãe era a rainha do chuleado, seu pai era diretor do Banco do Brasil. Manoel Ernesto era filho único, melhor aluno do grupo escolar mas gostava mesmo era de frequentar as reuniões da loja Maçonica, escondido atrás das cortinas de veludo. Era lá que sonhava com hierarquias Transcendentes, ideais Metafísicos, triunfos da Razão e grandes Arquitetos das Estruturas.

Com 18 anos, Mané mudou-se para a França e de identidade. Montou-se, criou bigodinho e maneiras de um herdeiro decaído de dinastias polonesas. Nascia assim um ícone que arrasou nos ateliers parisienses, rivalizou com madames. Dizem que Charles Frederick Worth, lui même, sentiu-se ameaçado e começou uma campanha de detração. Acusou Ulzyvan de impostor, fútil e veado. Falou de suas criações com desprezo, que eram inexequíveis, faraônicas, destituídas de moralidade e respeito às tradições.

Humilhado, Ulzy voltou ao Brasil, a beira do suicídio, com a detração a sufocá-lo. Mas perseverou e fundou uma maison, cujo sonho libertário consistia em nunca mais sucumbir à critica.

Sua técnica consistia em reunir em seu salon costureiras, modelistas, clientes e outros livres pensadores, em orgias criativas, mais conhecidas depois por brainstorms. A regra de ouro dessas sessões era jamais censurar uma ideia quando surgisse, mesmo estapafúrdia, sonhadora ou simplesmente idiota. Foi um enorme frisson mas um retumbante fracasso.

Brainstorms não são um desastre porque reúnem pessoas para discussões, debates e troca de ideias. São ineficientes porque fazem uma lobotomia na crítica.

Suspeito que o processo criativo no mundo da moda seja tão primitivo quanto no da propaganda, minha área de atuação. Os brainstorms tiveram seu momento de glória mas não passam de enfadonhos desabafos destituídos de senso prático. No entanto, o retrocesso é ainda mais frustrante que a tentativa democratizante: criar nesses dois mundos muitas vezes ainda significa ter epifanias chiliquentas numa torre de marfim.

Mas criar é o avesso do isolamento. É também um convívio consciente com a crítica.

Em um mundo de efervescência de influências e informações, o isolamento é sinônimo de alienação. Criar de forma autocentrada, sem banhar-se na crítica, mesmo a mais destrutiva e invejosa, é contaminar-se com o vírus do envelhecimento precoce.

A autocrítica é para muitos criadores um alibi. Dizem-se capazes de dispensar opiniões alheias de tão auto-exigentes. Mas a autocrítica é refém, sempre, da vaidade. Não basta.

A criatividade não depende tanto de metodologias e mais da estrutura psíquica e de personalidade das pessoas. No entanto, existem contextos mais férteis do que outros. Trabalhar em ambientes abertos, em que a interação seja constante e forçosa, por exemplo. Ainda, pode-se aprender a tolerar a detração com paciência e o exercício da defesa é um enorme fermento de criatividade.

Ulzyvan von Zuberovsky morreu esquecido até à presente obra de ficção. Suas criações, apesar de democráticas, não passavam de retalhos de ideias, promessas vagas, tendências chuleadas.

Publicado originalmente em FFW (22/02/2012)

Se tá barato, eu preciso

Por que diabos tem tanto guarda chuva nesse voo? É moda apoiar-se nele com nonchalance pra ver o povo desfilar na Oscar Freire?

–       Moça, o que são esses guarda chuvas?
–       Como, você não sabe?
–       Não. Perdi alguma coisa?
–       Sim, a liquidação da Victoria Secret.

Três garotas conversam animadamente ao meu lado, como se tivessem saido de um encontro tupiniquim de Sex in the city.  Ah, estão planejando momentos idílicos em Nova York. Eis então que sacam do guia da cidade, um xerox. Deve ser alguma dica preciosa. Alongo o olhar para um mapa do Outlet de New Jersey todo marcado com as estações da procissão projetada: Mac, Prada, Gucci, Lacoste, Vicotria Secret, claro.

As pessoas não vão mais aos Estados Unidos, se é que algum dia foram. Vão ao mall mais barato e diverso do planeta para os brasileiros.

De quebra, aproveitam um museuzinho básico para o alibi cultural. Ou um restaurante hip para criticar os preços de São Paulo. Ou um musical da Broadway para poder dizer “só os americanos!”.

Mas são as malas transbordando de inúteis utilidades que vão dar a confortante sensação de que afinal de contas nós  somos eles amanhã.

O português dos modernos

Não é fácil acompanhar a velocidade de inovação dos gadgets que nos servem de esqueleto existencial. Essas novidades ocupam o centro do desejo contemporâneo.  Moda, tecnologia, decoração, viagem, etc, e para justifucar tantas presumidas mudanças de comportamento, atitudes, valores, precisamos inventar também termos.

Qualquer pesquisa ou publicação que quer impressionar, precisa cunhar palavras novas, seja abusando dos prefixos (o que está na boca de todos os bem aventurados profetas da modernidade é “trans”), seja germanificando o português, com a juxtaposição de várias palavras (até porque usar palavras mais precisas em outras línguas ficou fora de moda).

Parece que todo o esforço e busca pela simplicidade, minimalista e econômica, é saudosista e o pecado mortal é tentar encontrar paralelismos com o passado. Não, tudo é inequivocamente COMPLEXO e NOVO.

Todo mundo quer se “adaptar” às transformações como se essas mesmas “transformações” fossem independentes. Como se as “mudanças” fossem paridas por geração espontânea, pré-programadas e sempre acelerando. Temos que correr atrás, sempre em débito com a nova-novíssima-nova palavra.

Mas o novo sempre foi fator de uma necessidade genuina e humana. Nunca de uma projeção. Menos ainda de uma compensação.

Queremos fazer bonito, mas na maioria das vezes é ridículo.

O primo de Marília estava certo: “comprei uma bota nova, lindona, pra fazer bonito na sua festa. Mas acabei colocando essa que é essa que eu aguento, né?”

Uma história das bundas

A origem da palavra modelo, do latim modus (medida, maneira), definiu-se no Renascimento de Michelangelo, o escultor dos peitos, músculos e bundas imortais.

Melhorar a imagem da Mater Dolorosa era justo. Compensar a inocência do rei Davi, justíssimo. Orná-los com improváveis bundas era uma metáfora poética carregada de significado. Se Copérnico colocou o Sol no centro, Michelangelo colocou a bunda.

Que provocação expor formas duras, frias e lisas nos templos religiosos! Quase impossível concentrar-se na comunhão com Deus. Tanta redondeza branca assombrava os tementes a Deus. Invadia sonhos, inflamava desejos, inspirava libidos.

E, assim, construiu-se o sistema bundocêntrico, que ninguém ousa subverter.

Os Michelangelos do tempo moderno é a gente da moda. Pois moderno e moda são palavras com a mesma raiz etimológica. Nada mais justo do que perseguir o ideal supremo, a fixação patológica do grande artista: bundas, bundas, bundas.

Mas o mármore não desfila, nem rebola. Bunda é tecido adiposo. Quando há bunda, modelo ou não, é mole.

Artigo originalmente publicado em FFW em 04/07/2011

Galliano versus Galliano

Vivemos em um mundo assolado pelo Mundo. O fluxo incontido e espetacular de notícias que seguimos com a mesma paixão que nos faz verter lágrimas na despedida de uma mãe no leito de seu filho, escapa na próxima diversão emocionante, no próximo desastre ou polêmica. Um filme, uma novela, um acidente natural, um crime estarrecedor, a atitude incompreensível de uma celebridade.

Ainda que soubessemos tirar proveito emocional a tantas catástrofes, ou racional a tamanhos furos, preferimos os julgamentos maniqueístas: “like” ou “share”: agrado ou pan-difusão no Facebook. E para os formadores de opinião do Twitter, cabe um microsarcasmo ou pérola de sabedoria em  140 caractéres.

A moda é um sopro de expressão artística. Tendências explodem em geração espontânea e perecem na próxima, cada vez mais próxima, coleção. O sempre mais novo, mais obscuro, mais insuspeito criador desabrocha e esvanece ao sabor das primeiras filas inquisidoras dos desfiles. Alimentando-se ao extremo do culto às personalidades, nesse mundo com poucos meio tons, em que só há certo e errado, todo delito de opinião é passageiro.

John Galliano era um monstro de criatividade, inatacável. Ao sabor de sua loucura prestigiada, deslizou ao insultar pessoas com propósitos antisemitas. Mas já está perdoado – até por quem ofendeu – e temporariamente esquecido da mídia. Já já, retorna em alguma griffe menos sensível e menos hipócrita.

Como julgar, no entanto, o acontecimento? Será que a desculpa da inconsciência provocada pelo porre é suficiente? Ou o porre, ao contrário, desnuda convicções profundas, mascaradas pela civilidade e pelos interesses mais práticos? Devemos tolerar um nazista, e xenófobo, até  no mais comum dos mortais? Na França, em que a maioria das tensões sociais nascem de posições extremadas a respeito da imigração? Na Europa, que ainda digere com dificuldade seu passado antisemita? Em um Mundo onde milhões morrem porque outros não toleram sua cor, sua religião, sua tradição? Talvez devessemos recusar-nos a apertar a mão desse Juan Carlos Antonio Galliano-Guillén, apontá-lo o dedo e rir-se de seus trejeitos.

Mas, acima de tudo, é inocente a obra das perfídias do seu criador? De que serve saber que Celine ou Wagner eram convictos de que os judeus eram ratos nojentos? De que nos adianta aprender que Coco Chanel foi acusada de colaboracionista por ter deitado com um oficial nazista? De que interessa a biografia de um artista, de um “grande” homem? Talvez não muito mais do que vê-los normais, como nós, e enternecer-nos com suas derrapadas.

Talvez apenas nos interesse o personagem criador, esse tal de John Galliano, cuja obra nunca foi de falar, mas de desenhar, mesclar influências e encher de vida e inspiração as passarelas.

Talvez devessemos apenas questionar e relativizar o endeusamento das personalidades que crescem e proliferam muito além de suas próprias obras – quando há obra. A mídia das biografias vazias, artificiais, posadas é um marketing vulgar. A vida de John Galliano é tão irrelevante como a nossa.

“Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”

Fernando Pessoa em Poema em linha reta

Artigo originalmente publicado em FFW em 25/03/2011

Para onde vamos com tanta sucata?

O closet é uma espécie de masmorra: com que roupa vou? Essa dobra, essa cor, esse corte, essa combinação ficam bem?

O diabinho sibila no ombro “pega essa calça mesmo, ninguém vai reparar”. O anjo medita: “que tal uma passadinha no shopping?”

A moda, a tecnologia, o entretenimento e até a mais prosaica das subsistências são caudatários do novo.

É a mão de ferro da perpétua renovação que rege o século. Só presta se estiver tinindo.

Não mais em ciclos ou em estações, como no tempo dos nossos pais, o novo contamina em espasmos assimétricos, incontroláveis, aos borbotões, acometendo-nos ao sabor da insegurança, do vazio, do crédito, da competição.

Foi-se o tempo da temporada, a caça é diária: na rua, na mídia e claro, na Internet. Liquidações, datas promocionais e eventos reguladores: me engana que eu gosto. Todo dia é dia de cair armadilha com prazer masoquista.

Ao sabor da propaganda.

E quando não temos mais nada para sucatear – seu guarda roupa, sua casa, sua geladeira, suas memórias –  quando não temos nada de novo para propagandear, a gente sucateia seus desejos, suas verdades, seus valores.

Alguma novidade? Nenhuma.

Propaganda de moda é propaganda?

O cenário: o mais chique, o mais romântico. Paris, claro.

O dia: um pré-verão, quase frio, ventoso, céu de Velásquez.

A modelo: a mais top das over top, loira, vaporosa, sem personalidade, ligeiramente virgem, muda, russa, Maryna Linchuk

A música: sem voz, meio rouca, loira eternamente infantil e sensual. Brigitte Bardot cantando uma coisa bem nada a ver, “Moi je joue”.

O diretor de fotografia: filmou Madonna e Michael Jackson, fez Zodiaco, lembra aquela luz? Harris Savides.

A direção: feminina, super hypada, adora moda, nunca filmou publicidade, um jeitinho menina mimada. Que tal Sofia Coppola?

O roteiro: Ah, sei lá. Põe lá ela andando, de bike. Passa pela loja e flana com nada na cabeça, come uns macarrons, que tal? No final, um beijo e sai voando. Isso, com umas bexigas coloridas. Deixa rolar.

Paris, Maryna Linchuk, Brigitte Bardot, Harris Savides, Sofia Coppola. Um bom exemplo de propaganda de luxo. Perfume Miss Dior Chérie.

Propaganda de produto de luxo, de moda, é um mistério. Funciona quase às avessas da outra propaganda. Tem que ser lindo e ponto.

Não sejamos ingênuos de tentar discutir, debater, menosprezar. A indústria é bilionária e não parece em crise.

Nós, publicitários de sabão e cerveja, é que temos essa mania de entrar em crise de incontinência criativa, clamando contra a banalização da idéia, chorando pelo excesso de cabrestos, de racionalizações, de reduções orçamentárias.

O paradigma às avessas da propaganda de luxo é: quanto menos idéia melhor. Ruim, muito ruim é a propaganda de moda com titulo, texto, slogan, humor?  Socorro! Nem pensar.

Do lado de cá do balcão, valorizamos a big Idea, a ousadia, a sinceridade, o riso ou o choro, a inteligência. Propaganda péssima, muito péssima é a simplesmente maravilhosa, aleatória, sem roteiro, abusando de celebridades.

E no meio do caminho, marcas populares fazendo propaganda de luxo com recursos mulambentos ou marcas wanna be com o melhor/pior dos dois mundos: idéia e beleza.

O produto da moda é comunicação. A moda é um veículo de comunicação, antes de ser roupa e perfume. Quem faz moda, comunica. Quem faz moda faz publicidade.

Da mesma forma que é impensável um criador de moda, lançar sua coleção sem participar ativamente da propaganda que fará de seus produtos, é inimaginável ver o engenheiro de alimentos, o mestre cervejeiro, o banqueiro, num set de filmagem de um novo comercial.

A moda é também conteúdo, muito mais conteúdo do que a propaganda de supermercado, tênis e gasolina. Ou será que uma revista, daquelas de ver e não de ler, tem algum sentido sem aquelas lindezas da propaganda de luxo? Já a propaganda de computador, celular, banco, convenhamos…

Bem que a moda poderia nos inspirar um pouco. Bem que a moda poderia nos ajudar a racionalizar menos e soltar mais a franga. A nós e a nossos clientes.

A mídia veste Prada

Um caçador de tendência é um cara que sai por aí escarafunchando o que estão vestindo, falando, fazendo, comendo, gostando e mais um monte de gerúndio. Ele é contratado pela indústria e seus parceiros para inspirar inovações e obviamente antecipar lançamentos.

A conseqüência esperada – além do truque óbvio de dizer que a marca é inovadora – é de ganhar um mercado que já existe. Se uma grife lança uma coleção com a cor que já está nas ruas, ela ganha os adeptos que já procuram a cor em questão, para dar um exemplo rasteiro. Tendência portanto é querência.

E por mais que a Miranda Priestly (Priest de sacerdote, portanto, Priestly , sacerdoticamente) tente explicar que uma cor é muito mais que uma simples cor (sic) – é um estalo quase transcendental de gênios genialmente geniais – o objetivo é mais prosaico – e muito mais razoável, considerando justamente que é uma “idéia” (assim, entre aspas mesmo) que movimenta bilhões de dólares e comprimidos de antidepressivos.

Portanto, sob esse ponto de vista, esses caçadores aí fazem todo o sentido, mesmo quando eles são – como é muito comum – chupadores ágeis de idéias alheias. Em tempo de internet, caçar tendências chupadas é moleza e engana muita gente “ocupada demais” por aí.

Caçadores de tendências não são nem inúteis nem gênios.

Mas o que inebria são os ditadores de tendências. Esses são Mirandescos. Ditar tendências é apropriar-se de uma dessas querências já queridas pelas pessoas e dar uma forçada, uma anabolizada devidamente midiatizada. É mais ou menos pegar a tal da cor – para permanecer na caricatura – e gentilmente influenciar os canais de acesso à informação de que essa é a cor que está “pegando”, que é “tudo”, que é o “ó”, e que você é um lixo se estiver com outra. Casou a fome com a vontade de comer. A “tendência” que já é “querência” vira histeria, uma necessidade quase que fisiológica, a base da pirâmide de Maslow: mais vital estar vestindo lápis lazuli do que comer, “comer” ou des-comer.

Pois, apesar do ingênuo-quase-estúpido roteiro, apesar do bom-mocismo forçado, do glamour-paparazi-de-folhetim, e do product-placement-blockbuster, “o Diabo Veste Prada” – mais raso, mais digerível do que “Prêt à porter” do Altman – tem lá seus ensinamentos: “Caçadores e ditadores de tendências, eles ainda vão te pegar”.

Viajar no acaso

Em Recife, vá para o museu Brenand, à tarde, com um quadrinho do Moëbius debaixo do braço. Sente ali naquela esplanada sensualmente mitológica, comece a ler L´incal e já, já você vai ver um zoológico de seres lascivos mas assépticos te envolverem na mais sideral de todas as viagens.

Em Paris, vá almoçar no sujinho Bar de l´X, na frente da escola politécnica. Peça o que tem, javali ou avestruz, tome o vinho que te recomendarem e fique ali algumas horas, olhando os magricelas plátanos dançarem ao vento. Sorria para o patron mal-encarado e repare suas olheiras abissais.

Em Noronha, vá remar nos supercaiaques oceânicos, `as cinco da matina. Você vai passar requeijão na água, atrás do golfinhos e tomar um supercafé da manhã com o solzão nascendo atrás das ondas: uma promiscuidade mais emocionante que passeio de barco e muito mais do que aqueles liliputianos golfinhos na baía-observatório pra inglês ver.

Em Nova York, vá sacudir a poeira na ópera. Qualquer uma. Depois de curtir os chagalls do hall, observe com cuidado as naftalinosas velhas nas frisas, os johnicinhos cochilando, os melômanos trançando os bigodões. Saindo de lá, corra pra Chelsea, mais precisamente pro super-hypado APT, cheio de negões milionários no bar subterrâneo, e ouça hip-hop.

Em Galinhos, no Rio Grande do Norte, chegue de balsa, ou de 4X4 pelas dunas, pegue um jegue-táxi e mande ele te levar correndo, para ver o pôr-do-sol no farol. Fique ali até ficar noite e volte pela praia, caminhando. Sabe aquela espinha dorsal do céu, a Via Láctea? Então está lá todinha. No dia seguinte, vá puxar uns ferros na academia local. Pelo tamanho dos gigantes locais, lata de tinta cheia de areia funciona melhor que os aparelhos que você conhece.

Em Londres, vá até o jardim japonês do Holland Park ver os pavões e as rosadas inglesas passearem seus pets. Resista às fotos, pegue um caderninho e escreva o que você está vendo. É mais original, mais pessoal. E, em vez das soníferas seções de fotos para os amigos .quando voltar, faça um sarau e declame suas metáforas. Você leva jeito pra coisa.

Na Bretanha, França, pegue um barco para Belle-île-en-Mer. Nem pense em entrar na água gelada. Em compensação, tem dois menires no meio da ilha, dignos de Obelix. Chamam-se Adão e Eva e dizem que fazer amor a seus pés, numa noite de lua cheia, é garantia de felicidade eterna.

Na Irlanda, tem as falésias, os Cliffs of Mohair. Vá de carro, para não ter que suportar as hordas de godos, ostrogodos e nipônicos histéricos. Pegue uma tarde inteira e uma capa de chuva. Tire os sapatos e ande descalço na grama fofinha, até a ponta deserta. Daí, fique mastigando um galho de capim e puxe um ronco com os pés balançando na beira do precipicio.

Quando você for à Chartres, se banhar nos azuis dos vitrais da catedral, tente entrar de olhos fechados. Se você estiver sozinho, banque o cegueta mesmo. Quando você estiver no meião, com certeza, alguém vai te ajudar e te posicionar de cara pra grande rosácea da frente. Não abra os olhos ainda, espere um pouco. Com um pouco de sorte, estarão tocando órgão. Quando rolar um acorde mais forte, abra os olhos que, a essa altura, já estarão marejados. Não existe caleidoscópio mais arrepiante.

Em Ravena, na costa do Adriático italiano, vá ver os mosaicos, claro, mas não perca o único Jesus peladão do mundo, numa abóbada da catedral. Dá gosto ver a piroca de Deus e perceber que, afinal de contas, ele era mesmo de carne, osso e membros.

Em Paris, vá à mesquita no sábado, se você for homem, e nos outros dias, se você for mulher. Logo na entrada do salão de chá, do lado esquerdo, é a entrada do Hamam (sauna úmida). Não ligue para a higiene duvidosa do local, mas passe uma hora suando nas quatro salas e ouvindo arabescos sonoros. Termine com uma massagem na sala de repouso e, depois, um chá de menta. Os atentados terroristas no metrô são piração da sua cabeça, mas ajudam a dar clima à atmosfera obscura do local.

A moda que transforma, transfigura e transgride.

“Extreme Beauty: The Body Transformed”, exposição no Metropolitan Museum de Nova York, é um pequeno discurso sobre a beleza e a moda.

Quando curadores sisudos deitam um olhar curioso sobre o universo da moda, tantas vezes tachado de superficial e supérfluo, o resultado é no mínimo gozado. De qualquer forma, a mostra Extreme Beauty do Met de Nova York dá cartas de nobreza a uma produção artística que movimenta muito dinheiro, cérebros e mídias.

Quem sabe o lugar das criações de alta costura não seja mesmo as taciturnas vitrines dos museus?

A exposição é uma restrospectiva comparativa da moda através dos séculos, colocando lado a lado os atrofiantes sapatos de gueixas e as escandalosas plataformas de Salvatore Ferragamo, ou os corsetes “não-respire-não-fale-não-peide” das cortesãs e os ultrajantes bustiers “Gaviões-na-varanda” de Jean Paul Gaultier.

Quem sabe a moda não seja uma reinvenção cíclica de arquétipos universais de beleza?

Os curadores dividiram a mostra de forma temática, operando uma dissecação cuidadosa das partes do corpo que mais vezes concentraram os suores das agulhas e tesouras. Na primeira galeria, pedestal: pescoço e ombros. Na segunda, frontispício: o peito. Na terceira, altar: o abdômen. Na quarta, alças do amor: o quadril. Na quinta, garras: os pés.

A exposição desliza pescoço abaixo: ombros, peito, abdômen, quadril, pés como num frisson erótico.

Tudo documentado, revelado: as inspirações étnicas, as pirações sexys, street roots, lisérgicas mandalas, saias infláveis Lídice, rendas de açúcar. Elsa Schiaparelli, Gilbert Adrian, Cristobal Balenciaga, Thierry Mugler, Vivienne Westwood, Norma Kamali, Rei Kawakubo, Jean Paul Gaultier, John Galliano, Roger Vivier, Alexander McQueen, Yohji Yamamoto, Yves Saint Laurent lado a lado com os inspirados artesãos do passado.

Vai lá. Se não vê aqui: http://www.metmuseum.org/special/