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“Você entra com a bossa, eu entro com a boçalidade”

Perguntaram outro dia “você é sempre do contra?” e pensei que talvez valesse a pena, excepcionalmente, falar um pouco em primeira pessoa.

Viver não é uma opção, é uma contingência. Ver, sentir, pensar, escrever também. Morrer é a única decisão que tomamos, no reflexo do viver.

E se assim for, muito além dos fluxos e refluxos que nos conduzem, assumir o leme das decisões, ver-se como centro irradiador de causas, criador das marés, influenciador do futuro é o alimento da vida. Melhor morrer do que curtir a deriva.

O homem não teria criado o fogo e a roda, fundido os metais, construído estradas, edificado templos, eliminado inimigos, vencido o espaço sideral e sonhado com a eternidade se nunca tivesse duvidado do determinismo e das leis de causa e efeito. O homem nunca teria sido homem se não tivesse duvidado de Deus.

O drama da existência só tem sentido quando extravasamos ou no mínimo assumimos que somos contra tudo e todos. A crítica, ainda que não seja opção, é a base da vida.

Só vale a pena beneficiar dos minutinhos de atenção dos bem aventurados leitores desse blog se for para ser contra. A turba do “a favor” já é grande demais.

A Internet enche que até transborda

Com a Internet, uma nova economia nasceu. Com a Internet, muitas gente ficou milionária da noite para o dia. Com a Internet, a democracia renasceu, e a política e a justiça. Com a Internet, as pessoas estão menos sozinhas, mais participativas, mais poderosas, mais instruídas, mais inseridas, mais criativas, mais, mais, mais.

E também com a Internet, o mundo está menor e mais igual. Com a Internet rouba-se mais, infringe-se mais a lei. Com a Internet o lixo tem seu lugar ao sol, a produção cultural perdeu referências de qualidade. E a produção tout court também. Até nossos valores. E nossa ética. E nossa fé. Com a Internet, ninguém quer mais saber de olhar no olho, nem tocar, nem falar, nem trepar, nem, nem, nem.

Todas as virtudes e todos os vícios: é tudo culpa da Internet.

Tem até uma patologia nova, os internetisícos, que tossem bits. Coitados, ficam doentes se não tiverem um computador, um pad, um celular, uma lan-house à mão.

E tem aqueles outros, os internetofóbicos, que ficam verdes se alguém falar “google”, azuis se ouvirem a palavra “youtube” e explodem só de ver o passarinho azul.

Se pessoas morrem em acidente de carro, não é culpa dos carros, nem das estradas, nem das montadoras. Se as pessoas engordam, não é culpa da gordura, nem da lanchonete, nem do maldito azteca que inventou o chocolate.

Tomara que chegue logo o dia em que a palavra Internet fique obsoleta, careta, saudosista ou bizarra. E que a palavra Criação ou Deus ou Liberdade cresçam e apareçam no tag-cloud.

Rede Record que Deus lhe pague

Pascal apostou. Ninguém sabe se Deus existe mesmo, então considere as seguintes alternativas. Se Deus não existe e você morrer infiel, até que você não se dá mal. Já se Ele não existe e você morrer temente a Deus, nada de errado com seus days after. Agora, se ele existir e você nunca comungou de sua palavra, você está ferrado. E se ele existir e você pagou penitência, ajoelhou no milho e pagou o dízimo, o reino dos céus será seu novo lar. O filósofo, matemático, físico e carola vivia no século 17. Seu cristalino raciocínio fez um strike nos céticos iluministas, que já namoravam na época com um pensamento mais livre e agnóstico.

Muita água rolou debaixo da ponte depois disso. Veio a revolução francesa que baniu a igreja do poder de estado. Vieram outras culturas, outras crenças, a liberdade de culto e o melting pot religioso. Vieram também as revolução de costumes, o respeito às minorias, a democracia lutando contra os tiranos e os tiranos contra os libertos.

E hoje as mídias temperam nossa existência. Ver e interagir, criar e colaborar, publicar e sonhar com a fama, declaram nossos novos direitos de humanos.

Que uma igreja tenha todo direito de ter um canal de televisão, uma plataforma de mídia, políticos e lobistas não está em pauta. Que uma igreja possa fazer mágicas dogmáticas com a aposta de Blaise Pascal, entre quatro abóbodas sacralizadas de neon e batalhões de evangelizadores, não interessa. Ela é senhora de sua pregação. Se ela está afim de passar o chapéu, de surrupiar as economias dos fieis em troca do loteamento do céu, azar do latifundiário divino e dos sem-nuvem.

Mas quando uma igreja transforma seu templo em Shopping Center, quando uma igreja entra na lógica do sistema e o óbolo presumidamente espontâneo vira fonte de financiamento, a aposta é outra. Quando a palavra de Deus lastreia um negócio e os vendilhões invadiram o templo, a esmola é lucro e como tal deve ser taxada.

Deixai a Rede Record em paz e transformai sua igreja em contribuinte.

Deuses-Contadores ou Deuses-Compaixão?

Um bilhão de pessoas na terra estão abaixo da linha de pobreza. Centenas de milhões morrem de fome. E nós aqui preocupados em fazer xixi no banho para salvar a mata atlântica.

E entram em ação dois antagônicos argumentos: o do “melhor do que nada” e o do “não adianta”.

O do “melhor do que nada” é uma espécie de compensação falaciosa da nossa consciência. Como se Deuses-Contadores fizessem fichas-razão de débito/crédito das nossas ações. Uma moeda com conversão universal nos tornaria mais ou menos abonados para desfrutar de mais ou menos conforto no além. E no final de nossas vidas, a gente faz as contas com os donos do time-sharing do céu.

Argumento romanticamente ingênuo, principalmente quando em face do “não adianta”.

Esse poderoso argumento faz as contas antes. É mais esperto, mais informado e mais racional. Como se os Deuses fossem tolos velhinhos de infinita compaixão. As nossas esmolas nunca irão resolver a fome do mundo, nossos votos nunca serão mais poderosos do que a ganância dos poderosos. E no final das nossas vidas, a gente paga uma lápide mais ou menos rica, compra uma memória mais ou menos nobre.

Mas, enquanto isso, um terço da África está contaminada pelo vírus da AIDS, e a gente prefere dizer que a culpa é dos governos corruptos, das guerras intestinas, das rivalidades tribais ou de algum inconfessável preconceito. Ou que é culpa da classe média americana, dos interesses das multinacionais, do imperialismo (ou colonialismo) ou outro egoísmo burguês como nossas leis e direitos profanos.

E, enquanto a gente não decide que Deuses adorar, para os homens o mundo é bem pior do que quando eles foram inventados.