IAs e Avestruzes

Todo mundo tem um plano, até o dia que se recebe um direto no meio da cara. E se o direto é o Mike Tyson, autor da frase, melhor se preparar.

Diante da aceleração reacionária de um mundo pós humano, melhor se preparar: 2025 não é 2016 reborn.

Existe uma revolução em curso e a história nos ensinou que revoluções não são necessariamente boas para todos: a francesa entronizou a burguesia, a russa, os oligarcas, a atual, os tecno-geeks estudados, inteligentes, ricos e movidos a uma energia fabulosa que emana do salão oval em Washington.

Pulemos o debate ideológico. Ele é fascinante e necessário, mas para ser útil, precisa ser levado por melhores pensadores.

Vamos nos ater aos aspectos mais pragmáticos da virada de mesa que está desafiando todos os modelos, sociais, econômicos, profissionais, políticos.

A bomba atômica se chama inteligência artificial e podemos chorar em desatino para a turma dos burocratas adiposos, mal vestidos, que do alto de suas cabeleiras pintadas e procedimentos cirúrgicos, levantam uma mão reguladora. Uma mão reguladora e outra ordenhando uma máquina já exangue.

Melhor se preparar do que chorar. Melhor se preparar do que invocar o saudoso século das luzes.

A história a seguir é apócrifa, mas muito sensacional para não ser verdadeira.

Nikita Khrushchev, primeiro secretário do partido comunista da União Soviética na década de 50, teria dito a Richard Nixon, então vice-presidente americano: se o povo pensa que em algum lugar existe um rio e que esse rio é imaginário, não se deve dizer que o rio não existe. Ao contrário, deve-se dizer ao povo que é necessário construir uma ponte imaginária para cruzar o rio imaginário.

O pragmatismo de Nikita era de não lutar contra os rios imaginários, não se aventurar em intermináveis comprovações. Perda de tempo. É muito difícil ou quase impossível vencer uma crença. Para Khrushchev, era mais útil contorná-la e construir outras crenças, por sobre aquelas.

É assim que pensam os novos ideólogos da revolução em curso. Os René Girard, Peter Thiele, Curtis Yarvin e outros Sam Altman acreditam no que acreditam, que os seres humanos não são iguais e que a inovação e o progresso científico-tecnológico é contrario ao progresso social. E porque acreditam, constroem pontes imaginárias sobre rios imaginários.

 

É necessário entender essa turma e ler o que leem e o que escrevem.

Não para construir outras pontes imaginárias sobre suas pontes imaginárias, coisa que outra turma contra revolucionária tenta, sem nunca ter tentado entender o que dizem, o que pregam, o que fazem.

É necessário entender porque o rio imaginário existe. Entender porque esse povo, que acredita que esses rios existem, está com sede.

Não adianta treinar o drible quando o golpe é do Mike Tyson. Não adianta também fingir, ou rezar pra morrer antes do golpe. É preciso entender poque a Inteligência Artificial está substituindo cérebros, empregos e negócios.

Ser desafiado por máquinas deveria ser o mais fabuloso dos desafios que a nossa vida vai enfrentar.

Menos para uma avestruz.

Alhos e bugalhos

Morgana disse ao Arthur: cuidado com as palavras, elas têm poder.

Só quem já teve que criar a vigésima sétima campanha de verão de uma marca de cerveja-que-refresca-do-calor ou o quadragésimo terceiro lançamento de um carro-lindo-e-poderoso, sabe o pânico que a tela em branco dá.

Só quem já teve que escrever o centésimo terceiro briefing de um xampu-para-um-cabelo-lindo, um plano de celular-que-te-liga-com-as-pessoas, um investimento-que-te-dá-mais-do-que-você-tinha-antes, uma coleção de moda-que-vai-te-deixar-na-moda, um-aplicativo-pra-melhorar-sua-vida, sabe o pânico que a tela em branco dá.

De ambos os lados da fronteira, saímos em desespero, no fogo cruzado de informações, no bombardeio de inspirações, metralhados por referências, tentando se entrincheirar para respirar, pensar, ouvir alguma sussurrante musa soprar no ouvido, uma imagem, uma experiência, uma palavra.

Quem sabe, lá no meio da balburdia, uma palavrinha se insinua, tímida e inocente, fresca como a rosa do Pequeno Príncipe que desperta toda amassada, depois de intermináveis preparativos. Quem sabe, ali, no meio do briefing do cliente, no meio do briefing criativo, nas informações, inspirações e referências, tem uma palavra de alento, de conforto, de poder.

E aí você espreme, decanta, distila tudo e acha a palavra que todos os briefings, orais e escritos, invariavelmente entronizam, como a fonte de todos os poderes. A rainha das palavras em cem por cento dos estímulos criativos: ducaralho.

Ducaralho é totalizante, o alfa e o ômega, o yin e o yian, o absoluto e o vazio. Ducaralho é o orvalho da manhã no céu que nos protege de uma insustentável leveza. Ducaralho são 9 letrinhas todas bonitinhas fáceis de dizer ditas por você. Ducaralho é o ser e não ser. O ser e o nada. Principalmente o nada.

Ducaralho são alhos e bugalhos.

Militemos pelo fim do ducaralho e seu estéril superlativo dugrandecaralho.

Inteligências artificiais humanas

As ferramentas de Inteligência Artificial são como alguns dirigentes – e não só os políticos: mudam de opinião com a mesma velocidade com que metralham seus pontos de vista. Basta dar um mergulho antropológico na rede social de qualquer influenciador, mesmo os mais sinceros, os mais fofos, os mais tementes. Não é à toa que a rede social do presidente americano se chama Truth. Não é à toa que uma IA disse que eu era Empreendedor do Vale do Silício e outra que eu era Frei Franciscano, duas ocupações honoráveis, mas que só tem em comum um nome de Santo.

O chato com os políticos e as IA’s é que chutam e mentem. Tudo é uma questão de probabilidades. Se existe forte probabilidade para que seja bom para a popularidade de um dirigente que ele metralhe asneiras, então ele vai dizer que os imigrantes custam trilhões e trilhões de dólares. Mentir não é delito. Se existe uma forte probabilidade para que uma IA ache, hoje, que sou sinólogo, serei um respeitado sinólogo. Vai ver que sou porque tenho pesquisado, por puro passatempo, sobre o mais antigo slogan do mundo: “Estado forte, Exército forte” (pouca coisa mudou de 2600 anos atrás pra cá).

Mas os políticos e as IA’s têm uma outra coisa em comum além de chutarem e mentirem: são mal educados, grosseiros e incivilizados.

Em 2016, um software de Inteligência Artificial chamado AlphaGo ganhou pela primeira vez de Lee Sedol, o campeão mundial de Go. E ganhou de forma humilhante. Em poucas rodadas, o Senhor Lee foi aniquilado, sem dó. AlphaGo arrasou apesar dele nem saber o que significa arrasar. Mas, todo jogador de Go sabe. Todos os jogadores dos milenares jogos orientais sabem: arrasar é mal educado, não se faz, é pior do que perder, muito pior. Nas relações orientais, não se pode e não se deve fazer o adversário perder a face. Nunca. Nem que ele seja seu pior inimigo. Nem que ele esteja fazendo o algoritmo beneficiar a Direita nos comentários de uma rede social, você não pode fazer o presidente Chinês perder a face. É errado.

Apesar de ser irresistível e delicioso usar essas ferramentas de IA conversacionais, apesar de já as usarmos inconscientemente há bastante tempo, aceitar o chute até que tudo bem, mentir podemos aceitar que é “humano”, agora, aniquilar, arrasar, destruir, não é bacana. Não é legal pensar muito menos torcer para que qualquer IA aniquile pessoas (nas guerras), empregos (nas empresas), faces (na vida de todo dia).

Para que serviria matar mais gente, empregos e orgulhos? Para ter menos gente, menos trabalho e menos razão de viver?

Vamos torcer por menos mentira e menos chutes, mas será que as IA’s (e os dirigentes) do futuro serão capazes de delicadeza, sutileza, sensibilidade, afeto, classe, respeito, compaixão, ou seja, humanidade?

Um pouco de silêncio para acalmar a divina ira

Como é sabido, a Bíblia é uma coleção de histórias, disparatadas, contraditórias, contadas pelos homens muito antes de serem transformadas em livro e muito antes também de haver um Deus único onipotente.

A história do Dilúvio aparece em muitas tradições e em uma delas, na Mesopotâmia (anterior a do antigo testamento), os Deuses estavam chateados com os seres humanos. Eles fervilhavam em todo canto, faziam muita bagunça e principalmente faziam um barulho ensurdecedor. Eles eram muito tagarelas, fofoqueiros, encrenqueiros, noite e dia, dia e noite. Para acabar com a farra e poder finalmente dormir em paz, os Deuses tentaram vários estratagemas para acabar com tanto blábláblá, mas o que pareceu mais convincente foi um dilúvio.

A parte triste da história é que um dos deuses, amigo dos humanos, soprou no ouvido de Utnapishtim o que ia acontecer. Foi assim que o Noé do dilúvio mesopotâmio, construiu a arca e salvou a humanidade.

Dizem que 100 bilhões de mensagens são trocadas por dia no Whatsapp, 576 mil horas de vídeo no Youtube, 95 milhões de fotos no Instagram, Elon Musk tem 193 milhões de seguidores e posta em média 154 vezes também por dia.

Os Deuses devem estar furiosos com tanta balburdia.

Se os humanos não fossem irresponsáveis sozinhos e que a destruição iminente do nosso habitat não fosse culpa nossa (e de alguns poucos mais do que a esmagadora maioria: dizem que o foguete da SpaceX do Jeff Bezos causou um buraco na ionosfera que durou 20 minutos quando explodiu. Que direito um ser humano tem de provocar um buraco na ionosfera? Que lógica há em destruir a Terra para salvar os terráqueos?), a gente poderia dizer que as mudanças climáticas são uma espécie de dilúvio que os Deuses estão mandando para acabar com o nosso barulho.

E se para se salvar, a gente devesse se calar um pouco?

A era dos publicratas já era

Um publicrata tem medo.

Medo de perder o emprego.

Medo de dizer o que pensa.

Medo de pensar.

Um publicrata pira na planilha.

Reza em reunião.

Cede no celular.

Apavora a agenda.

Um publicrata venera as inteligências artificiais, as ferramentas, as plataformas e tudo aquilo que pode economizar tempo, pessoas, detalhes, suor e sonho.

Não é culpa dele. É culpa do tecnocrata que tem medo do filocrata que o controla. Cacacracia.

Mas presta atenção na nova tendência: foco e disponibilidade.

Presta atenção no hype: é out não ter tempo, grudar no celular, ser multitarefa, seguir, dar like, repostar.

Não prestar atenção é out. E cafona.

Dá ansiedade. E ansiedade cansa, adoece, envelhece.

Experimenta não ser publicrata.

Experimenta ter tempo pra conversar.

Experimenta dizer que pode.

Experimenta prestar atenção.

Presta atenção: ainda dá.

A Inteligência Artificial vai nos livrar de muito mal

Vamos ser honestos: se as Inteligências Artificiais forem capazes – como parecem ser – de substituir e desmascarar os imbecis, os incompetentes e principalmente, todos aqueles que usam as IA’s para parecer menos imbecil e menos incompetente, por que não ficaríamos felizes?

Platão dizia que Sócrates tinha um medo enorme de que, no dia que eles começassem a escrever, a memória dos humanos acabaria.  Desde aquela época, a tese de que a externalização de nosso cérebro nos tornaria menos inteligentes, existe. É óbvio que não é verdade. O que essas externalizações fazem é acelerar aquilo que nós faríamos de forma mais lenta, ou mais deficiente. Assim como um binóculo nos permite ver aquilo que não podemos ver a olho nu, as Inteligências Artificiais, por enquanto pelo menos, nos permitem acelerar trabalhos que levariam mais tempo. Como não achar isso libertador?

E o medo visceral de que essas ferramentas substituam as ocupações menos qualificadas e que hordas de desempregados vaguem desesperados? Pois, por que não imaginar que é o contrário? Ferramentas como as Inteligências Artificiais são criadas para melhor executar algumas tarefas.  Mas por que investir bilhões de dólares para substituir os menos qualificados? Depois de calar os imbecis e incompetentes, as IA estão mais focadas em substituir aqueles que se outorgam poder e dinheiro por saberem mais. Faz mais sentido substituir médicos, advogados, engenheiros com Inteligência Artificial do que pintores, músicos, carteiros, pedreiros, jardineiros. Ou, corrigindo o tiro, substituir aqueles médicos, advogados e engenheiros que atribuem sua importância àquilo que sabem e não aquilo que criam. Que atribuem seu poder àquilo que aprenderam e não à interação, à compaixão, ao dom de si. Como não ver nisso uma redenção?

Nenhuma inovação é ganha-ganha. Sócrates tinha razão: ninguém sabe recitar as armas e os barões assinalados nem batatinha quando nasce. Perdemos memória, mas ganhamos diversidade, agilidade, universalidade. Ninguém mais vai saber a idade, o telefone, o aniversário, o nome e a genealogia de ninguém. Ninguém mais vai tremer com um diagnóstico, se descabelar com um data-vênia, se acidentar por um erro de cálculo. Não é nem bom nem ruim. Assim será.

Mas quem sabe também, talvez, quando a gente se libertar dos imbecis aparentes e disfarçados, todo mundo vire artista ou jardineiro e a gente salve a humanidade e o planeta. Se der tempo.

Como uma agência de propaganda pedala na maionese

Sempre existe um jeito de disfarçar a arrogância, a incompetência e a ignorância. Basta adotar um discurso salpicado de modismos e frases feitas. É como dizia o dramaturgo Sacha Guitry: “Os arquitetos escondem seus erros com hera; os médicos, com pedra; os cozinheiros, com maionese.”
Os profissionais de comunicação sabem, como poucos, esconder-se atrás das tendências e, desde que inventaram essa profissão, essas tendências foram sempre tecnológicas. Foram muitas — e é desnecessário enumerá-las. Basta concentrar-se primeiro no motivo: um complexo de imprevisibilidade.

Trabalhar com as emoções e os impulsos das pessoas é algo difícil de mensurar e, para suportar essas incertezas, é sedutor aproximar-se de disciplinas e pessoas embasadas, peremptórias, afirmativas. Como na medicina ocidental, que trata das doenças baseada em probabilidades (porcentagens de ter ou não tal doença, de sobreviver a tal condição etc.), a propaganda tenta fazer o mesmo (porcentagens de atingir ou não tal público, de alcançar tal resultado etc.). Mas, assim como crê a medicina menos ignorante, pessoas não são coisas. Pessoas mudam de ideia. Pessoas mentem. Pessoas são irracionais. Pessoas são rebeldes. Pessoas são imprevisíveis. Pessoas não fazem aquilo que fazem porque sabem o que fazem.

E, ainda que alguns ideólogos da comunicação acreditem que consumidores podem ser dominados por algum Ophiocordyceps unilateralis, como as formigas zumbis, até agora a equação de convencimento de consumidores sempre passou por dois únicos fatores: dinheiro e ideia.

Mas, ainda assim, o povo tenta. Inventa teorias, cria métodos, manipula ferramentas, aplica fórmulas, minera dados, invoca mirabolantes tecnologias caras e opacas, cria cargos, contrata engenheiros, cientistas, matemáticos, astrofísicos e outros politécnicos. E, depois de muito blablablá, tenta convencer vendendo uma certeza que não existe, para superar o complexo ou esconder a arrogância, a incompetência e a ignorância.

A propaganda tem a ver com discurso e diálogo, tem a ver com sentidos e intuição, tem a ver com carne e sangue. Fazer boa comunicação é concentrar-se no essencial, na ideia, naquilo que é singular para despertar e visceral para emocionar (e o dinheiro — o uso que fazemos dele — bem, dá pra automatizar).

As agências de propaganda que se afastam dessa lapalissada estão enganando o freguês ou tentando disfarçar a decadência.

Pedalando na maionese.

IA e o dedo no pote

Se você já teve a chance – ou o azar – de atualizar seu software de edição de texto (ou se você usa a versão na nuvem), já pode ter reparado que o diligente e atencioso programa tem se preocupado com a qualidade de sua redação. Ele percebe seus deslizes, suas hesitações ou sua falta de atenção, e uma mosquinha interrompe seu trabalho, sugerindo um empurrãozinho: “Amigo, você está cansadinho, quer uma ajuda?”. Se você resolveu voltar pra casa a pé e, três vezes seguidas, um táxi passa na sua frente com a luz acesa, é possível que, na quarta, você sucumba e volte para casa: “Ah, uma vez só, eu mereço.” Se você está chateado e com fome, e três vezes um chocolate sorri pra você na ponta de uma gôndola, na quarta, é provável que um simpático diabinho lhe sussurre: “Ah, são só 200 calorias, só hoje vai!”

E assim, você enfia o dedo no pote e aceita o “nudge”. E não é que ficou bom?

Então você raciocina e conclui que os deuses do algoritmo estão querendo que você se concentre no principal e deixe os detalhes para lá: a ortografia, a acentuação, o sinônimo, o melhor adjetivo, o verbo mais preciso, o substantivo mais original, o estilo. E daqui a pouco, você pede mais e mais empurrãozinhos e solicita ajudas maiores, cada vez maiores. O dedo vai cada vez mais fundo no pote.

Até que um dia, você vira um Nutella.

Vamos colocar de lado o perturbador fato de que, ao aceitar a ajudinha calórica – o “nudge” – você também está enviando seu texto, logo, suas ideias, aos deuses do algoritmo.

Mas ninguém faz nada apenas por interesse. Mesmo o mais odioso dos tiranos, o mais frio dos déspotas ou o mais calculista dos deuses do algoritmo tem um sistema de valores e pensa que, ao fazer aquilo que fazem, o fazem para o bem. Sempre existe uma moral, e, nesse caso, os deuses do algoritmo acreditam que não sabemos o que é bom para nós e que, portanto, eles precisam nos ajudar porque eles sabem. Para aqueles que acreditam que tudo não passa de uma tramoia pra enriquecer às nossas custas, então é melhor assumir que são luditas revolucionários. Tem seu valor. Para aqueles que acham que tudo não passa de pecadinhos irrelevantes, melhor continuar sonhando em morrer Nutella antes do pote secar. Vale também.

Mas para todos os outros, aqueles que gostam e valorizam o pensamento original e a singularidade das ideias, precisamos temperar o “nudge” da Inteligência Artificial. IA não é mágica: é média. Com cálculos de correlação entre aquilo que você está produzindo e aquilo que está disponível na internet (portanto em bilhões de coisas correlatas), a ferramenta lhe sugere uma média do resultado, com a crença de que essa média é melhor do que você. Repetindo: a média é melhor do que você. Se você acha isso de si mesmo, talvez você já seja um creme de avelã com chocolate. Tudo bem.

Mas um criador procura a média ou a singularidade?

Ser um Nutella talvez seja bom. É o que pensam os deuses do algoritmo. Quanto mais Nutellas, melhor.

Mas quem alguma vez já teve o interesse, a pretensão ou o sonho de produzir algo original (um texto, um desenho, um bolo, um raciocínio, um sonho) sabe que é nos detalhes que reside a ideia. É na busca do adjetivo, do verbo, da cor, do ritmo, do estilo, é nas idas e vindas, no tropeço, na dúvida, é no peneirar com paciência e disciplina que o ouro brilha, pequenino, solitário, no fundo da bateia. A singularidade não reside na média.

Dedo no pote pode. Mas, como tudo, resistamos aos automatismos, às renúncias, aos empurrões tentadores e servís.

Esse texto foi livremente inspirado pelo livro La fin de l’individu de Gaspard Koenig.

Trabalho: Escolhas Etimológicas

Há quase um século, o pensador e economista liberal John Maynard Keynes escreveu um ensaio chamado “Cartas a Nossos Netos”, no qual ele previa que, no mundo ocidental, em 100 anos, o mundo estaria oito vezes mais próspero. Seja lá o que próspero significasse para ele – vasto debate ideológico que não quero abrir – o fato é que, em vários indicadores, ele viu corretamente. Mas a controvérsia entre pensadores do mundo do trabalho não ficou nisso, mas sim no questionamento que Keynes fez depois. Ele se perguntou o que as pessoas fariam de seu tempo se elas não precisassem mais trabalhar (já que esse mundo mais próspero seria autosuficiente). Ele se perguntou também se, sem trabalho, as pessoas não seriam muito infelizes e sugeriu que, em 2030, talvez fosse recomendado que as pessoas trabalhassem 15 horas por semana.

Polêmico, e antes que haja um levante de escudos, vamos aprofundar o aspecto mais filosófico.

Para que serve o trabalho? Qual o valor do trabalho? O trabalho é fundador da nossa sociedade ou um mal necessário? Temos que trabalhar para ganhar a vida ou trabalhar para fazer a vida?

Nessas horas, sempre é revelador pensar na etimologia das palavras. E ver que, dela, pode-se construir teses epistemológicas ou simplesmente refletir sobre o significado de trabalhar em nossas vidas.

Em grego, trabalho é “Ergon”; em inglês, “Work”; em alemão, “Beruf”; em português, “Trabalho”. Quatro palavras com denotações similares, mas conotações distintas.

Ergon tem a mesma etimologia que “Energia”; portanto, trabalho, em grego, é aquilo sobre o que dispendemos energia.

“Work” tem como raiz a ideia de direção e orientação. Trabalho, em inglês, é para onde vamos, para onde dirigimos a nossa vida.

Já “Beruf” vem de “Chamado”, ser chamado. Para os alemães, trabalho é vocação.

Finalmente, “Trabalho”, em português, tem duas possíveis origens etimológicas. A primeira, mais comumente usada, é a origem latina “Tripalium”, que era um instrumento de tortura. Trabalho, portanto, é algo que faz sofrer.

Do ponto de vista etimológico, pelo menos, diferentes línguas imprimem visões distintas do sentido do trabalho. Para muitas delas, trabalho é emancipação, realização, sentido, dom de si.

Para outras, trabalho é sofrimento.

Essa visão pode explicar, em parte, como uma sociedade foi construída. No nosso caso, pode explicar muitas coisas: uma história cravejada de injustiças e violências extremas, colonização com a força das baionetas, escravidão, exploração e racismo estrutural que perdura, subjacentes e por vezes aparente.

Explica por que muitos – a maioria – têm poucas escolhas a não ser trabalhar naquilo que dá e não naquilo que se quer. É muito difícil emergir das barreiras sociais, econômicas, identitárias, e se o trabalho é um sofrimento, então, parece lógico – talvez até justo – aceitar que quanto menos sofrimento, quanto menos mal, quanto menos trabalho, melhor.

No entanto, uma sociedade também se constrói numa perspectiva de evolução. Num sonho. Num ideário. Num desejo de escapar da reprodução das lógicas do passado. Para além das lutas políticas e do engajamento em causas transformadoras profundas ou pragmáticas, uma mudança de perspectiva individual pode colaborar para mudar vidas. E por que não várias, muitas, o mundo?

Existe uma outra origem etimológica para a palavra trabalho. “Trabalho” em occitaniano vem de “Trab”, que é uma viga muito sólida, feita para construir, para sustentar, estruturar. Portanto, o trabalho, em português (mas também em espanhol ou francês), é estruturante de uma pessoa e também de uma sociedade.

Certa vez, compramos um colchão em uma loja especializada, nos Estados Unidos. A loja era enorme, com muitas e muitas opções. Uma senhora, vendedora, nos recebeu e fez perguntas sobre modo de vida, necessidades, orçamento, e apresentou muitas alternativas com uma competência quase carinhosa. Ao final, nos interessamos pela vida daquela senhora tão simpática. Ela trabalhava todos os dias – sábados inclusive – com poucas férias e folgas, e ela terminou dizendo: “O trabalho me sustenta. Não me pergunto por que trabalho tanto. Às vezes me pergunto o que eu faria se não trabalhasse tanto. Trabalhar para mim é me dar e receber”.

Ela disse “me dar”.

Essa perspectiva muda uma vida, várias, muitas, o mundo.

Poker face pra quê?

No tênis, manter as duas mãos na raquete levantada, alinhada com a cabeça, quando o adversário está com a bola é um estado de passividade aparente que visa não revelar a próxima jogada. É uma atitude analítica enquanto você prepara o seu golpe.

Em qualquer jogo de estratégia é assim.

Num jogo de cartas, faz sentido adotar a “poker face”, já que quem está à mesa com você é um adversário e todos querem ganhar.

Estranhamente, também é assim que muitos profissionais são treinados a reagir (ou não reagir) durante a apresentação de um parceiro comercial, principalmente em uma concorrência. Presumidamente, essa atitude é justificada para não revelar sentimentos que poderiam atrapalhar a isenção da disputa.

Nem sempre essa é a norma, mas quando se torna uma política, revela também, antecipadamente, como será construída a relação: cliente e parceiro são adversários e estão disputando. O cliente busca o melhor trabalho pelo menor preço, enquanto o parceiro busca o trabalho mais fácil pelo maior preço. Numa relação assim, os dois lados da mesa tornam-se adversários.

Há quem defenda esse posicionamento, e há quem tire vantagem e prazer tanto nas relações comerciais quanto, por que não, pessoais. Afinal, estamos todos lutando pela sobrevivência: não é tão fácil matar um mamute com um tacape e levá-lo até a nossa caverna, neandertais que somos.

Fazer propaganda já foi uma disputa. Falava-se em conquistar clientes, por exemplo, ou roubar clientes, ou ainda seduzi-los. Lembram? Naquele tempo, fazer propaganda era caçar e o consumidor era uma presa. Parecia normal usar estratégias aguerridas; falava-se em campanhas, como na guerra, treinar os músculos, preparar as armas, gritar palavras de ordem e ver inimigos a cada esquina, inclusive os parceiros, que eram vistos como mercenários sanguinários, pouco confiáveis e que só pensavam em dinheiro e troféus.

Objetificar consumidores e parceiros, transformando a relação em uma simples transação, combina pouco com o ofício de comunicar. Comunicar é buscar empatia e intimidade. É tentar calçar os sapatos do outro. Principalmente no mundo de hoje, onde a colaboração (com o parceiro) e a proximidade (com o consumidor) são condições para relações duráveis e fiéis.

Não existe nada mais triste do que mostrar paixão a uma parede. Jogar com poker face, ainda que simule isenção, é, tantas vezes, apenas um disfarce para a indiferença.

O inimigo das utopias

Já ouviram falar de nutricionista que coloca açúcar escondido nos remédios do paciente para não perder o cliente? Ou do amigo do alcoólatra em abstinência que esconde garrafas de pinga na casa dele caso tenha uma recaída? Ou, ainda, o patrão perverso que deixa dinheiro espalhado pela casa para ver se o funcionário que está passando necessidade é honesto?

Já tentei uma dieta radical e longa de documentários-cabeça, filmes clássicos e cinema independente, e as diligentes plataformas-que-fazem-tudo-para-te-ajudar-na-vida seguem gentilmente me oferecendo, com destaque, conteúdos que eu não quero ver.

Talvez elas saibam mais de meus gostos do que eu mesmo.

Se você zapear com método a oferta de conteúdo nos canais de streaming disponíveis, perceberá que uma grande parte dela é dedicada à exploração de “histórias reais”, geralmente mórbidas; outra, também não desprezível, traz as “hard news”, sempre trágicas; e uma terceira, bem grande, corresponde a “ficções distópicas”, obviamente catastróficas. Sobrou aí um tanto de fantasias infantilizadas, comédias basais e um tico que classificaremos de “outros”, de tão irrelevantes que são em termos de audiência algorítmica.

Se seu dia foi vazio e monótono, é só arrumar um maníaco assassino para você ter a sensação de fazer parte da estirpe bem-pensante da humanidade. Se seu dia foi agitado e estressante, é só arrumar algum gigantão do bem lutando contra outro do mal, para você embriagar sua raiva da luta diária de cada dia. Em ambos os casos, você não mexe o bumbum da poltrona, mas se sente higienizado pela bondade intrínseca de sua passividade. Você se sente recompensado pela compreensão das suas mais profundas fraquezas por esse Deus bondoso do mundo moderno: o Algoritmo.

Quem idealizou as pirâmides tinha um sonho, quem voou pelos ares pela primeira vez e quem defendeu direitos iguais para todos os humanos também. Quem pensa que ainda é possível lutar pela paz, pela justiça climática e pelo direito dos oprimidos também. Quem sai de casa todos os dias e enfrenta o mundo, quem não se deixa abater por um mal-estar, uma dor de cabeça, um “não” na cara, dois “nãos” na cara, mil “nãos” na cara, não se deixa escravizar pelos algoritmos.

Não existe progresso sem utopia.

Não existe utopia com algoritmos.

Não minta para uma criança

A humanidade pode parar uma guerra, pode diminuir a fome, a ganância, a covardia, o egoísmo, pode se desculpar pelos crimes, genocídios e todas as injustiças.

A gente pode escrever a história, debater, interpretar, pode olhar para os fatos, todos os fatos, sem paixão, sem disputas ideológicas.

A gente também pode chamar um gato de gato, um terrorista de terrorista e esperar menos de 57 dias para um organismo internacional que defende os direitos das mulheres denunciar estupro e violência em massa.

A gente pode ir numa conferência do clima com mais propostas do que representantes, a gente pode questionar que ela aconteça em um dos países mais poluidores do mundo e também tentar entender porque a usina de Belo Monte continua operando sem licença ambiental, aqui, debaixo do nosso nariz.

Mas tem uma coisa que a gente não pode fazer. Tem uma coisa que a gente não deve fazer: mentir para as crianças.

Mentir dizendo que estamos preocupados mas está tudo bem, mentir dizendo que a gente está cuidando do futuro delas. Mentir convence a gente que acredita no fim da guerra e que Belo Monte vai fazer as compensações ambientais que se comprometeu a fazer.

Mentir para uma criança é feio.

O mundo deles não vai ser legal.

Ainda q a gente consiga parar as guerras e fazer a ONU Mulheres reconhecer que houve crimes hediondos contra mulheres em 7 de outubro, ainda que a gente consiga sentar pra negociar um cessar fogo na Palestina e na Ucrânia e na Armênia, ainda assim, a gente não vai conseguir evitar que o mundo entre em colapso ambiental se a gente não colocar os principais interessados no futuro, no centro da questão, no centro da mesa, no centro dos debates e das decisões: as crianças.

Esse é a linda briga do ALANA com a UNICEF na COP de Dubai. Veja o filme.

 

A imagem e a verdade

Quando os terroristas do Hamas invadiram o Sul de Israel, muitos deles tinham câmeras ajustadas em seus uniformes. Para quê? Haja visto o horror testemunhado depois, não parece que a motivação tenha sido prevenir “abusos”, como é o caso das câmeras da polícia em algumas cidades do mundo.

Se numa guerra, a primeira vítima é a verdade, nas redes sociais, a primeira vítima é o direito à neutralidade.

Quando uma imagem é postada numa rede social existe uma espécie de ditatura que recusa o direito à neutralidade. Ver é implícita e perniciosamente renunciar ao direito de nem concordar, nem discordar. Isso sem falar de quem vê e espalha, mesmo que seja repudiando. Somos vítimas de uma corrida maluca que nos obriga a ter lado, ter um lado. A ditadura da imagem nos impõe sermos pró um ou pró outro. E ao ser pró um, somos anti outro. E vice-versa. Somos todos antisemitas ou islamofóbicos.

Já se dizia o mesmo da mídia quando as redes sociais nem existiam. O consumo da informação em contínuo também nos fazia correr para o abismo. Mas a mudança, com as redes sociais, é de nota, porque a regra de ouro é performar. Como se performar fosse sinônimo de informar-se. Como se performar fosse sinônimo de analisar. Performar é apenas ser o mais rápido da turma, mesmo que seja com o prejuízo da verdade.

Já estamos em queda livre.

A menos que, a gente siga o conselho do meu amigo Joaquim que, do alto dos seus 8 anos de idade, ficou 3 dias fora das redes e conseguiu dormir melhor.

Você confia em quem vende recomendação?

Existe uma resposta famosa nas redações de jornais quando o editor pauta um assunto sem debater com os jornalistas: “A favor ou contra? Em quantas palavras?”.

Cinismos à parte, qual é o “erro” das plataformas de “curadoria” de conteúdo que automatizam as recomendações? Sou cliente da Amazon há décadas (duas, quase), e até hoje, com toneladas de dados sobre mim, dificilmente acertam. Essas plataformas partem da lógica simplória (ou comercial) de que aquilo que é popular tem mais chances de agradar. Os algoritmos são todos construídos com esse raciocínio. Na verdade, a lógica deles é: o que é popular tem mais chances de vender.

Vejamos com as plataformas de música. Meu caso pode parecer atípico, mas as plataformas puramente comerciais de recomendação de música falham incessantemente quando tentam trabalhar com a música dita “de concerto” ou clássica por exemplo. Há pouco tempo, a Apple anunciou sua grande virada, e quem já testou pode constatar como é ruim. Por quê? Não é só porque a música clássica não se classifica pelos mesmos critérios da música não clássica (uma obra pode ter inúmeras interpretações, formações e versões, tem nomes que se repetem, números de “opus” variados, tem durações extremamente variadas, são divididas em trechos/movimentos com silêncios ou sem silêncios no meio dependendo da versão, etc) mas principalmente porque qualquer escuta artística (inclusive para a música popular, é claro) não reage de forma previsível.

As plataformas comerciais de música baseiam seu modelo de negócio em popularidade, e como a popularidade perpetua a obviedade, o lugar-comum, o que todos gostam, a imprevisibilidade da apreciação ou gosto artístico (insisto, inclusive para a arte popular) resulta em recomendações insatisfatórias ou, no mínimo, decepcionantes.

Outras plataformas, criadas com uma lógica diferente, qualitativa, (Idagio para os amantes da música de concerto por exemplo), acertam mais nas recomendações, porque o gosto se desenvolve mais pela experimentação do que pela repetição. O “algoritmo” dessas empresas, como é o dos programadores de salas de concerto, museus e outras entidades artísticas é mais complexo e sensível do que a simples repetições de padrões de popularidade basais, vide vulgar.

É muito razoável acreditar que existem (ou existirão) Inteligências Artificiais capazes de desenvolver padrões de gosto muito sofisticados. É altamente provável até que esse poder computacional e técnico já esteja à disposição. Mas é pouquíssimo provável que ele seja experimentado porque não teria sentido econômico nem escalabilidade.

Por que a Wikipédia é um dos mais fabulosos conteúdos que a internet nos proporciona? Porque seu modelo de negócio – se modelo de negócio há – não é baseado em popularidade.

Com tanta inteligência concentrada nas plataformas comerciais, seria pretensioso achar que é um erro ou um acaso. Como seria um erro histórico achar que são inocentes as intenções de quem constrói sistemas com esse tipo de filosofia. Desde os primórdios, existia a intenção de ganhar dinheiro, e não a de fazer o certo ou o melhor.

Há dias em que eu tenho muita vontade de ser lobotomizado pelo “mais visto, mais ouvido ou mais falado”, então surfo nessas ondas de piscina quentinha até adormecer. Mas não é todo dia, porque a vida é curta, e só tem uma – como dizia uma propaganda: a minha. Quando quero viver minha própria vida, e não a dos outros, as recomendações falham grosseira e irritantemente. Nesses momentos, procuro quem não coloca a grana acima do gosto e do bom gosto. Nessas horas, vou procurar quem evita encher de programática seus canais, não importa se são plataformas, empresas, influenciadores, pessoas comuns. Porque quem me aconselha, nesse caso, pensa na qualidade, no aprofundamento, no conhecimento de causa. Aí, eu me entrego e surfo em um mar cheio de surpresas, novidades, novas praias.

Por que é legal fazer uma criança comer alcachofra e brócolis? Por que é legal uma criança ouvir Mozart e Miles Davis? Por que uma criança deve ler mais e ver menos plataformas que criam tiques e toques? Por que a gente falha catastroficamente deixando que elas só comam macarrão com manteiga, só ouçam música vulgar e não saiam do scroll nervoso? A gente falha catastroficamente quando acha que o gosto vem do comum, do mediano, do mínimo denominador comum. A gente falha catastroficamente quando a gente educa, vive, ganha dinheiro e vota assim.

As novas skills

Em uma pesquisa rápida (e totalmente não científica) nesta plataforma, percebe-se que uma boa parte dos currículos postados incluem, com destaque, dois tipos de predicados muito valorizados. O primeiro diz respeito ao que chamarei aqui de Person-to-watchismo, e o segundo, apelidarei de Palestrismo.

O Person-to-watchismo compreende aqueles predicados, doravante profissionais, que consistem em anunciar um destaque em perspectiva. É uma espécie de por vir, de promessa, de “honoris-futuri-causi” (em uma livre vulgata do latim) ou, mais precisamente, de qualidade de ser um potencial. Em tempos de redes sociais, é uma distinção que significa, para a pessoa autointitulada, que esta precisa se provar uma “metralhapostadora” de conteúdos autoelogiosos. Para os demais, o Person-to-watchista deve ser seguido e julgado com a mortífera sentença dos analytics de emoticons elogiosos.

Resumidamente, se você é um Person-to-watchista, significa que não chegou lá ainda, que continua na fila do pão. Mas está quase.

Já o Palestrismo quer dizer que você chegou aos píncaros da glória. Que você já é um exemplo a ser seguido, que já pode reivindicar citações e, por que não, como ex-presidentes norte-americanos, uma biblioteca em seu nome. O Palestrista costuma falar na primeira pessoa do presente para narrar sua biografia: “em 1990, eu crio minha primeira start-up”, “em 2000, ganho meu primeiro prêmio”, “em 2010, conquisto meu primeiro milhão de seguidores”. O Palestrista justifica todas as suas opiniões, visões de mundo, valores e conquistas à luz de sua própria trajetória. É porque ele nasceu onde nasceu, comeu o que comeu e sofreu o que sofreu que ele palestra. O seu suor, emocionante e exemplar, é o que lhe dá cartas de nobreza do direito à palavra.

Resumidamente, se você é um Palestrista, significa que o comércio de sua vida tem muito valor, e suas ideias também. Mas menos.

ChatGPT: o plágio está nu

Não vamos desperdiçar nosso espaço explicando o que é ChatGPT: pergunte diretamente a ele. Ele irá se autoexplicar de forma convincente, mas o que provavelmente não dirá é que seu método já estava sendo praticado há muito tempo.

Uma enorme parte de tudo o que se produz de texto na imprensa, nos lançamentos editoriais e, claro, na digisfera parece ter sido feita por uma mentalidade ChatGPT premonitória. Não foi o ChatGPT que inventou a platitude, mas a liberação da palavra nas redes socias distribuiu títulos de influenciador aos mais loquazes. Assim, somos submergidos diariamente por uma massa flácida de mediocridades com ares de sabedoria. Para somar esforços a essa inundação, o escrutínio da opinião alheia e certo moralismo castrador completam o afogamento.

É claro que o poder dessas ferramentas tem mão dupla.

De um lado, seu potencial de fomentar movimentos antidemocráticos e radicais é enorme. Em primeiro lugar, o comportamento dessas “inteligências” é preditivo, e não factual: não dizem a verdade, e, sim, o que queremos escutar. Em segundo, elas aprendem por regularidade (probabilidade) a partir de uma base de dados preestabelecida, cuja fonte é opaca, e não revelada. Assim, é relativamente fácil inundar a “complosfera” de teses falsas a serviço de um ideário qualquer e de maneira convincente. O ChatGPT, por exemplo, pode ser tão útil para esse fim que já há movimentos construindo uma contranarrativa de disfarce, segundo a qual essa tecnologia estaria a serviço da grande imprensa e da academia (os inimigos de sempre) para implantar um comunismo “raiz” nos países ocidentais. Tudo é tão fascinantemente complexo que o Google já planeja lançar uma ferramenta para desindexar de sua busca os conteúdos gerados por essas ferramentas, ao mesmo tempo que existem também IAs criadas para identificar conteúdos gerados por IA (obviamente oferecidas pelos inventores da ferramenta inicial).

De outro lado, as ferramentas de inteligência artificial podem ser uma redenção – especialmente aquelas capazes de estabelecer um diálogo que refina a pergunta.

O que fascina no ChatGPT não são suas proezas criativas. Convenhamos: se ele fosse capaz de alguma criatividade, começaria por se autobatizar com um nome um pouco mais interessante, como a ferramenta de inteligência artificial de imagem chamada Dal-i. O ChatGPT não é um criador, é um maker. Mas também é um dedo-duro: graças a ele, a “plagiosfera” ficou, repentinamente, desmascarada. É como se, da noite para o dia, todos os textos “autorais”, análises “críticas” e artigos “opinativos” que “copy-colam”, com consciência ou não, pudessem ser substituídos, com incremento de qualidade, por uma ferramenta automatizada. O ChatGPT e essa “inteligência” artificial vão substituir muita produção de conteúdo e aposentar um sem-número de produtores!

Ou melhor: essas “inteligências” vão separar o que precisa de cérebro, sensibilidade e estudo (ou o que já foi chamado, um dia, de inteligência) daquilo que precisa só de uma máquina, algoritmos e nuvens de armazenamento. Essas “inteligências” também vão substituir todas as pessoas que as usam hoje, achando que estão sendo espertas ao plagiar dissertações, defesas, ensaios, artigos e trabalhos de escola. Na verdade, essa gente espertalhona já fazia isso antes com um pouco mais de trabalho. Antigamente, copiava-se da enciclopédia ou da Wikipédia. Hoje, é só pedir um PF (plágio feito) ao ChatGPT. É claro que essas novas tecnologias causam um problema temporário e uma confusão passageira. Professores, jornalistas e publicitários do mundo inteiro estão alarmados. Mas se eles forem mesmo professores capazes de cativar alunos, jornalistas que curtem garimpar as fontes, publicitários que saibam surpreender os consumidores, seus empregos estão mais do que garantidos – serão até mais valorizados.

A “inteligência” artificial, o oxímoro mais hype dos últimos anos, é, portanto, um grande passo para a humanidade. Vai revalorizar a criatividade, a verdadeira. Muito mais do que se suspeita ou se previu.

Até o final da década de 1960, a técnica usada para o salto em altura era o método straddle, que substituiu o salto tesoura. Se perguntássemos, na época, a uma ferramenta de “inteligência” artificial hipotética como saltar em altura de forma ideal, nenhuma teria sido capaz de sugerir o salto de costas que Dick Fosbury realizou em 1968, nas Olimpíadas do México. Dick foi medalha de ouro, e seu salto virou a técnica mais usada pelos atletas em todo o mundo. Uma inteligência natural que nenhuma “inteligência” artificial é ainda capaz de criar.

Inteligência artificial mente?

“Ninguém nunca perdeu dinheiro subestimando o gosto do público”, disse Jack Warner, ou Samuel Goldwyn, ou H. L. Mencken, ou o Tio Patinhas.

Perguntei a uma inteligência artificial de quem era a frase, e, cada vez que eu duvidava de uma resposta e sugeria outra, ela gentilmente se desculpava e concordava com minha sugestão.

Ninguém nunca perdeu dinheiro subestimando uma inteligência artificial.

Ou, continuando a paráfrase, ninguém nunca perdeu dinheiro “chutando”. Ou ninguém nunca perdeu dinheiro mentindo. Melhor ainda: ganha-se dinheiro subestimando o público, “chutando” e mentindo – há muito tempo.

Napoleão mentia muito quando propagandeava suas derrotas como vitórias. Ridley Scott também mentiu filmando o bombardeio da pirâmide, pintando uma Josephine muito mais jovem que seu marido ou dizendo que Napoleão só pensava “naquilo”.

Licença política, publicitária, poética ou artística?

Em “O nome da rosa”, de Umberto Eco, Jorge de Burgos e Guilherme de Baskerville debatem sobre o riso. Este pode ser fonte de dúvida e, por isso, deveria ser proibido para o bibliotecário. O riso é o apanágio da racionalidade humana e, por isso, deveria ser encorajado para o aristotélico Baskerville.

E se, em vez do riso, falássemos da mentira – também atributo próprio do ser humano?

Nunca ninguém perdeu dinheiro fazendo rir. E talvez nunca ninguém tenha perdido dinheiro fazendo as pessoas mentirem.

Somos “team Burgos” ou “team Baskerville”, quando uma inteligência artificial mente?

Licença computacional existe?

 

Marca sem propaganda é corpo sem calor

Em Haroun e o mar de histórias, Salman Rushdie conta um mundo em que as histórias acabaram. Todas as histórias viraram fios soltos, à deriva.

Se uma marca é a encarnação de um produto ou de uma empresa, o papel da propaganda é insuflar-lhe vida, é dar-lhe personalidade, movimento e rumo. Uma marca sem propaganda é como um computador sem bateria, um prato sem comida, um corpo sem calor.

Damos o nome genérico de “propaganda” a muita coisa: um logotipo que pula, uma foto de produto, uma frase de efeito, um texto recitado, um ator sorrindo. Tudo é propaganda, mas muito pouco disso sozinho dá personalidade, movimento e rumo a uma marca.

A gente faz a maior confusão quando acha que apenas um formato ou um suporte é suficiente para convencer alguém a aderir a uma marca. Um filme, um depoimento, um product placement ou uma manobra de PR não dão personalidade, movimento e rumo a uma marca – tampouco uma fórmula, um pacote, um algoritmo de plataforma de mídia. Não, não é suficiente.

A gente também confunde tudo quando ainda raciocina como o sobrinho rico de Freud, o Big Brother de 1984, o Mechanical Hound de Fahrenheit 451: como se as pessoas fossem frágeis, manipuláveis e suscetíveis. Repita, insista e persiga; repita, insista e persiga até as pessoas agirem como desalmadas autômatas. Nada disso dá personalidade, movimento e rumo a uma marca – e não deveria ser chamado de propaganda.

Uma marca precisa de história. Nem um logotipo saltador nem um funil aprisionador são suficientes para contar uma.

Comece com uma ideia, desenvolva-a em uma sinopse, construa uma estrutura, escreva um roteiro e dê vida a ele. Não pense no formato nem no suporte. Não pense no que está na moda nem na palestra que viu. Conte uma história, só isso. Depois, se quiser, capriche com logotipos animadinhos, fotos lindas, frases impactantes, textos bem escritos e bons atores, além dos scripts, dos stunts, dos placements, dos influencers, do messy middle… Depois, não antes.

Em Haroun e o mar de histórias, Salman Rushdie conta um mundo em que as histórias acabaram. Todas as histórias viraram fios soltos, à deriva, escuridão, silêncio, logotipos que pulam, fotos, frases, textos recitados, atores perdidos, algoritmos, desalmados algoritmos autômatos. Haroun parte, então, para reatar os fios perdidos desse mundo triste, desse mundo sem história, desse mundo com propagandas de fórmulas prontas e automatismos estéreis, que não deveriam ser chamados de propaganda.

O ardil sinistro nas redes

Em Emílio ou da educação, o filósofo francês Rousseau ensina ao jovem Emílio que falar de si é vulgar. Madame de Sévigné e Whoopi Goldberg também acham. Mas não é isso o que prega o manual do influencer de sucesso em redes sociais.

Do outro lado da cerca, seguidores gostam da falta de vergonha. Que ninguém venha com filosofias, análises e, muito menos, poesia. Quem bebe o sangue dos exibidos se inspira nas narrativas autobiográficas do dia a dia.

O conteúdo-astro das redes, portanto – porque arregimenta seguidores e engajamentos eufóricos –, é a futricagem pessoal temperada de muitas mentiras e fabricações. A vida dos ricos e famosos sempre fascinou; a diferença, agora, é que todo mundo pode parecer rico e famoso: é só escolher o ângulo, ter uma ring light (a partir de R$ 15,00 nos melhores marketplaces) e gostar de pose.

Mas também é possível que isso ocorra por causa de uma interpretação equivocada de “lugar de fala”. Segundo esse entendimento precipitado (“cale-se, esse não é seu lugar de fala!”), só pode falar sobre determinado assunto quem o estiver vivenciando como personagem central no contexto. O perspectivismo, no entanto, nunca pretendeu inibir qualquer fala, mas, sim, ressaltar a importância de sempre identificar de que lugar a pessoa fala e, principalmente, dar voz para quem tem lugares de fala distintos (de diferentes tipos de opressão).

É claro que cada um é livre para lidar com sua própria miséria como quiser. Exibi-la ou escondê-la é uma questão de gosto (ou mau gosto). Nenhum lugar de fala sacraliza o que se fala. Menos nas redes sociais, em que o exibicionismo justifica qualquer bobagem ou desvio (“é minha experiência, então ‘pronto-falei’”).

As redes sociais são um banco de dados fascinante sobre o egoísmo. Rousseau não conheceu esse palanque nem suas versões presenciais, que são nossos eventos, conferências e outros palcos em que o “eu soberano” se manifesta com todas as vergonhas de fora. Na época do filósofo, só havia observação vivida, mas ele já tinha sacado que o individualismo é uma merda.

A merda é quando a experiência individual é instrumentalizada para manipular opiniões. O difícil é quando as visões do mundo, da sociedade e do outro derivam exclusivamente da irradiação mesquinha do umbigo. Esse estratagema, anabolizado pelo palco fácil das redes (e o fomento comercial da influencer society), castra o contraditório. Quando a experiência individual inicia a narrativa, a defesa das causas, por mais nobres e necessárias que sejam, vira um ringue cheio de ódios e ressentimentos, sem complexidade e maniqueísta. Quando o “eu” destrona o lugar de fala do “outro”, por qualquer que seja a deriva identitária, perdemos para sempre a busca pelo bem de todas as pessoas. É pelo próprio bem e pelo bem do seu grupo de iguais que os influenciadores falam, e não pelo bem de todas as pessoas. É assim para qualquer assunto: da moda mais prosaica à defesa de interesses comunitários, da cria de gatos à escolha de candidatos a cargos eletivos.

As redes sociais eram a promessa de um ambiente democrático e livre, bem como de uma aldeia global sem divisões e com espaço para criar relações de intercâmbio socioculturais. Uma promessa de construção de um coletivo humanista que acolheria diferenças para edificar – pela miscigenação pacífica e pelas respeitosas visões de mundo – um futuro mais justo. Mas as redes sociais e suas vis explorações se tornaram o ardil moderno de uma visão de mundo desenterrada dos escombros das correntes totalitárias mais primitivas.

Talvez ainda seja cedo para fazer um balanço – entre ganhos e perdas – da revolução provocada pelas redes, mas os indícios são de mais egoísmo, mais divisão entre perspectivas distintas, mais separação entre mundos diferentes e mais acirramento de irreconciliáveis disputas de pontos de vista. A bagunça é grande e muito perversa (ainda?).

Como dizia o grande poeta martinicano Aimé Césaire, a luta contra o antissemitismo não é a luta dos judeus: é a luta da humanidade inteira. A luta contra o racismo não é a luta dos negros: é a luta dos judeus, dos uigures, dos palestinos, dos mundurucus, dos brancos com ou sem privilégios de classe, de todos os gêneros, de todas as identidades.

Rousseau, autor do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, teria muito a falar sobre o estado atual da sociedade e o sub (ou será supra?) mundo das redes. Seria um crítico lúcido das bolhas identitárias que essas redes cultivaram e ficaria fascinado com o individualismo exponencial da era moderna. E, como em seu tempo, seria perseguido (ou cancelado) por publicar pensamentos livres e sem amarras ideológicas.

As redes sociais assumiram tamanho protagonismo na construção da nossa sociedade, substituindo o debate público pelo debate enclausurado entre membros já convertidos, que é tempo de reagir criticamente. Já é tempo de se perguntar por que pessoas outrora abertas abraçam teses “complotistas” como se fossem dogmas divinos. Já é tempo de se preocupar sobre o modo como estamos preparando filhas e filhos, pois os muros estão cada vez mais altos, e os bunkers virtuais, mais impermeáveis, pouco diversos e tristemente furiosos.

O engajamento tóxico

Se aparecer uma postagem na sua rede social favorita dizendo que as vacinas são eficientes contra determinada doença em 90% dos casos, você acredita tranquilamente. Mas, se meia dúzia de scroll abaixo, outro post afirmar que as vacinas podem causar infertilidade ou impotência, qual será sua reação? (Repare que a segunda postagem é menos exata – e isso não é sem importância.) É quase inevitável que você clique no link, se houver um, e/ou procure mais informações em alguma ferramenta de busca. Até aqui, tudo aparentemente indolor, a não ser pelo fato de que, em algum lugar, esse comportamento está sendo armazenado (ou vigiado). Na verdade, sabendo ou – mais provável – não sabendo, você acaba de acionar uma engrenagem bem pensada.

Acontece que, naquele lugar em que o seu comportamento de clicar ou buscar mais informações sobre a notícia que lhe deixou com curiosidade (preocupação ou pavor), uma máquina vai interpretar que você tem interesse em “vacinas que provocam infertilidade” ou simplesmente “fertilidade ameaçada”. Esse lugar, plataforma ou rede social, vai, portanto, atender a esse interesse e lhe propor, mais vezes, conteúdos relacionados a esses temas por um motivo prosaicamente econômico: a empresa que gerencia tais dados é remunerada por aquilo que o jargão chama de “engajamento”, ou seja, o interesse que provoca uma ação (clicar, comentar, compartilhar). Quanto mais “engajamento”, mais receita publicitária que remunera tanto a plataforma – “mera” intermediária (ou pelo menos, é a argumentação que esta usa para isentar-se de sua responsabilidade jurídica sobre a legalidade do conteúdo) – quanto o produtor do conteúdo (aquela pessoa ou empresa que criou um conteúdo sobre “vacinas com risco de esterilizar”).

Continuando o raciocínio, é muito fácil entender, então, que quanto mais engajamento um conteúdo tiver, mais dinheiro vai receber; quanto mais dinheiro receber, maior será o interesse em criar conteúdos engajadores. E, como os conteúdos mais engajadores são aqueles que tocam nossos medos e culpas, a própria lógica de remuneração das plataformas impulsiona a criação de conteúdos que acionam essa engrenagem. Não é ideológico, é simplesmente econômico.

Tem mais: existe outra lógica por trás desse thriller. Todo conteúdo é sempre cuidadosamente classificado pelos próprios criadores para que as máquinas – animais burros, mas capazes de aprender – possam interpretá-lo. Pois bem, se o conteúdo for bem classificado, por exemplo, na rubrica “infertilidade” ou “impotência”, o engajamento não somente garante mais dinheiro como ainda por cima assegura capacidade preditiva. Em outras palavras, quanto maior o engajamento, mais fácil será antecipar o que as pessoas “querem” ver e, assim, retroalimentar o sistema.

Resumo da ópera: por que existe interesse político em desacreditar a vacina (para ficar apenas nesse exemplo)? Simples: porque isso engaja mais. E, se engaja mais, é oportunismo “ideológico” e, indiretamente, “econômico” criar, divulgar e remunerar conteúdos sobre o tema.

A referência à vacina é ilustrativa (podemos falar de qualquer outro assunto – não necessariamente fake), e, embora seja um caso patente de desinformação, o estrago na opinião de milhões aconteceu. E o estrago na decisão política de muitos, por pouco, não ocorreu.