Se você já teve a chance – ou o azar – de atualizar seu software de edição de texto (ou se você usa a versão na nuvem), já pode ter reparado que o diligente e atencioso programa tem se preocupado com a qualidade de sua redação. Ele percebe seus deslizes, suas hesitações ou sua falta de atenção, e uma mosquinha interrompe seu trabalho, sugerindo um empurrãozinho: “Amigo, você está cansadinho, quer uma ajuda?”. Se você resolveu voltar pra casa a pé e, três vezes seguidas, um táxi passa na sua frente com a luz acesa, é possível que, na quarta, você sucumba e volte para casa: “Ah, uma vez só, eu mereço.” Se você está chateado e com fome, e três vezes um chocolate sorri pra você na ponta de uma gôndola, na quarta, é provável que um simpático diabinho lhe sussurre: “Ah, são só 200 calorias, só hoje vai!”
E assim, você enfia o dedo no pote e aceita o “nudge”. E não é que ficou bom?
Então você raciocina e conclui que os deuses do algoritmo estão querendo que você se concentre no principal e deixe os detalhes para lá: a ortografia, a acentuação, o sinônimo, o melhor adjetivo, o verbo mais preciso, o substantivo mais original, o estilo. E daqui a pouco, você pede mais e mais empurrãozinhos e solicita ajudas maiores, cada vez maiores. O dedo vai cada vez mais fundo no pote.
Até que um dia, você vira um Nutella.
Vamos colocar de lado o perturbador fato de que, ao aceitar a ajudinha calórica – o “nudge” – você também está enviando seu texto, logo, suas ideias, aos deuses do algoritmo.
Mas ninguém faz nada apenas por interesse. Mesmo o mais odioso dos tiranos, o mais frio dos déspotas ou o mais calculista dos deuses do algoritmo tem um sistema de valores e pensa que, ao fazer aquilo que fazem, o fazem para o bem. Sempre existe uma moral, e, nesse caso, os deuses do algoritmo acreditam que não sabemos o que é bom para nós e que, portanto, eles precisam nos ajudar porque eles sabem. Para aqueles que acreditam que tudo não passa de uma tramoia pra enriquecer às nossas custas, então é melhor assumir que são luditas revolucionários. Tem seu valor. Para aqueles que acham que tudo não passa de pecadinhos irrelevantes, melhor continuar sonhando em morrer Nutella antes do pote secar. Vale também.
Mas para todos os outros, aqueles que gostam e valorizam o pensamento original e a singularidade das ideias, precisamos temperar o “nudge” da Inteligência Artificial. IA não é mágica: é média. Com cálculos de correlação entre aquilo que você está produzindo e aquilo que está disponível na internet (portanto em bilhões de coisas correlatas), a ferramenta lhe sugere uma média do resultado, com a crença de que essa média é melhor do que você. Repetindo: a média é melhor do que você. Se você acha isso de si mesmo, talvez você já seja um creme de avelã com chocolate. Tudo bem.
Mas um criador procura a média ou a singularidade?
Ser um Nutella talvez seja bom. É o que pensam os deuses do algoritmo. Quanto mais Nutellas, melhor.
Mas quem alguma vez já teve o interesse, a pretensão ou o sonho de produzir algo original (um texto, um desenho, um bolo, um raciocínio, um sonho) sabe que é nos detalhes que reside a ideia. É na busca do adjetivo, do verbo, da cor, do ritmo, do estilo, é nas idas e vindas, no tropeço, na dúvida, é no peneirar com paciência e disciplina que o ouro brilha, pequenino, solitário, no fundo da bateia. A singularidade não reside na média.
Dedo no pote pode. Mas, como tudo, resistamos aos automatismos, às renúncias, aos empurrões tentadores e servís.
Esse texto foi livremente inspirado pelo livro La fin de l’individu de Gaspard Koenig.