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Povo é nossa matéria-prima

A boa moral católica não aprecia muita transparência de propósitos, e quando uma linguagem serve a um interesse sem subterfúgios é feio. Assim, a propaganda é, das linguagens de comunicação, a menos “nobre”. Sua franqueza (“é pra vender mesmo, tá?”) não lhe permite comparar-se com outras de mais elevados (e sorrateiros) interesses – a linguagem artística e a jornalística, por exemplo. Mas vamos cometer o pecado da comparação.

Por linguagem, entenderemos aqui o elo entre uma ideia e um público receptor. A linguagem é aquilo que usamos para codificar, traduzir e transmitir. É o que dá sentido ou compreensão à mensagem.

Ao separar os três tipos de linguagens – artística, jornalística e publicitária –, façamos um esforço teórico para evitar as intersecções mágicas. Um artista pode expressar-se com uma linguagem publicitária (Nelson Leirner?), um publicitário, com uma artística (Paulo Leminski?), um jornalista, com uma artística (Rubem Braga?), ou vice-versa para não ser xingado. Mas, para qualificar com precisão as diferentes linguagens, tentaremos entender as motivações (não as inspirações)  autorais por trás de cada linguagem.

Será que dá?

Um artista tem compromisso com a sua expressão individual. É garimpando na profundeza da sua alma que ele desenvolve a sua ideia. Essa ideia tem e sempre terá um público incerto, não premeditado, que irá na obra reconhecer-se, emocionar-se, inspirar-se. A motivação do artista é, portanto, individual, autocentrada, egoísta. É por isso que tantos foram e são incompreendidos ou amaldiçoados.

O compromisso do jornalista, por sua vez, é com o relato do fato histórico. É apurando, pesquisando, consultando, ouvindo e relacionando fontes que ele se exprime. O público que ele alcança é definido pelo hábito e também com objetivos de instrumentalização da informação. O jornalista é um observador do real, um retratista da verdade, ou da verdade que ele consegue depreender de sua própria subjetividade. Sua motivação é, portanto, científica. É por isso que muitos são perseguidos ou censurados.

Finalmente, o compromisso do publicitário é precisamente com o público definido como alvo do produto ou marca para o qual ele trabalha. É sensibilizando-se com as aspirações e desejos, hábitos e comportamentos ou níveis de compreensão e preconceitos das pessoas que serão impactadas pela sua mensagem que ele esculpe sua ideia. Um publicitário é um farejador, um animal com enormes orelhas e olhos em todos os membros. Sua motivação é escancarar-se para o povo. É por isso que somos vistos por artistas e jornalistas como prostitutos.

Dar-se conta dessas fundamentais diferenças entre as linguagens separa muito o joio do trigo. E na propaganda, naquilo que fazemos e gostamos de fazer, a gente fica se perguntando por que diabos tem gente que gosta de inverter as motivações.

Tem gente que inventa e acha que a motivação individual – artística – é primordial na propaganda, e dá no que dá: propaganda de museu. Tem gente que inventa e acha que a motivação pode ser factual – jornalística – e que chata que é essa propaganda-conteúdo. Fora a confusão.

Por treino e por talento, o publicitário fala melhor com o povo do que o jornalista e o artista.

Se publicidade é cultura, se grafite é arte, se podemos usar (de novo) a Sarabanda de Handel ou o Adágio de Samuel Barber numa propaganda, se podemos dizer que xixi no banho vai salvar a Mata Atlântica, interessa menos, contanto que o povo (que não é burro nem surdo) ouça.

Esse artigo foi originalmente publicado no Meio & Mensagem de 28/02/2011

A propaganda faz da arte gato e sapato

Ele começou fazendo grafitti, desses que cobrem as cidades, já invadiram as galerias de arte e são o sonho de toda desperate housewife em incontinência cultural. Arte é hype, dizia uma flamejante empresária da moda.

Disseram-lhe que sua atividade sujava a cidade, então ele resolveu decalcar limpeza nas paredes sujas com pistolas de água.

Continuou incomodando então fez pequenos atentados à publicidade que cobre o espaço urbano, furou os olhos dos modelos fotografados e também seqüestrou um deles em Berlim, com pedido de resgate e tudo.

Zevs tem um apreço especial por marcas de luxo que ele liquefez no seu trabalho de intercâmbio cultural com a industria da alta moda.

Hoje, ele faz grafitti invisível que por não poder ser visto, não incomoda mais ninguém. Só quem passeia à noite com uma lanterna de luz negra.

Zevs foi o palestrante do terceiro Pense Moda, um evento que tenta resgatar o universo da Moda da lobotomia massificadora. Na platéia, estudantes, jornalistas, publicitários, estilistas e correlatos esfomeados. No palco, um show de doce cinismo. Entre os dois, um revelador  mau estar, como aquele provocado pelo mictório de Duchamps quando foi exposto pela primeira vez. Uma luta silenciosa de Haikido.

Sua palestra foi uma performance do improvável diálogo entre dois avessos. Uma performance que reafirma as diferenças de propósitos, inconciliáveis, entre manifestações artísticas e comerciais.

A arte contesta, debate, discute por discutir, por debater, por contestar. A propaganda, se contesta, se debate, se discute, é para seduzir, embriagar, vender.

A Coca-cola gostou da ideia de Zevs e seqüestrou garrafas na sua própria propaganda. Mias uma daquelas enganações grosseiras tão em voga nos festivais. Não teve a menor graça e foi um epic fail.

Que energia perdemos e frustração nutrimos quando a propaganda se finge de artista.

Na propaganda, copiar pode?

Para Lautréamont, do encontro de um guarda-chuva e uma máquina de costura depreende-se a verdadeira beleza do improvável. O choque do sonho com a realidade.

A propaganda já foi humorística como Cervantes, realista como Zola, surrealista como Breton. Quando ela não resolve ser simplesmente estúpida como emerge dos ajustes de pesquisa ou vulgar na conclusão precoce de sua eficiência comercial, já soube (e sabe) se inspirar.

Não é pretensioso nem vergonhoso ser capaz de beber na fonte de referências artísticas para criar um produto a serviço de interesses da sociedade de consumo. Ainda é preciso conhecê-las, claro, e curti-las a ponto de poder libertar-se.

Nas artes, o “done that, been there” é uma sentença severa que precipita as obras no esquecimento ou no desprezo. Circular por caminhos já traçados e brilhantemente explorados não passa de exercícios. A obra artística verdadeira, no entanto, propõe novos desvios e jornadas.

Na propaganda, o “done that, been there” é legítimo?

Depende daquilo que se entende por propaganda.

Se a propaganda responde a objetivos mensuráveis de vendas, participação de mercado ou quaisquer outras leituras de imagem, restringe-se seu papel a uma função. Assim, a cópia, a imitação é apenas censurável na medida da sua memória. Copiar o que foi esquecido pode.

Mas, se acreditamos que propaganda também é cultura e temos convicção de que através desse desígnio elevado os objetivos mensuráveis são potencializados, a propaganda tem um papel, e não só uma função. E o “done that, been there” amplia-se para além do tempo. Copiar não pode.

Essa é a diferença entre as duas visões do ofício publicitário e marca todos os debates.

Alguns professam o “fazer” imediato, o “criar” para um fim profano.

Outros rezam o “transformar” no tempo, o “criar” para um fim sagrado.

E não é questão de escolha, mas de fé.

Arte vaga no museu, na rua e no banheiro

Tem a arte pela arte, a arte da rua e a arte no banheiro do Geraldão. A palavra é um poço de indefinições, como amor e morte. É por isso que é menos desesperador encarar as negativas. Amor é o contrário de ódio, e esse sabemos muito bem reconhecer. Da morte nem sabemos de que inverso é.

Arte é o contrário do que fazemos se não somos artistas. Tricô, crochê, macramê, decapê, bricolagem, origami, jardinagem ou propaganda é arte?

Andy Warhol, o cara que bagunçou tudo, arte e propaganda inclusive, dizia que arte é aquilo que não tem utilidade mas que queremos ter. Um xale de crochê para um marmanjo é arte, portanto. Um bonsai na cozinha é arte. Propaganda da Apple é arte. Um Picasso na sala de casa não é arte. Nem uma ponte de Calatrava. Nem o domo da Capela Sistina. A Primavera de Vivaldi é arte na sala de concerto e não arte na propaganda de sabonete.

Estamos no século da aposentadoria do rigor, do formalismo, dos rótulos e das definições. É o fim da picada, e a palavra arte tornou-se obsoleta porque vaga, genérica e surrada.

Mas se ainda acreditarmos que arte é a expressão de um pulso, de uma visão sublimada do mundo, então ela ainda tem sentido sempre que ainda formos capazes de sentir, sem filtro, sem medo, sem preconceito.

E talvez o mestre (mestre?) pop estivesse errado na sua definição. Arte talvez seja a única expressão autêntica que podemos exalar. Nosso tricô-reflexo e nossa propaganda-alma é arte. Nosso tricô-agasalho e nossa propaganda-tecnicista, não.

Porque somos alegres assim

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Há quem prefira o futebol, mas nossa arte plumária é metáfora para o brasileiro, seu caráter e vida.

Temos centenas de tribos, tradições, facções e simbologias peculiares, associadas à arte plumária no país. Mas o esforço de síntese exige denominadores comuns.

É da riqueza de seu colorido que o cocar brasileiro simboliza nossa gema: alegria. Sem pretensões, moldes, freios nem vergonhas. Alegres sempre vivemos.

Da variedade infinita de combinações cromáticas, que arranjam com intenção antes estética, nossos índios são tão criativos nas tradições quanto nas frouxas obediências. Criar vale mais a pena do que rezar.

Qual melhor musa podem encontrar do que inspirar a arte na natureza? O artesanal está por obra e graça da herança sobrenatural: os pássaros, emissários dos deuses. Cabe aos índios o arranjo, a preservação e a reverência. Beleza é dada.

A pena é efêmera, dura pouco, comida por insetos e pela luz inclemente dos trópicos. Mas a economia não é um conceito: os índios não sabem guardar para depois. Abundam os recursos.

É assim o brasileiro de verdade.

Nós – mestiços Europeus, Africanos ou Asiáticos – trouxemos tristeza, religiões e leis, papo cabeça, poupança para o cemitério.

E a culpa por preferir prazer, diversão e arte.