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A cultura da abundância

Armários de família costumavam ser herdados. Eram parte de um patrimônio físico e emocional inestimável e não havia uma única casa de classe média da Europa que não possuísse um desses grandes móveis de carvalho, trabalhados nas portas, que ao abrir-se exalava outros tempos, outros amores, outros sofrimentos e alegrias. A  moda era uma preocupação supérflua de minorias. A cultura da reposição era o passatempo dos nobres enfadados com o ócio. A abundância também virou aspiração da burguesia, que rivalizava assim com os carcomidos de sangue azul e o mesmo com o trabalhador face ao burguês abonado: o sonho de passear imensos carrinhos na Ikea e aumentar os limites no cartão de crédito.

No século XXI, o valor supremo das sociedades dominantes é quantitativo. Prosperidade é fator da velocidade do sucateamento. E o armário de família foi para o mercado das pulgas ou para o guarda-móvel, substituído pelo closet abarrotado.

O maior problema dos países em crise é o excesso de abundância e a falta de pobres em quantidade suficiente para consumir o descarte dos ricos.

A nossa “vantagem”, da China, da Índia, é ainda termos muitos pobres. Mas nosso azar é que só sabemos curar excesso de abundância com mais abundância.

Entrar em outlet de Miami abarrotado de brasileiros é a visão dantesca de uma catástrofe anunciada: o culto da abundância versão mortos de fome.

Improviso vale mais que trabalho

Cultura é uma palavra difícil. Mas a sua definição mais  comum é discriminatória. Não existe cultura sem “descultura”, só existe “culto” se houver “inculto”. Cultura  não tem conotação negativa. Cultura é elevação. É sublimação. É idealização.

Um seringal da Malásia, ordenado e produtivo, é uma cultura. A floresta amazônica com suas seringueiras esparsas não são culturas. Os seringais do Brasil são acidentais, improváveis, dados. Cultura é premeditação, planejamento, organização, técnica, método.

Cultura tem valor. Dom, não.

Os caras que se mataram para trazer pedra do fim do mundo e ergueram as pirâmides no meio do deserto tinham uma cultura. O índio, que cata as penas da arara e espeta num cocar, não tem cultura.

Quem rala tem valor. Bumbum pra lua, nem.

Se só cultura tem valor, então só cultura tem preço. O resto, o que vem de Deus, é de graça.

Mas não é nada disso.

Preço não é fator de esforço, mas de demanda. Vale quanto pedem, e não quanto pesa. Vale o que troca, e não o que usa. Por isso inventaram a cultura de massa, a popular, aquela que emana do dom divino com ou sem ralação. E a cultura de massa ganhou preço e valor.

A outra, aquela do sangue, suor e ouriço, danou-se. Perdeu valor porque não tem regra econômica que a justifique. Não vale mais nada.

O fatalismo é uma merda.

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Cultura oferecida

É quase impossível driblar o malho em qualquer evento cultural hoje. Se é para beneficiar-se de incentivos fiscais, para aliviar a  consciência atormentada, obter retorno de imagem ou gosto, não importa: tem grana de marca sendo investido. É bom e a gente gosta.

Se de um lado, os produtores estão mais abertos com as incursões comercias, os investidores estão cada vez mais ousados. E no limite, uma prosmiscuidade constrangedora ocorre.

Tudo bem se vivemos uma espécie de euforia, tudo bem se “cultura é hype” (sic), tudo certo, daqui a pouco tudo se acomoda.

Mas quando as manifestações culturais, de qualquer tipo, inclusive as muito populares, as muito eruditas, as muito vanguardistas, viram plataforma de mídia, isso incomoda.

O televisor de plasma na entrada, na saída, no mictório, é a praga mais recente. Mas tem também os quiosques sorridentes distribuindo brindes com trocadilhos infames e quando o João Doria resolver “investir em cultura” (sic), o audio guide vai ser patrocinado por uma concessionária de estradas, as plaquinhas indicativas por uma siderúrgica, a moldura por um fabricante de esquadrias, a iluminação vai ter intervalo comercial antes de acender e o papel higiênico vai ser oferecimento de uma ONG pela ética na política. Tudo com muita adequação, originalidade e vagabundice extrema.

Estamos virando uma espécie de casa de tolerância cultural (sem eufemismo, eu quis dizer puteiro).

Ídolo é coisa de boiola

– Dilson, quem você admira?
– Admira? Sei lá, mano.
– Seu pai, sua mãe?
– Tá louco? Gosto deles, mas não admiro, não.
– O Adriano, o Ronaldo, o Love?
– É, pode ser, um pouco.
– O Maluco, o Beira Mar?
– É. Foda.

Em Portugal, o Lobo Antunes e o Saramago dão autógrafos na rua. Escritores, poetas e menestréis são ídolos nacionais.

Os nossos são jogadores de futebol, atores de televisão, socialites e bandidos.

Se o Niemeyer, o Rubem Fonseca ou o Wesley Duke Lee tomarem o metrô, no máximo cedem o assentos pros coroas. Capaz de ninguém dar bola pro Paulo Coelho nem pro Romero Brito. Mas qualquer big brother é assediado dentro de casa.

Tiradentes não é um herói nacional, nem os Dom Pedro, Antonio Conselheiro, Gilberto Freyre, Guimarães Rosa, Aurélio Buarque de Holanda, nem o Betinho, o Chico Mendes, o Casaldaglia, os Vilas Boas.

Talvez o Padim Ciço, o Dom Helder, a Mãe Menininha, o Chico Xavier, mas esses são do reino do além como a Bispa Sonia e o Padre Marcelo.

Como não tem prova de redação pra se dar bem, a gente não lê. E como a gente não lê, não vamos  babar ovo pra quem não conhece!

Mas, se a gente é instruído mesmo, tipo a nata, classe A, aprendemos nos livros que ensinam como se dar bem em 12 lições. Ou fica por dentro com as coisas que estão rolando nas palestras, nos workshops da firma, nos eventos da HSM. Coisa fina. E boa.

Tá bom assim, porque a gente é da farra e se basta.

“A crença na cultura” de um bobo da corte

Sobre o artigo do Senhor Reinaldo Azevedo “A crença na cultura da periferia é coisa de gente com miolo mole”, na revista Veja de 05 de dezembro de 2007.

Na minha área de atividade, a propaganda: uma matéria com essa voltagem de preconceitos, falácias intelectuais e ofensas pessoais seria, com unanimidade, retirada do ar pelo CONAR, código que regula a decência e ética publicitária. Mas delitos de opinião, na imprensa, são efeitos colaterais da democracia. Ninguém criticaria a livre expressão de idéias, nem mesmo pessoas do calibre reacionário do autor do artigo.

Portanto, só nos resta manifestar-se livremente também.

Meditei longamente, portanto, e tentei encontrar, para além da racionalidade, porque fiquei tão triste. Não tenho a presunção de construir o mesmo tipo de barricadas intelectuais que o autor do artigo. Que covardia inferir sobre a possível interpretação dos ausentes veneráveis para justificar uma opinião!

Não me cabe julgar os valores do articulista, retrógado confesso. Só cabe-me questionar sobre a alternativa sugerida pelo autor. A alternativa ao patente apartheid social que nos assusta tanto e que alimenta o maior de todos os fantasmas: o preconceito.

A alternativa seria dizimar ou confinar os pobres? Como o autor quase se orgulha de ter sido feito com os “silvícolas”? Ao evocar uma certa “seleção natural”, pergunto-me, seria realmente dominante a “sua” espécie? Qual é a tese civilizatória pregada?

Não há muitas respostas no artigo, só subentendidos que tentam inverter óbvias e prováveis acusações à sua infâmia.

Pensando bem, seu artigo, Senhor Reinaldo Azevedo, não é nada além de uma boutade risível, uma acrobacia gauche, uma ilustração medíocre da vetusta inteligentsia conservadora.

O “central da periferia” diverte o povo. Bobos só divertem a corte.