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O trabalho dignifica o homem, não significa

Trabalhamos tanto e com tanta fingida paixão que é comum acreditarmos que o produto daquilo que fazemos – qualquer que seja a atividade – é o ouro do Reno. Valem todos os esforços, todos os sacrifícios, inclusive o sacrifício do senso do ridículo.

E já que é mais fácil raciocinar com exemplos, a título meramente ilustrativo, por que não usar a propaganda?

Pensemos um minuto no berço ainda tão fofinho dos publicitários: um ninho autocentrado e referenciado. Evoluímos num aquário habitado por peixes da mesma espécie que se cruzam com simulada benevolência e disfarçada competição. Para além dos espessos vidros, habitam os others, clientes, fornecedores, parceiros. Gente hostil e aproveitadora.

Nesse habitat, criamos um aparelho que regula nosso microclima. Uma espécie de termostato e distribuidor automático de alimentos chamado “Prêmios”,

Às vezes, tá um frio danado. As condições não são favoráveis: clientes rebeldes, verbas reduzidas, pesquisas castradoras, concorrência acirrada. Entra a geringonça em ação, distribuímo-nos prêmios e a temperatura volta ao normal.

Outras vezes, a comida fica escassa: os salários não sobem, as ofertas de trabalho escasseiam, os chefes estão fominhas. A máquina entra em ação, esprememos as meninges e os time-sheets e os prêmios matam a fome.

O termostato-alimentador por sua vez, é movido a fichas técnicas, o palco de todas as batalhas. No aquário publicitário, a ficha técnica é o Nirvana.

Devemos admitir que esse é um sistema muito eficiente. De dentro do aquário, ninguém ousa rebelar-se contra a máquina.

De dentro.

Mas para quem está de fora, os peixes estão nus.

O trabalho – mesmo esse – dignifica o homem. O trabalho – até esse – não significa o homem.

O Anúncio da Kia, réu duas vezes

Tudo que o homem cria estará voando em nuvens virtuais de instantâneo acesso, mas enquanto estivermos encarcerados em pele, osso e músculos, a matéria será  nossa âncora existencial.

É de péssimo gosto usar o correio e pior ainda uma rede social para enviar um convite de casamento que deve ser impresso com letra caligrafada. Por que milhões se atropelam nos museus se há séculos somos capazes de precisas e fiéis reproduções? Tudo que se escreve estará digitalizado e a leitura dar-se-á em dispositivos apropriados, mas os livros ainda reinarão para as obras dignas de papel e tinta. Obras dignas de materiazar a criação.

Semana passada, cassaram leões de um anúncio de mídia impressa, sim impressa! O anúncio da Kia foi duplamente réu.

Menos importa o coro escandalizado dos puritanos. Já não interessa tal inveja. Culpa velha.

Mais interessante é o choro dos modernos. Nada mais vale e muito menos essa mídia morta que nos sepulta. Agora só é digno de nota, de esforço, de prêmio, o que flutua na rede, o que se integra em múltiplas plataformas, o que desdobra-se, multiplica-se, em incontáveis canais, insondáveis engajamentos, inefáveis resultados. Um anúncio, criado para papel e tinta, em linguagem de HQ, veiculado numa revista que se vende em bancas? Bobageira e cafonice. Moderno sou eu!

Não tem digital integrated, então não presta?

Já tarda o tempo de inverter a lógica: não tem mídia morta, não merece nem um anúnciozinho, um filmezinho na televisão? Talvez a idéia não seja nem tão boa, tão digna, tão nobre, tão merecedora de posar, em papel e tinta, no  anuário de criação.

Cannes e os anônimos-famosos

Faz tempo que os festivais de publicidade celebram as marcas nanicas e suas proezas criativas que ninguém viu mas todo mundo adora.

Ninguém mais acredita na inocência dos jurados. Eles têm total consciência de que aquilo que estão premiando praticamente inexiste. Um restaurante, uma banda de música, uma escola de linguas são negócios pequenos em qualquer lugar do mundo. Não é esse tipo de marca que movimenta a indústria da propaganda.

A primeira explicação para esse fenômeno é poética. Como no cinema, boa arte não significaria sucesso de bilheteria.

Mas a indústria da propaganda é menos hipócrita, menos inocente também. Afinal de contas, fazer propaganda e vender são quase sinônimos. Não existe criação pela criação.

Então por que tantos cases nanicos entronizados?

Uma espécie de compensação? O gosto do pódium pelo pódium, da medalha pela medalha? Vaidade de rei nu?

A indústria da propaganda é mais séria, mais profissional também. Afinal de contas, não são só nossos irmãos de armas, publicitários, que babam com as grandes-minúsculas ideias. Os clientes também aplaudem.

Mas existe uma mensagem escandarada na celebração pública do nanismo. Quanto maior a marca, maior o risco. Quanto maior o risco, mais firme o cabresto. E quanto mais firme o cabresto, mais chata a propaganda.

Em tempo: espero que tenha ficado claro que a crítica não foi dirigida aos publicitários, desta vez.

O nome na ficha enquanto o nome na porta não vem

Tem muita coisa que mudou, mas tem um porão que dá medo de encarar: o “nome na porta” ou sua versão menos ambiciosa “na ficha”.

É deliciosamente reveladora a procissão que se arrasta todo ano atrás dos holofotes de led chinês de Cannes. Não por Cannes, nem pelo vinho, nem pela farra, nem pelo glamour murcho da riviera. Ela começa antes, muito antes. Aliás ela não começa nem acaba, ela se persegue. Estar na ficha e quem sabe um dia em letras douradas na porta, é um incentivo que vale o ridículo de mendigar 3 linhas em algum jornal, o ridículo de colecionar estátuas, o ridículo de usar todo esse ridículo para barganhar um aumento, enquanto o nome na porta não chega.

Mas essa vaidade toda é toda a virtude. Se fosse só para vender mais o bônus do cliente, se fosse só para agradar mais o bônus do cliente, se fosse só para mais bônus para nós também, ainda estaríamos batendo lata na rua do comércio. Se fosse só para fazer esse vulgar insight, esse vulgar check list, essa vulgar pesquisa, qualquer software vulgar daria essa luz.

Essa é a cruz e a calderinha do publicitário, sempre entre o ridículo e o vulgar. Dureza.

Prêmios de propaganda e a guerra imaginária

No começo, você se surpreende, feliz, com a recompensa gratuita que premia um trabalho bem-sucedido. O prêmio, que você esperava ou não, é a coroação sem compromisso do seu esforço.

Depois, você percebe também, satisfeito, que as pessoas olham para você diferente, que elas comentam antes as medalhas e depois os feitos de guerra. Seus distintivos deixam então de parecer merecimento e passam a ser uma patente que lhe qualifica.

Quando você se dá conta, orgulhoso, de que seu uniforme paramentado atrai as atenções, você passa também a agir diferente, com mais segurança e condescendência. A lapela decorada justifica a gamela nem sempre saborosa, o catre nem sempre confortável, as ordens nem sempre gentis, as mortes nem sempre justas.

Os generais também gostam de se cercar de oficiais com feitos reconhecidos. Quando assinam-se tratados, alianças e declarações, quanto mais medalhas, maior o pio. E quanto maior o pio, maior a partilha, os provimentos, as honras e mordomias.

Até que um dia, a guerra que se faz no estado-maior não tem mais nada a ver com a das trincheiras. Você se bate do bunker, vocifera ordens imaginárias e leva um tiro do mais raso dos soldados.

No começo, você ganha um prêmio em um festival de propaganda e fica feliz. Não esperava. Chora de emoção.

Depois, você ganha um aumento, uma promoção ou uma proposta e percebe que isso não caiu do céu, caiu do palco de Cannes.

Então, já com a estante a preencher-se, você facilmente perde a paciência. Sempre que o cliente parece ruim demais, o briefing tosco demais e os consumidores burros demais, você se consola nos braços dos leões.

No seu clube, entre amigos, todos são iguais porque todos têm prateleiras cheias. La a vida é cheia de piadas, trocadilhos, e compete-se pelo apelido mais criativo. Já nas salas de reunião, você tem chiliques e poses.

Até que um dia, toda propaganda que você não fez é feia, suja e maltrapilha.

Até que um dia, a propaganda que você não fez ganha nas salas de reunião e ganha a rua.

Até que um dia, a propaganda que você fez vai para o YouTube.

Fazer bonito pra ninguém ver é bico

Na Internet, na revista, no jornal, se tu não curte a propaganda tu não dá bola ou pula. Na televisão só dá sono porque tem mesmo é que segurar as pontas. E mesmo que tu tenha o trampo de gravar as paradas pra ver depois. Ai que preguiça!

Mas tu entra lá em qualquer best off de qualquer festival e só vê coisas legais que capaz de tu curtir mais do que o que vem depois ou antes do intervalo. Até porque vamos combinar que propaganda legal pode ser mais bacana que certos folhetins, botocados de auditório e peladas.

Então porque é que nego não inventa um prêmio por categoria de audiência. Não interessaria comparar carro com carro, geladeira com geladeira, bebida com bebida. O que liga aqui é comparar o que se vê muito com o que se vê muito, o que se vê médio com o que se vê médio, o que se vê pouco com o que se vê pouco.

É assim, presta atenção. “Ouro” vai pro melhor da categoria acima de XXXX pessoas impactadas. Se ganhar cerveja, carro ou lançamento imobiliário, não interessa. Vai ganhar ouro a melhor propaganda vista por mais gente. E “prata”, “bronze” e “papel” pra níveis inferiores de audiência (XXX, XX e X pessoas). E se forem diferentes mídias, tudo bem, os patamares mudam (porque não seria justo comparar a audiência da revista DBO com a do Globo Rural na TV)

Não inviabiliza nenhuma outra competição, mas pelo menos assim a gente vai sacar que é difícil pra cacete fazer propaganda boa que muita gente vê e bem mais fácil fazer propaganda boa que ninguém vê.

Capaz de ganhar “ouro” um monte de porcaria e o prêmio “papel” ir para os ouros de Cannes, D&AD, Clio, Festival de Londres e CCSP.

Porque todo jurado pensa igual mas faz diferente?

Está aberta a temporada de caça às premiações, que ainda são as mais eficientes formas de dar visibilidade e reputação a uma agência de comunicação. Não há discussão para esse argumento. Podem falar, espernear, invocar os espíritos justiceiros e os orixás empresariais, mas ainda são e serão por muito tempo os louros criativos o fiel da balança que separa as boas das menos boas.

É um jeito. É o jeito.

Nas antípodas desse fato, existe a propaganda real que segue modorrenta, repetitiva, conspurcada por impulsos aparentemente menos nobres do que aqueles que habitam os jurados dos prêmios.

Todo o mundo, do mais talentoso ao mais comportado, do mais agraciado ao mais hostil, do mais brilhante criativo ao medíocre, sabe perfeitamente distinguir uma boa propaganda de uma ruim. Os argumentos são surpreendentemente os mesmos, as referências idem e as apreciações também. Todos os jurados são iguais e, colocados de lado os interesses individuais legítimos, o crivo é rigorosamente o mesmo. A única diferença está na generosidade de uns e outros. É até comum perceber que a tendência é quase inversa à lógica: quanto mais premiado o jurado, mais tolerante.

Então onde está o real talento?

E se a criatividade não fosse a diferença que qualifica uma boa de uma má propaganda? Porque todo o mundo sabe as mesmas coisas e julga da mesma forma.

E se o bom publicitário não fosse o mais criativo, mas o mais convincente, o mais corajoso, o mais teimoso, o mais sedutor?

É na rua que a gente separa os homens das crianças, e não na sala de justiça, nem no palco.