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Liberdados

Qualquer “novidade revolucionária” começa com a indiferença dos observadores, evolui para o escárnio, depois é combatida como se levasse ao desastre e, finalmente, quando não tem mais jeito, todo mundo, inclusive seus detratores iniciais, a considera óbvia.

Foi assim com a internet. A irrelevância virou piada e, em seguida, combate raivoso. Hoje é como se todos já soubessem da inquestionável mudança que estava por vir.

Dependendo do grau de abertura do crítico, esses quatro estágios podem estar ativos concomitantemente. Ainda tem gente que acha que a internet é uma mídia como as outras: ou ineficiente, ou destruidora. Ainda tem gente que se arrepia com aplicativos de encontros, desconfia de bancos online, acha inseguro usar meios de transporte compartilhados, tem medo de comprar pela internet ou não acredita que o homem pisou na Lua.

Mas em tempos em que inovar é carimbo de relevância (não foi sempre assim), é atestado de caduquice não temperar suas falas com aquele Globlish pragmático da nova economia. Até os mais conservadores iconoclastas das tecnologias digitais regurgitam sem filtro as mesmas cartilhas do profissional antenado. Um exemplo disso é a máxima segundo a qual o trabalho de comunicação passa necessariamente pelo uso e análise de uma enorme quantidade de dados.

Aqui também tem de tudo: “é uma bobagem” (um estágio que já passou), “não é nenhuma novidade” (muita gente ainda insiste nisso), “seu uso é um cabresto de ideias” (afirmações pouco explicitadas publicamente) ou “isso é normal” (ainda estamos longe desse último).

Entretanto, algumas nuances são necessárias, principalmente para o campo dos que não veem a novidade ou para aqueles que a consideram um perigo.

Quando falamos de dados, não estamos falando de pesquisas. A propaganda sempre usou muitas pesquisas. Mas são coisas distintas. Pesquisas são estatísticas; dados são censos. Censos não extrapolam nem filtram: retratam. A diferença entre pesquisas e dados é uma questão de fé metodológica.

Mas o que verdadeiramente difere do jeito antigo (pesquisas) para o jeito novo (análise de dados) – se é que eles possam se substituir – é o risco.

Se, ao ter acesso a segmentos de públicos-alvo e testar com eles diferentes formatos e mensagens e a partir desses testes apurar mais testes – e tudo isso for rápido, fácil e barato –; então, o risco de dar escala ao melhor estímulo para populações maiores e/ou perseguir algum tipo de segmentação ou megassegmentação é muito pequeno ou, no mínimo, calculável. Portanto, testar é muito menos arriscado do que pesquisar. Testar é provavelmente também mais eficiente do que pesquisar, o que não era possível quando a internet não era uma mídia viável (abrangente ou com penetração universal). E isso diminui consideravelmente o risco de qualquer estratégia ou decisão criativa.

No entanto, a mudança é menor do que parece quando complicamos a equação: ter mais dados ajuda ou atrapalha a criatividade?

Criatividade independe totalmente dessa conversa.

Criatividade tem mais a ver com amuletos do que com muletas. Criatividade tem mais a ver com mistérios do que com receitas.

Com ou sem pesquisas, com ou sem dados, achar que seremos mais ou menos criativos se formos mais ou menos dependentes destes ou daquelas é confundir criatividade com aritmética. Criatividade tem a ver com uma introspecção sensível – a capacidade de metabolizar os estímulos por meio da nossa sensibilidade. Criatividade tem pouco a ver com inteligência. Criatividade não depende de pesquisas e dados.

Quem se sente diminuído pelas pesquisas ou pelo cerco das plataformas com suas seduções data-driven está perdendo a melhor parte da festa: pesquisa é uma plataforma de lançamento para a criatividade, e Big Data é seu melhor playground.

Publicado originalmente no Clube de Criação de SP em 01.07.2919

Storytelling farewell

Contar histórias estrutura a existência dos seres humanos desde que descobriram que ela era trágica e sem sentido. Contar histórias é a única salvaguarda que temos contra a aleatoriedade da vida. Mas a forma como são contadas caracteriza as épocas em que vivemos.

Quando a catedral de Paris ardeu em chamas, além da invasão de posts nas redes sociais com lembranças de viagem profundamente comovidas, o baú da história foi vasculhado em busca de significados que ainda não tinham sido explorados por aquele desenho animado da Disney. Muitos lembraram, então, do livro de Victor Hugo.

Vale dizer que, até o século XIX, a catedral estava bem abandonada, suja e triste. Ninguém dava muita bola para aquele monumento caquético e, considerado por muitas pessoas instruídas e de bom gosto, como cafona.

O romance de Victor Hugo reviveu e projetou a glória do velho templo. Foi graças a esse livro também que, anos depois, um arquiteto poderoso e excêntrico, Viollet-le-Duc, resolveu restaurar a catedral e acrescentar-lhe uma vaidosa fantasia: a famosa torrezinha, desenhada por ele. Foi essa excrescência gótica que desabou no incêndio, levantando a consternação de milhões de celebridades anônimas, atônitas pela perda irreparável de um patrimônio imemorial da humanidade.

Um dos capítulos do romance chama-se “Isto matará aquilo”. A narrativa se passa no século XV, quando nascia o livro impresso (não à toa, a Bíblia foi o primeiro deles), iniciando a popularização do maior veículo de transformação social e cultural da humanidade. Até aquele momento, eram as igrejas que educavam as pessoas, contando-lhes histórias da Bíblia, dos santos, dos reis. Era naquelas esculturas, naqueles vitrais e naqueles símbolos que os iletrados aprendiam o sentido da vida – ou, pelo menos, o sentido que outros queriam dar às suas miseráveis e incompreensíveis existências. Mas os livros mataram as narrativas de pedra e vidro. Graças a eles, outras formas de contar nasceram – com palavras – imortalizadas na escrita.

Depois, veio o cinema, que matou um pouco o livro. Em seguida, a televisão, que o matou mais um pouco. Então, vieram os formatos digitais: as redes sociais, que jogam todos os dias sua pá de cal no livro.

Isto aqui – a internet – matou aquilo – o livro.

Com os livros, mergulhávamos nos desenvolvimentos narrativos, nas vidas intrincadas dos personagens, nas descrições de sentimentos e contextos. Um livro não podia ser penetrado a qualquer momento. Seria incompreensível. Era preciso deitar-se com a história e dividir intimamente todos os seus meandros para sair transformado. Nenhum resumo ou resenha dá conta das quase um milhão e trezentas mil palavras de Em busca do tempo perdido de Proust ou das quinhentas mil de Guerra e paz de Tolstói.

Mas isso, a internet matou.

No nosso século, vivemos envoltos em excesso de estímulos, convites, solicitações, interações. A internet não liberta, gruda em suas infinitas teias. E onde há excesso, há falta de foco, atenção, aprofundamento e tempo. Sem tempo, tudo o que exige concentração incomoda, atrapalha.

Também essa forma de contar histórias, com narrativas complexas, intrincadas e vagarosas – Thomas Mann leva dezenas de páginas para descrever os sete minutos necessários para medir a temperatura do herói de A montanha mágica – não sensibiliza mais ninguém. O culto das aparências e da espontaneidade – irracional, límbica, visceral – seduz mais do que a timidez de Hans Castorp, que passa trezentas páginas para dizer “oi” à moça por quem se interessou no sanatório. Um minuto em qualquer aplicativo de encontros arranca paixões e entregas tórridas.

No nosso tempo de agora, a nova forma de contar histórias é a interjeição, o emoticon, o meme totalizante. No tempo de hoje, a gente exclama e se gosta imediatamente, sem crítica, sem filtro, e ama fácil. Odeia fácil também. A gente conta histórias em poucos caracteres e parco vocabulário. A gente substantiva pouco, privilegia o transitivo direto e capricha na adjetivação superlativa. A gente gosta de contar a nossa história, de preferência em imagens evocativas com captions entusiastas.

Na internet que matou o livro, muita gente virou autor. Praticamente todo mundo. As histórias não morreram; pelo contrário, difundiram-se, espalharam-se: a história do estacionamento lotado, do buffet infantil barulhento, da fila do show, do carrinho que “me atropelou sem dó na saída do supermercado”. Tudo vira história – as boas, as ruins e, principalmente, as apreciativas. Todo mundo tem algo para contar sobre o governo, a bolsa de valores, a eleição do presidente que adora contar histórias em 140 caracteres. Todo mundo escreve e todo mundo responde com outra história. Milhares, milhões de histórias rápidas passam todos os dias sob os nossos olhos. Histórias curtas, lapidares, diretas.

Proust dizia que sua obra era uma catedral porque era construída, tinha estrutura e conteúdo. Uma história edificada com planta e estilo. Uma história com tempo. Era a esse jeito de contar que dávamos o nome de storytelling. Um templo.

A internet matou o storytelling.

Publicado originalmente no Clube de Criação de SP em 04.06.2919

A propaganda que ninguém vê

Um respeitado publicitário disse um dia, referindo-se ao festival de Cannes, que adorava frequentá-lo porque era o único lugar onde ele tinha acesso à boa propaganda que se fazia no Brasil. A ironia era inteligente porque introduzia sutilmente o benefício da dúvida. E a crítica era educada porque falava de uma boa propaganda que não tinha medo de se exibir. Os festivais de propaganda, para além da vaidade que alimentam, sempre foram um dedo éffronté na cara do cliente.

Hoje as coisas mudaram um pouco. O dedo na cara é o mesmo mas a desculpa para fazer propaganda ruim, que não se vê, ganhou um grande aliado: a Internet. A televisão não tem mais o poder de hipnotizar. Tampouco os canais digitais, com suas lógicas de afinidade e segmentação, atingem o bem-pensante publicitário moderno. “Como nem eu nem quem me interessa vai ver a porcaria que fiz, vai isso mesmo, afinal, foi aprovado e tem view, clique, interação, adquire, engaja, vende e é barato”.

Existem obviamente outros motivos que, se não justificam, explicam o pouco caso com a qualidade. O risco de errar é tão pequeno que é muito melhor se arriscar do que perder tempo com raciocínios, pesquisas, infinitas reuniões de aprovação e forças ocultas que mandam tudo para o começo da esteira, por simples capricho.

Tem uma lógica inquestionável também do ponto de vista econômico. Os tempos dos grandes raciocínios estratégicos e de posicionamento já não fazem tanto sentido quando é mais rápido, barato e eficiente testar no ar. E também não é inteligente arriscar-se amparado por indícios qualitativos ou conclusões estatísticas.

Então vale tudo, principalmente o péssimo acabamento, a péssima qualidade, a feiura. E depois, a gente sempre vai poder dizer que é uma estética da vida real, verdadeira, contemporânea, de vida louca, pura sem agrotóxico, de ludita iniciado nas forças transcendentes, de youtuber.

Como disse Costanza Pascolato: “fico horas me arrumando pra mim mesma e não para ter sucesso”.

Ainda vão inventar um festival que premia sem inscrição. Um festival cuja escolha seja feita pelo volume de investimento, ou o alcance das campanhas publicitárias que será obrigado a premiar muitas realizações caseiras, amadoras, preguiçosas de grandes e ricas marcas e agências. Assim talvez a gente comece a ver a má propaganda que se faz no Brasil e dê vergonha.

Somos musaranhos etruscos

O musaranho etrusco tem uma pelagem marrom acinzentada, um focinho pontudo, olhinhos inteligentes e apesar do tamanho, ele não tem nenhuma dúvida de que pertence à mesma classe de animais que uma vaca ou um rinoceronte. O musaranho, embora desconhecido, não é um animal em extinção. Ele acredita que sua sobrevivência está garantida por sua incrível capacidade de assustar os predadores: se ameaçado ele levanta-se nas patas traseiras e abre os braços para o alto com agressividade. Tudo isso do alto de seus 3 centímetros de altura.

Já achamos que um post poderia destruir a reputação de uma marca e que uma mensagem nas redes poderia derrubar um tirano. Acreditamos que do alto dos nossos centímetros de influência seríamos capazes de amedrontar os predadores.

Ainda seremos destemidos musaranhos enquanto os interceptadores de nossa liberdade de expressão e ação forem regulados e controlados por poderes públicos democráticos. Ainda seremos etruscos destemidos enquanto não trocarmos o senso crítico por alguns seguidores venais. Enquanto o mais frágil dos mamíferos, o humano, defender sua liberdade acima de tudo, ele terá forças para assustar o maior dos predadores.

As agências agonizantes. Culpa da Internet.

Até o começo dos anos 2000, trabalhar numa Agência de Propaganda era o grande sonho de uma legião de jovens com atração pela modernidade, ambição financeira e veleidades artísticas. Ser selecionado pelo funil exigente e falsamente inclusivo das Agências famosas era o objetivo dourado dos milhares de estudantes de comunicação do país. Claro que a maioria naufragava, mas isso só reforçava o mito.

Não é preciso ir muito longe para perceber que o desejo evanesceu. E isso é apenas um dos sintomas que denunciam a crise daquela Meca glamorosa e rica do passado. Existem muitos outros, dolorosos e declinantes: os salários, as receitas, a rentabilidade, as projeções.

Basta ver a recente estatística que dá conta da migração de profissionais que saíram do maior grupo de comunicação do mundo em direção ao Google ou Facebook. Segundo Scott Galloway (The Foor 2017), o fluxo teve um saldo de 1.636 pessoas em direção ao Google e 591 em direção ao Facebook enquanto o sentido inverso foi respectivamente de 107 do Google para a WPP e somente 17 do Facebook para o grupo. Ainda que se possa imaginar a hipótese de que as Agências não estejam demitindo – o que é incerto – podemos nos perguntar de onde vieram as reposições.

Vamos tentar alguns elementos de resposta, no Brasil.

Remuneração. Há décadas que os agentes do mercado criticam os modelos de remuneração das Agências – em particular no Brasil. Qualquer remuneração baseada em volume de investimento do cliente e/ou condicionada à veiculação é obviamente o nó da questão. Esse assunto é muito debatido e tem muitas nuances.

No entanto, vale colocar a equação da remuneração em perspectiva já que existe uma tendência forte e inexorável dos anunciantes serem responsáveis pelas suas próprias estratégias de mídia. Parece que as Agências estão paulatinamente perdendo esse controle, e tudo começou com as mídias ditas de performance. Se o anunciante planeja, compra e controla a sua própria mídia, a remuneração clássica das agências passa a ser colocada em questão. Ainda que algumas agências tenham oferecido outras mais originais formas de remunerarem-se, muitas vezes elas não passam de simples disfarce, ou artimanha retro-calculada para garantir algum escape em caso de mudança do privilégio monárquico concedido pelos veículos dominantes e consentido pela assembleia dos agentes.

É evidente que enquanto esse debate não se conclui, a consequência é obviamente desfavorável para as agências que perdem, ano após ano, rentabilidade. Na prática, os agentes seguem defendendo os privilégios nos palanques e o mercado, invisível mas implacável, se ajusta corroendo dramaticamente as margens.

E se as margens são menores, paga-se menos. Simples assim.

O C level. Talvez por excesso de proteção ou soberba, as cabeças dirigentes das Agências de comunicação, quaisquer que sejam suas gerações, têm pouca boa vontade para entender as transformações provocadas pela Internet nos negócios e nos hábitos dos consumidores. E é perfeitamente compreensível: porque mudar se está bom assim? Mas é claro, essa máxima, ruminada no particular, não ousa mais aparecer nos posicionamentos oficiais das Agências. Os discursos são modernos, embora óbvios, mas as práticas são antigas e a contabilidade é pré-histórica. A dificuldade não está apenas na compreensão das lógicas capazes de capturar a atenção dos consumidores, engajá-los na experiência e fidelizá-los com as marcas, mas curtir essa nova forma de fazer.

E quando entendem não acreditam. E quando acreditam, não gostam. A maioria não entende, não acredita e não curte a Internet. É difícil mesmo querer surfar na onda lutando contra ela. Quando ela começou, décadas atrás, o neófito que tivesse algum tino desbravador era recusado ou muito rapidamente incorporado. Até os chamados digitais nativos acomodaram-se à base de caviar e Sauterne e louvam a mídia hegemônica com maestria. Mas de uns anos para cá, o doutrinamento ficou mais difícil, anacrônico e, por vezes, ridículo. Então, aos poucos, mas de forma irreversível, os melhores sequer cogitam trabalhar em Agências de comunicação “tradicionais” com pessoas que não entendem, acreditam ou curtem a Internet (sejam elas novas, antigas, digitais ou não digitais –  a denominação também é factícia).

Assim, as Agências já não conseguem atrair as melhores cabeças. Simples assim.

Mídia. Ainda que chamar a Internet de mídia seja uma grande simplificação que induz a uma infinidade de equívocos, analisar o impacto do crescimento da Internet como alternativa crescente e muitas vezes predominante nas estratégias de comunicação dos anunciantes, acaba inexoravelmente colocando em dúvida o papel do departamento de Mídia das agências.

A chamada Mídia das agências sempre foi antes um departamento responsável pela negociação e compra de espaços publicitários do que pela estratégia. É claro que não é o que dizem as Agências. Para dar-lhes relevância perante o cliente, diz-se que a Mídia das agências embasa suas recomendações em análises complexas e técnicas e que a negociação e execução é uma mera formalidade.

Mas isto é um segredo de polichinelo em um país onde a oferta de mídia é basicamente um oligopólio. É um exagero quando as ferramentas que auxiliam nesse planejamento são simples e iguais para todos os concorrentes. É uma mentira quando se sabe o peso que os bônus de veiculação têm na receita das Agências.

Mas, no momento em que o mercado muda e que os anunciantes passam a contar, com sucesso, com outras formas de comunicar-se com seus consumidores, e de uma forma cuja lógica é totalmente ancorada em dados e experimentação, o profissional de mídia que possui mais inteligência comercial do que técnica fica obsoleto.

Indo mais longe ainda: no momento em que essa técnica passa a ser automatizada pelos próprios veículos (tradicionais ou não) então até mesmo o profissional de mídia mais técnico é desnecessário nas estruturas das agências.

Sem falar da iminência do oligopólio (que já não vende mais mídia mas conteúdo multi-plataforma) perceber que o valor agregado das Agências não compensa sua própria queda de rentabilidade e que o anunciante que já tem mesas de compra de mídia incorporadas a sua estrutura por conta das outras mídias digitais, pode perfeitamente fazer o mesmo com as mídias off-line.

Qual é o profissional que vai se sentir atraído por um departamento de mídia tão depauperado? Ele obviamente vai preferir ir onde tem pulso, inteligência e dinheiro. Nos veículos e nos anunciantes. Simples assim.

Criação. No passado, a Agência de propaganda tinha  extraordinária capacidade de atração de talentos criativos com ambição financeira (o contrário também). A agência parecia ser o melhor emprego do mundo para quem queria ganhar dinheiro com seu talento, sua originalidade, sua habilidade verbal ou estética. Não é à toa que Fernando Pessoa, Henry Miller ou Paulo Leminski trabalharam em Agências de propaganda. Esse poder de cooptar mentes brilhantes também se dava em outras especialidades além da Criação, e assim, pessoas “criativas” eram recebidas e bem remuneradas nas Agências, quaisquer que fossem suas habilidades específicas.

Este demonstrou ser ao longo dos anos o principal diferencial das Agências. Era a Criação que amealhava todas os fatores de sucesso e onde desabrochavam todas as vaidades. A Criação era – e é – o superprotegido centro nervoso de uma Agência de propaganda.

A Criação, super mimada, também acreditou que sua singularidade, sua mística venerada, justificava uma práxis e dogmas sagrados. Qualquer mudança ou questionamento podia ser julgado e condenado sumariamente. A Criação subiu ao Olimpo nos anos 80 e lá permaneceu, defendendo com unhas e dentes o direito divino da autoria.

Esse playground também cativava os clientes para além, muitas vezes, do mensurável resultado. E é aqui que a equação mudou.

A mensuração sempre foi estatística, demorada, imprecisa e o tratamento dos dados muito manipulável. Mas com as mídias digitais, mensurar resultados não somente é simples, rápido e confiável, como estabelece os fatores de sucesso de qualquer ação num piscar de olhos em todas as etapas do funil de conversão de um cliente. E na medida em que as mídias digitais amadurecem, a simples dedução baseada em pesquisas estatísticas (demoradas e caras) é muito pouco para garantir o sucesso.

O teste não é mais um “save my ass” mas um infalível recurso criativo. Essa mudança caracteriza uma virada de mesa radical na cabeça da enorme maioria dos profissionais de criação. É uma subversão total. É um estupro do dogma segundo o qual o maior valor está na ideia.

Mas a realidade tem que ser consentida e aceita antes de subverter anos e anos de modus operandi. Existe um novo Criativo. E ele é a salvação da lavoura.

O novo Criativo é aquele que pilota sua criatividade balanceando sempre o dado e a ideia. Um olho no painel de controle e outro na prancheta. É também um cenário em que prosperam menos as verdades prontas e mais as experimentações. Menos apego e mais abertura.

É graças a esse novo ou renascido profissional que o negócio das agências tem chances de sobreviver. É colocando esse profissional centauro, com pernas de mídia e cabeça de Criativo no centro do posicionamento das agências que existe espaço para o renascimento. Talvez o Planejador de anos atrás tenha sido o profissional que mais se aproximou dessa inteligência. Mas ele foi cooptado para servir de ponte entre a cozinha e o Olimpo. O Planejador virou o escravinho do Criativo rempli de soi même.

Algumas agências ainda tentam o inverso, sevando cabeças de Mídia com pernas de Criativo por oportunidade ou desespero. Muitas ditas “Digitais” fazem isso inclusive. Mas é sempre uma solução de curto prazo, que não acredita que o ser humano é um animal dotado de linguagem complexa, com um cérebro frontal 9 vezes maior do que seu primo chimpanzé.

O futuro é formar ou atrair profissionais híbridos que saibam que o dado é o insumo e não o cabresto do gênio. Um Criativo que curta, sem preconceito, pilotar tanto as informações quanto a linguagem. Esse cara é o cara. O único capaz de trazer real valor para a atividade. Enquanto as agências não entenderem isso e assumirem o atraso, ele cisca em outros terreiros, feliz, realizado e recompensado. O outro terreiro se chama novas mídias e novos anunciantes.

Nas agências que não gostam de se olhar no espelho, os leftovers só conseguem atrair a rebarba que aceita trabalhar nas sobras de contas que ainda concentram suas verbas em espaços publicitários decadentes.

(com a colaboração crítica de Renato Duo)

Suave Mari Magno

Você já sentiu alegria pelo sofrimento do outro? Quando aquela pessoa humilhou, debochou ou foi indiferente com você e de repente ela escorrega e se esborracha no chão, fisicamente e de forma escandalosa e você tem aquele prazer indizível mas incontrolável? Quando cai o queixo do pérfido e sua soberba é desarmada, e para curtir esse momento, você vira para o lado e dá aquela risadinha de Muttley? Isso se chama Schadenfreude ou mauvaise joie.

Agora pense no sentimento inverso, quando você entra numa fossa obscura e solitário por causa da felicidade do outro? Quando aquela pessoa que você mal conhece e que, portanto, não tem nenhum motivo para ser tão alegre, saltitante e sortuda, escancara, debaixo do seu nariz, uma vida idílica, despreocupada, agressivamente realizada? E para cutucar mais fundo a sua dor, apunhalando seu amor próprio e tingindo de negro a sua inveja, você aperta o botãozinho de coração, fingindo um like sincero?

Então para compensar, você simula uma pose, retoca as olheiras, reforça o biceps, capricha no sorriso blasé, e de costas para um  microambiente cautelosamente pinçado no meio do cenário desolador que lhe envolve, clica a foto e acrescenta uma frase de efeito, levemente inspirada, discretamente evocativa de sua felicidade de Penélope Charmosa.

Este sadomasoquismo filtrado, a maior curtição do nosso tempo se realiza, nas redes sociais, a ficção nossa de cada instante.

Me responde Zé. Estou com saudade.

Numa carta datada de 1865, o alfaiate Schneider cobrava Monsieur De Pléxis du Four, oficial do exército francês que estava em missão no México, despesas não pagas de fardas elaboradas para sua promoção. Para desespero do artesão a carta voltou, dois anos depois, com uma anotação diligente do carteiro informando que o oficial em questão estava desaparecido. Não é dito se Schneider estava vivo quando recebeu a resposta. Talvez tenha ido morrer na Prússia servindo a França em 1870 mas a carta aterrissou numa bancada do mercado de pulgas de Lyon e na minha coleção de selos no Brasil mais de um século depois.

Quantas dívidas, notícias, óbitos e carinhos de comerciantes, amigos, parentes e amigos naufragaram nas caixas de correio? Quantas preocupações, alegrias, tristezas e saudades dormiam de um sono agitado nos corações dos homens antes dos comunicadores pessoais móveis existirem? Antes de sermos a cada instante informados e solicitados pelas incansáveis pressas e aflições dos outros.

Antes da pipoca infinita das notificações, a espera era sofrida. Mas o que aconteceu que ainda estamos distantes e tão sós?

A cachaça da instantaneidade fez tudo piorar. Ou deu ressaca.

Piorou porque se bombardeamos na velocidade da luz , esperamos respostas na mesma velocidade. Piorou porque o que era uma espera exógena, de agentes terceiros, hoje é deliberada: Por quê será que ele não responde? Será que ele não quer responder?

Piorou porque estamos lá e cá, esperando e sendo esperados constantemente. Piorou porque não somos respondidos e não respondemos. Piorou porque estamos o tempo todo carentes e em falta. Pela latência correspondida. E ficamos cada vez mais sós. Cada vez mais egoístas.

Não que fosse melhor antes. Mas não ficou melhor agora.

Não ficou porque continua-se sem saber porque De Pléxis du Four não respondeu ao alfaiate Schneider nem porque o Zé não me responde.

A Internet é Serra Pelada

Nos anos 90, os fundadores do Google disseram que qualquer ferramenta de busca cujo modelo de negócio era a propaganda seria sempre corrompida e incapaz de servir seu designo mais nobre que é fornecer o conteúdo mais importante e não o conteúdo que alguém pagou para estar là. E como tudo no mundo – capitalista ou aborígene – a traição do propósito fundador é suicídio anunciado.

O sistema é bruto mas não é preto ou branco. Dentro de certos limites, a auto traição é tolerada. O problema é que estamos longe, muito longe desses limites.

A Internet fora dos aplicativos (por enquanto) é um lixão de conteúdos contaminados por mensagens indesejadas, interruptivas, insistentes e maliciosas. Sob esse ponto de vista piorou muito e não cessa de piorar porque não há nem senso crítico nem regras para a corrida do ouro. Para quem usa, tem que ser bom de drible e para quem faz tem que ser bom de grana.

Se você é só uma pessoa normal, que não sabe nada dessas coisas, circular pelo labirinto desse bazar, é desgastante porque você é tirado do seu caminho incessantemente. Cada vez que você vai atravessar a rua, uma charrete te atropela, cada vez que você vai entrar em casa, um camelô lhe oferece uma bugiganga, cada vez que você vai dormir, toca o telefone e a Netshoes, o PontoFrio e a Dafitti são personagens dos seus sonhos.

Mas se você é quem faz, se você precisa da Internet para fazer propaganda, é mais ou menos a mesma bagunça que sempre foi. Talvez pior. Milhares de alternativas, milhares de formatos, milhares de siglas, milhares e milhares de promessas e milhões de dólares. Cada vez que você decide uma estratégia, lhe pegam pelo cangote oferecendo o paraíso com mil virgens, tal qual corretores de uma gleba de terra no céu, desesperados para fechar a meta do quarter.

On e off são o mesmo lado da mesma moeda

Quando surgiu a mídia das mídias, a geleia interminável de conteúdos, constelação de interações, magma de onde tudo começa e onde tudo acaba – a Internet, nada mais prudente do que morder aos pedaços, aos poucos e com destemidos e intratáveis desbravadores, hoje conhecidos como especialistas. E não demorou para criar-se a carochinha de que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa: de um lado da linha, o novo inexplorado em constante mutação, do outro o tradicional sacramentado e estável. E desde então, toda a indústria da comunicação se equilibra nesse equador, balançando ao sabor da onda do momento.

Mas desde que o primeiro Ford T saiu da fábrica, sabe-se que a divisão do trabalho é uma técnica eficiente de produção e uma ideologia competente de opressão e alienação.

O fato é que as linhas de Nazca só podem ser observadas do alto e a linha do equador é um marco imaginário: a comunicação entre os homens não opera conectando diferentes gavetas que se conjugam em função de suas etiquetas. O cérebro humano é uma geleia, constelação e magma infinitamente mais complexo do que a Internet dos próximos séculos.

Comunicar uma mensagem para alguém ou para vários não se dá em camadas e jornadas e por mais sensível que seja o esquema, ele sempre será pobre e sujeito a insondáveis fatores de sucesso ou fracasso.

Assim como não existe esse negócio chamado de comunicação racional e emocional, não existe esse troço de comunicação online e off-line. Nenhuma descoberta aqui.

Da mesma forma, não é nenhuma descoberta dizer que a divisão do trabalho não é a mais glamorosa das vogas. O fordismo é eficiente e mais competente ainda se a mão de obra inteligente for substituída por robôs e algorítmos mais baratos, sem encargos nem chiliques.

E para eliminar qualquer poesia, aterrissando a divagação teórica, por três motivos rés do chão não é mais inteligente separar a comunicação em on e off.

Primeiro, custa mais caro porque tem duplicação de energia e recursos. Todo o pensamento que precede a execução é feito lá e cá, cobrado lá e cá. Sem falar do time-sheet da integração, dos alinhamentos, dos check-points.

Segundo, quem garante que a escolha entre os recursos, a divisão entre quem faz o que aonde, é a mais racional? Quem garante que o investimento on e off está otimizado se cada macaco puxa a brasa para o seu galho?

Terceiro, porque fazer o cerco ao consumidor com mensagens similares em todos os seus suspiros de atenção não é a forma mais convincente de conquista-lo. Poucas e boas é melhor do que muitas e fracas

Ninguém segura os babuínos

Quando o ser humano era nômade e vagava desorientado em busca de alimentos pelas terras ermas, o sexo não existia e muito menos a monogamia. O ato sexual, ainda que é provável que já fosse gostoso, era um reflexo aleatório que garantia a perpetuação do rebanho. Quem já viu um grupo de babuíno solto, trepando como respira com quem aparecer na frente, tem uma boa imagem dos hábitos reprodutivos dos nossos ancestrais.

Alguns infelizes resolveram fixar-se à terra, plantar, construir habitações duráveis. Era economicamente mais interessante e principalmente era menos cansativo. A preguiça é uma qualidade atávica da espécie. Não sair do lugar também significava conviver sempre com os mesmos objetos sexuais. A variedade incidental, descompromissada, leve e livre deu lugar a experiências mais comedidas, restritas e monogâmicas. De vez em quando, os babuínos que nos habitam soltavam a franga, mas eram reprimidos.

Depois veio o casamento, o amor, o amor romântico e tudo que já conhecemos, até que a morte, a traição ou o divórcio nos separe.

Hoje é assim: em 10 minutos a gente encontra um parceiro, em 10 a gente se encontra, em 10 a gente trepa e em 10 a gente swipa para outro.

Os babuínos se soltaram dentro de nós.

Cinismos à parte, o que será feito dos relacionamentos em uma selva tão abundante e promíscua?

Pois talvez, talvez, uma coisa será uma coisa, outra coisa será outra coisa. Relacionamento será uma coisa, sexo será outra coisa. Trepar será uma coisa, às vezes em relacionamento, outras sem, e tudo ficará bem.

Enquanto isso não acontece, boom-boom-boom, swipe.

Backup pra quê?

Tempos atrás, perdi todos os meus arquivos digitais. Achei que era o fim e penitenciei-me durante dias, perdi o sono e quando ele voltou, pesadelos destruidores arruinavam meus dias. Eram décadas de diligente registro organizado, evaporados. Um pedaço de mim, grande e vital, estava definitivamente aniquilado. Me senti como uma alma penada vagando à margem da minha história. Desencarnado e sem redenção.

Tempos atrás, uma desafortunada atualização evaporou minha agenda. Chorei. A solidão me precipitou num abismo sem fim, escuro. Entrei em queda livre e o paraquedas não abriu. Senti-me como uma bactéria de uma pulga, tão pequena, tão insignificante, tão inútil que era como se jamais tivesse existido.

Tempos atrás, um espírito danado surrupiou todos os meus e-mails, de uma vez, os respondidos, os arquivados, os que jaziam à espera de resposta. Achei que o mundo ia desabar, que o destino da humanidade seria uma inexorável punição, retrocesso. Tudo ia desandar e nunca mais me ergueria.

Mas o tempo passou. Ele passou e, gozado, mais leve, mais conectado e integrado me encontrei. Para que o apego?

Mas o tempo passou mais ainda. Ele passou e tudo recomeçou. Que selvagem escravidão na qual voluntariamente encarceramo-nos?

A Internet é a nova mandioca

O que seria do homem sem a mandioca, a roda, a foice, a pólvora, sem o macarrão, o tear, a levedura, o liquidificador, a escada rolante, o telégrafo, o dinheiro, o cotonete, o minecraft e o Google? Esnobismo é delas prescindir voluntária e estoicamente como se a Criação fosse vulgarizada pela meia calça, pelo sapato, shampoo, rímel, silicone, rivotril e Facebook e qualquer síntese artificial despertasse os demônios da auto-destruição.

Tudo nem sempre pode piorar. Os efeitos colaterais do progresso nem sempre são tóxicos.

Existe algo mais charmoso e elevado do que o Facebook e o Google, e mais prodigiosamente transformador também: é a chamada economia colaborativa que só a Internet tornou possível. Por detrás do compartilhamento online da ociosidade, da sobra, do descarte e da sucata, existe uma redenção ultraliberal que dribla as estruturas calcificadas do poder, a burocracia paralisante e a selvageria dos oligopólios, cartéis e lobbys que nos oprimem.

Todas as vezes que opera-se, através das centenas de plataformas peer to peer existentes, o milagre da colaboração, sem intermediário nem burocracia, sem certidões nem firma reconhecida, o mundo fica mais leve e o homo e a “mulher sapiens” mais humanos.

Redes sociais da opressão

Não se sabe ao certo se primeiro o ovo ou a galinha, mas seja lá porque a humanidade quis ou porque a fizemos querer, inventaram uma extraordinária plataforma de comunicação, gratuita, universal, simples, sem preconceito, transnacional, simpática, popular, rica e sexy chamada rede social.

Depois de décadas da vilania centralizadora da mídia de massa, depois de séculos de luta de classes, raças, gêneros e gerações, depois de milênios em que a palavra foi usada para controlar, finalmente aparece um alto falante para nossas vozes.

Ali – prometa-se – não haverá censura, não haverá limites, não haverá moralismos aviltantes. Ali – garanta-se – não haverá lei do mais forte, nem do mais lindo, nem do mais rico. Ali – assegura-se – somos nós e nossa identidade. Ou a identidade que queremos, sonhamos, idealizamos. Ali toda brincadeira será permitida, sem consequências, sem patrulhamentos, sem lei até. Ou pouca lei.

Inventaram, para nosso usufruto e gozo a Ágora da livre expressão, a suprema utopia de todos os povos livres.

Mas eis que esta mesma tentadora e poderosa ferramenta vira a casaca. Eis que estamos perigosamente escorregando na casca de banana do gozo supremo, indizível, incontrolável, irresistível também.

Eis que nos expressamos demais, sobre tudo, sobre nada, sobre o que é da nossa conta e principalmente sobre o que não é da nossa conta.

Eis que escancaramos nosso desinteressante umbigo mas principalmente maldizemos com virulência do umbigo alheio.

Eis que toda nossa incontida raiva, ódio, inveja e ganância encontra, nos feeds inodoros de uma rede social qualquer, o esterco para crescer, contaminar, vingar, destruir. Pessoas, histórias, reputações ou sonhos.

Eis que, até sem querer, tomamos a palavra e gastamos o verbo que temos e que não temos. Por nada. Para nada. Para desabafo sem amanhã. Irresponsável. Imoral. Opressor.

E daí?

Daí que a gente começa a calar. A gente começa a parar. A gente sai, se suicida, apaga-se, deixa de frequentar e principalmente de expressar-se.

Daí que as redes sociais cerceiam a liberdade de expressão e o feiticeiro sucumbe ao próprio feitiço.

Esse papo de digital é belo mas estéril

O movimento artístico Zero, fundando por Heinz Mack e Otto Piene, pretendia dar um novo começo à expressão artística, questionando suportes, formatos, temas, experiências. John Cage, estreiou sua peça chamada 4’33 sentado de frente ao piano fechado durante longos 3 minutos e trinta e três segundos, sem produzir um único som e deixando o ambiente e a plateia produzir seu concerto aleatório. O Zero como o minimalismo são desses movimentos fascinantes pelo pensamento e razoavelmente estéreis na produção.

Quando a Internet surgiu para a publicidade, questionava o jeito e trejeitos da propaganda de massa, propunha a boa nova de uma comunicação mais democrática, sem fronteiras, acessível, distribuída em rede, de todos para todos. Ao contrário da comunicação tradicional broadcast, autocrática, concentradora, dominadora, a Internet era a redenção. Esse pensamento original e sedutor rapidamente conquistou porque significava uma desconcentração muito saudável dos meios. Significava também a entrada de uma nova geração de empresas mais tecno-criativas do que as tradicionais agências artístico-criativas. E principalmente, sorrateiramente, significava a pespectiva de redução de investimentos na compra de mídia e recursos criativos e de produção mais baratos.

O pensamento era interessante, a prática não deu muito certo.

Nunca antes na história da comunicação, houve tanta concentração de investimento em poucos – pouquíssimos players. Inclusive e principalmente na Internet. Nunca antes na história da comunicação, teve tanta mediocridade criativa. Sobretudo na Internet. A gente se iludiu com os evangelistas apaixonados.

Seres humanos são tumores emocionais que se nutrem de impulsos primitivos e não de doutrinas e gadgets tecnológicos.

A sensualidade do Buy

Nossa vida de zapping é cheia de compartimentos cada vez mais numerosos e mais diminutos. Precisamos dedicar tempo e energia para todas as nossas mil facetas que temos orgulho de estampar como marcas de superioridade “eu entendo disso e daquilo, falo essa e aquela língua, conheço esse e aquele, vivo aqui e ali”. Essa síndrome do “eu já vi, eu já fiz” e sua frustração “eu não vi, eu não fiz”, é o que parece mover a humanidade. Assim, acumular é um valor social.

Comprar sem sair da cadeira, não enfrentar nenhum perrengue, mal humor, mal atendimento, compra de pânico, risco da falta e da decepção, é um avanço.  Comprar na internet são muitas portas abertas para esse valor supremo. A cada buy dado, estamos preenchendo as gavetas de nosso gabinete e principalmente multiplicando-as incessantemente.

Mas o que aconteceu com a explosão de sentidos dos caravançarás, surgidos do passado dos bazares ou erigidos como templos de consumo? Aquela choque de cheiros, cores, sons e movimentos, a energia sempre mutável, excitante ou serena, frenética ou pausada, o toque, a troca, a negociação. Não há experiência online capaz de substituir esse prazer sensual.

Mas toda renúncia de prazer tem um preço.

Sentir-se enfastiado, preenchido de coisas, informações, dados, dá uma sensação de dia cheio, de vida completa, útil. O mundo emula Dubai: consumo irrigando o deserto.

Comprar, acumular, armazenar esse é o sentido da vida?

Já o prazer virou um botão “buy”. Ao invés de gozar, estamos comprando – freneticamente e sem consciência – prazeres que morrem nas nossas inúteis gavetas existenciais.

A nova economia

Ele queria ir trabalhar de skate, pular da cama na bermuda da véspera, cabelo em desalinho calculado, ainda com eflúvios alucinógenos a lhe incensar a fala. E por falar nisso, valorizariam suas ideias obviamente novas já que ele era jovem, cheio de amigos nas redes e sintonizado com bandas e traquitanas. Ele gostava de champong bem picante, era fã de Stockhausen, de garotas cantantes islandesas, era um flea-market ambulante e discorria sobre acidentes aéreos como ninguém. Por isso tinha passado no teste para ser o bambino prodígio de alguma sucursal emergente da nova, novíssima, flamejante economia.

No primeiro dia, se atrapalhou com o crachá, sentou na baia errada e quase quebrou a perna da chefe meia idade que deu um bigspin involuntário no skate. No segundo dia, já de banho tomado, preencheu planilhas e copiou colou uma apresentação para o outro chefe do sub chefe da sua chefe. No terceiro, participou de sua primeira reunião, numa sala abarrotada com cheiro de café, barra de cereal e gel de cabelo. No quarto, ganhou camiseta, boné e até lápis. No quinto, fez uma vídeo conferencia para preparar uma reunião que irá anteceder o encontro sub-internacional a ser realizado na Nicarágua.

No sábado, perguntou para o pai: Pai, como é trabalhar no Banco?

É só um crachá e nada mais

Nunca podemos menosprezar o ambiente gelatinoso e experimental da Internet. Uma das seduções desse universo, talvez a mais visceral, é a descoberta, a vertigem do novo, a fronteira do status-quo, da convenção, da regra, da monotonia. É essa natureza rebelde, mutável, imprevisível que fascina e vicia porque a Internet é o último reduto dos inconformados.

E quando uma onda fica ou parece muito poderosa, quando desafia a independência e a identidade, quando tenta pasteurizar os comportamentos e nivelar os gostos, quando um movimento, uma plataforma, uma marca levanta o nariz com ares de poder provinciano, quando uma ideia outrora inteligente derrapa na voracidade mercantil, quando uma empresa listada e cheia da grana vai às compras porque não consegue mais atrair boas ideias, é o começo do fim. Da noite para o dia caduca, apesar das mentiras bem contadas pelos crachás catequisados.

Esse déja vu consola.

A Internet finge

É esse mundo sem fronteiras, em que as distâncias derretem, as geográficas, de língua, de idade, de raça, esse mundo imediato em que as relações se estabelecem sem pudores nem vergonhas, esse mundo sem privacidade nem propriedade, esse mundo sem limites, da consagração, da comunhão, é esse mundo que vivemos.

Nessa sociedade wiki, a informação flui e a dúvida derrete, a estranheza dá lugar à simples diferença, a maioria dá o tom da verdade e a mentira perde as calças, nessa sociedade o conhecimento vence o dogma e o ópio, nessa sociedade que fizemos.

Mas por que, então? Por que as velhas mágoas, as velhas disputas, as velhas identidades mortíferas? Por que branco versus não-branco, rico versus sujo, pobre versus parasita? Porque, fingimos.

Este mundo livre, esta sociedade informada e a Internet, não resolveram o tato, o faro, o químico. Só existe relacionamento entre seres de carne se existe troca de energia, de líquidos, bafo, humores, carícias, afagos, aconchegos e tapas, e beijos.

Sem toque, o preconceito persiste.

Redes sociais ou gabinete de curiosidades

Queiramos ou não, relacionamentos são intrincadas teias hierárquicas. Embora seja arriscado etiquetar pessoas em gavetas e vitrines – afinal de contas gente é areia movediça – um pouco de ordem conforta.

Nossos relacionamentos se organizam em redes que, embora se cruzem nos mais complexos ou em ocasiões excepcionais, estabelecem um grau de profundidade da relação assim atribuída pela de maior interação.

Vejamos.

No seu aniversário, por exemplo, existem aqueles que aparecem na sua casa antes de você acordar. Esses dividem cama e escova de dentes.

Depois tem aqueles que combinam de te encontrar para te pegar, dar um beijo, um sorriso e um vale livro.

Descendo um degrau, tem gente que te manda email. Há  tanta intimidade nas frases lapidadas!

Seguindo na hierarquia, alguns telefonam porque a vida é uma loucura mas sentem uma saudade asséptica.

Depois, temos os que mandam mensagem de texto pelo celular com palavras carinhosas e abreviadas.

E lá embaixo, junto com a catraca do trabalho que te manda um parabéns, junto com o cartão da livraria que está tão feliz por você nesse dia, tem a mensagem que calibra sua popularidade.

Lá embaixo, lá no fundo do fundo, onde você coleciona curiosidades e não relacionamentos, tem a mensagem no facebook.

É nesse lá embaixo, lá longe, que as marcas tentam ser amigas das pessoas.

A internet é a reunião de condomínio

Tudo que é novo, vem carregado de paixão e promessas. Se não for, não vinga.

A gente acreditou que a Internet era libertária, que daria  vez aos escondidos, tímidos, periféricos. Daria tanta vez e voz quanto o voto representativo, o orçamento participativo, tanto quanto o a eleição direta do síndico do seu prédio.

Mas o quórum de uma reunião de condomínio costuma ser o mesmo deserto da câmara de deputados numa quinta feira ou o mesma aridez das colaborações de um orçamento transparente.

A gente acreditou na cauda longa e no jornalismo cidadão. A gente acreditou que os pequenos negócios iam florescer e dar oportunidade de emancipação financeira aos oprimidos. A gente acreditou que a manipulação das grandes grifes da imprensa ia ser desmascarada pela atuação massiva do povo.

Tudo que é novo, vem cheio de superlativos. Se não vier, não é novo.

Mas a Internet é o palco de uma extraordinária concentração nunca vista. Tudo ou quase tudo passa por meia dúzia de hubs de distribuição. Meia dúzia de marcas dominam o comércio e meia dúzia de marcas dominam a mídia, por exemplo.

Claro que os relativistas de plantão vão bradar contraexemplos, mas parece que o mundo virtual é uma selvagem cadeia alimentar.

Ainda estamos preocupados com assuntos periféricos – direito autoral, privacidade, soberania, fraudes. Mas enquanto isso, meia dúzia de síndicos – eleitos por nós –  dão as cartas.