Category Archives: Ex-crianças

Ai, se!

Ai se,

Quando Germaine pôs o ovo, ela não sentiu aquele alívio matinal. Ela virou-se, dobrou a cabeça de um lado, de outro e caiu de joelhos. O ovo era vermelho.

Matilde tirou a cabeça para fora da toca e farejou o ar, mas o céu estava escuro apesar da hora. Ela pôs as patas no focinho e se assustou.

Se Adélia soubesse o que lhe esperava quando mergulhou, ela não teria saído: a água tinha deixado lugar a uma lama escura. Voltou apressadamente para a borda do lago, muda.

Mesmo insistindo, Marcelinho não conseguia ir para frente. O chão andava e para trás. As árvores, as nuvens, as pedras no caminho, tudo para trás. E sua memória retrocedia também.

E foi parecido também com Valéria, cujo cabelo amanheceu crespo, com Sílvio, que teve suas economias dilapidadas de repente, Maricota, que cresceu vinte centímetros, Abelardo, que saiu voando quando abriu a janela. Noêmia não acordou e Felisberto perdeu o sono; cresceu um pelo no nariz do pequeno Carlos e Clotilde cuspiu chocolate, Gláucia e Luzinete e Deolinda e também Fábio, Graciliano e Olívio gargalharam no enterro das avós, enquanto Fátima, Cristiano e Lucila choraram sem motivo algum.

O souflé cresceu demais e o pudim espatifou, o vento entornou e o rio encolheu, a chuva esquentou e as pedras todas rolaram montanha acima. As formigas brincaram de estátua e os colibris cochilaram, os jacarés gargalhavam no pântano que secara, e todos os cachorros latiam em inglês.

Meu relógio cantou pagode, minha poltrona preferida me engoliu, meus sapatos ficaram pequenos, minha gravata bateu asas e até a geladeira se encheu de sorvete de morango.

O mundo e meu coração soluçam juntos nesse todo dia que, de tão igual, dá saudade de nascer.

Alegria

Todo dia é dia de alegrias. Pequenas, tímidas, particulares. Tem a alegria de acordar. Abrir os olhos, levantar, esticar-se e dar aquele grunhido bem longo. E coçar a planta do pé, esfregar os olhos e bagunçar os cabelos. O cheiro da toalha seca, a água escorrendo, o xixi delicioso, a boca lavada.

Quando Jim Musc despertou, não abriu logo os olhos. Farejou, tateou, arrepiou. Nada estava como antes. Mas o que era o antes? E o que era diferente? Finalmente ele abriu os olhos. Nem forma, nem cor, nem movimento. Só nada em cima, nada embaixo, nada dos lados.

Ele levantou-se quando percebeu que já estava de pé. Então, deitou-se. Mas ele estava deitado. Também. Caminhou, e não saiu do lugar porque nada não tem referência.

Lembrou-se dos outros, mas duvidou se eram, tinham sido ou haverão de ser. E tudo virou uma grande fumaça transparente. O redemoinho de memórias evaporou-se.

Pôs se a pensar, mas o devir desfez-se diante da lógica e o que era não era mais.

E aos poucos, Jim Musc esqueceu-se de Jim Musc. Perdeu-se. Sumiu.

Jim tinha morrido durante o sono. Sem perceber. Sem caretas nem choro. Sem despedidas nem remorsos.

Nem alegrias particulares nunca mais.

Nada como não se ser-se

De manhã, quando acordava, corria para o espelho do banheiro.

E conversava longamente com seu avô:

– Vô, lembra daquele dia que a gente fazia barragem no riacho atrás de casa? Lembra quando alagou o jardim? Lembra da bronca?

Com a vó:

– Vovó, me leva para colher ervilha no jardim? Quantos ovos você acha que tem hoje? Se eu acertar, você faz bolo cru só pra mim?

Com o tio ele só pensava, não falava:

– Que diabo tem de tão importante em calçar uma meia? Primeiro tem que dobrar de jeito a enfiar a ponta do pé, esticar tudo certinho e ir desdobrando, até ficar que nem pele.

Para o pai, ele queria dizer coisas, e sempre mudava de assunto:

– Vamos de carro? Posso ir na frente? Posso hoje?

E lá dentro, remoia:

– Conta de novo aquela história dos índios? E aquela outra quando você brigava nas festas? De novo, de novo.
Com a mãe, ele sempre queria dizer a mesma coisa, mas ficava com vergonha:

– Te amo, te amo, te amo, te amo, te amo. E que mais? Ué, te amo.

Não faltava assunto. Nunca.

O reflexo do espelho, que não era ele, mas os que eram um tantinho dele. Saudade. E eles que eram o que os outros tinham sido. Saudade. E nós que somos o que outros hão de ser, no espelho, um dia. Que saudade danada!

Elefantes e outros humanos

Para Suda

Nossa história aconteceu num reino distante, num triângulo dourado, confluência de raças e destinos, terra de tráfegos intensos e futuros incertos.

O monarca, que pertencia a uma dinastia obscura e usurpadora, cultivava o excêntrico protocolo de dividir o trono com seus animais de estimação: galinhas ornamentais, najas domesticadas e elefantes sopranos.

Galináceos pela manhã, cobras à tarde e paquidermes à noite. Os dias de Fonte Única de Prazer eram divertidos, barulhentos, emocionantes e grandiosos. Nos entreatos a logística era sofrida, uma vez que najas comem galinhas e só existe uma coisa que tira uma naja do sério: competições entre membros tubulares. O risco era, portanto, da naja se regalar com a penosa e do elefante gabar-se com seu avantajado priapismo trombal.

Nenhum sábio jamais tinha sido capaz de resolver a questão de forma harmônica: A Ira dos Quatro Pontos Cardeais não suportava a idéia de ficar um instante sequer sem o suporte dos animais. Portanto, eram necessários  estoques inesgotáveis, imprevisíveis e caros dos animais.

Um dia, chegou ao reino um ancião que resolveu a charada,
propondo substituir os animais do protocolo. Os ministros entraram em polvorosa com a idéia. Cobriram o velho de ouro e mulheres.

Restava, no entanto, encontrar os tais animais. Tentaram trocar a naja por um gato, mas o bicho era egoísta e entediava Sono da Humanidade. Tentaram urso para o lugar da galinha, mas ele era preguiçoso e dormia demais. Um tigre pelo elefante, mas quem suportava o bafo? A arca inteira desfilou: animais exóticos, polares, temperados e tropicais, aquáticos, aéreos e terrestres, da carochinha, do além e dos infernos.

Outro dia, apareceu naqueles debates outro velho sábio. Embora ele concordasse com a tese inicial, sua proposta foi ainda mais revolucionária: o problema era a frágil galinha e a ciumenta naja. Portanto, a solução era colocar três galinhas ou três najas. Presentearam o gênio com montanhas de Viagras e dentaduras

Novamente, grandes estudos foram entabulados. Qual seria a melhor composição? Galinhas ou najas? O Senhor de Todos os Infinitos Sexos não podia ser envolvido, ocupado que estava com suas ciumentas concubinas, ou com cínicos e fofoqueiros eunucos.

Simularam a operação com um dos muitos sósias de Inigualável, Inimitável e Inclonável Poder do Oriente. Mas o resultado foi desastroso. As fogosas do sexo frágil entraram em cacarejante conflito com os interesses do harém. Já as serpentes, envenenaram os eunucos que se amotinaram.

Finalmente, aportou no reino um secular naturalista, filósofo, e astrônomo. Foi imediatamente assediado com o assunto e inquirido de resolver tão grave problema de Estado.

O homem deu graças às soluções apresentadas
anteriormente, que, por força da lógica, conduziam a uma única possibilidade: três elefantes deveriam suceder-se no trono de Luz da Terra, do Céu, dos Mares e de todos os Zoológicos. Ele saiu do país com incontáveis plásticas, implantes e vitaminas geriátricas.

Os três paquidermes guiaram por décadas o ócio de Bússola do Universo, cantando, pintando, dançando, fazendo tricô, macramê e petits-points com ele.

E quando A Memória do Mundo descansou, os animais choraram pesadas lágrimas de dor e saudade.

Elefantes são seres humanos mais humanos do que todos os humanos.

Coração de legionário

ParaJunior

Criado por avós aristocratas, falava línguas, estudara os clássicos e jogava críquete quando os compromissos filantrópicos o deixavam em paz.

Um belo dia, numa festa regada a muita gargalhada e olhares de raios X ele se recolhera ao bar para refrescar-se das dramaturgias sociais. Estava lá um sujeito que, não estivesse completamente afundado no copo, estaria totalmente deslocado da opereta rega-bofe. Sua elegância rude destacava-se da figuração cheia de atitude que pululava em todo canto. O homem era um legionário, daqueles de palavra e pouca fala, reflexo e pouco cálculo, honra e pouca fé.

As pálpebras murchas do lordezinho desabrocharam nesse dia e ele mudou-se para um país africano, numa zona sombria, onde as leis de sangue valem mais que as de papel. Ele virou um matador sem raça, sem credo, sem escrúpulo nem viadagem. Ninguém nunca mais ouviu falar dele, nem ele de mais ninguém.

Legionário não planeja, age: passados muitos anos, ele naufraga de volta na sua terra.

Assim que atracou no primeiro bordel, já saiu degolando um advogado, um cirurgião e um banqueiro. Logo que encalhou no primeiro bar, tratou de supliciar um ministro, um cardeal e um jogador de futebol. Quando amargou a primeira cadeia, estuprou o capelão, o chefe do tráfico e o emissário dos direitos humanos.

E de colunas de “faits divers” para policial, de policial para comportamento, de comportamento para social, de social para política, sua fama ia galgando escalões.

Tornara-se assunto obrigatório em qualquer roda: de pária para assassino, de assassino para psicopata, de psicopata para excêntrico, de excêntrico para visionário.

Há quem não duvide que ele seria agraciado com o Nobel, não tivesse fatalmente desmaiado com a morte da mãe do Bambi.

Transfusão de samba

Para André

Era um vampiro como outro qualquer.

Como todos, tinha lá suas restrições, seus reflexos e charmes irresistíveis: não jogava altinha na praia, não via corpos soltos havia quase dois séculos e disfarçava sua libido permanente com o mais sofisticado dos
guarda-roupas. Suas noites eram sempre muito animadas, de balada em balada, de cama pra cama, de bebedeira em bebedeira. Era um depravado conquistador e um evangelizador tenaz. Seu charme ancestral, sua polidez esmerada e erudição clássica faziam o mais escolado dos humanos babar-se em súplicas de “Mais!”

Certa vez, lá pelas tantas da madrugada, lá estava nosso vampiro todo chique, numa roda de samba. O maestro de salas aveludadas não tinha preconceito.

Aquela noite, era véspera de carnaval, ensaio para gringo, patrocinado por uma grande empresa inglesa de amortecedores, com o objetivo de experimentar o novo molejo de seus produtos na pele de seus clientes, fornecedores e autoridades. A quadra estava cheia de samba para inglês ver.

Depois de um tempo, o vampiro foi perdendo o entusiasmo: aquele rebolado de bundas brancas dava-lhe enjoo. Com exceção de três mulatas sambadas, a paisagem era de triste descompasso, um sem-jeito desolador, uma bananada sem borogodó.

Enfadado, ele desafogou a gravata, arregaçou o fraque, esponjou a testa numa renda alva como a tez da ruiva desengonçada que piscou em sua direção, acendeu um havana e saiu do barracão.

Meditava: “Qual seria a próxima escala? Uma rave em Bangu? Um inferninho de Copacabana? Um clube burguês? Um funk além-túnel? Um madrigal na mansão de uma duquesa falida?

Foi quando emanou de um beco escuro um batuque singelo, uma jinga gostosa, um baticudum suado.

O vampiro ajeitou o fato, abriu três botões da camisa, dobrou a perna e os braços para evidenciar atributos: lá vinha coisa boa, carne fresca e um banquete promissor.

Lá vinha Maria Escopeta, espetáculo! Tremelicou para fora do beco cantando, exalando ritmo e ouriço por todos os poros.

Nosso ser ficou catatônico, ofegante. Depois do espanto, perdeu o prumo, a pose e a compostura: atirou-se na negra. Sugou-lhe até a última gota de samba das veias.

Foi assim que nosso vampiro aposentou os caninos, deixou de frescura e até hoje toca zabumba no cemitério, até o sol raiar.

Papagaiada

Para Cumpadre Mário

Ele voara muito, por cima de florestas, cidades, campos e colinas amassadas.

Vez por outra, pousava para descansar e refletir. Gritava em voz alta: “Preguiçoso, preguiçoso Mané” ou “Alô, Jovina, telefone!”, ou ainda “Melchior, você é o maior!”, “alonzanfandelapatri”.

Lembranças de outras terras: “Acorda pra cuspir, Ignácio”, outros laços: “Te amo, flor”, outras lições: “Un, deux, trois, chassé croisé, Manon”, e outras gaiolas: “Fome, Benedita” – ele estava velho e cansara da vida que se repete, repete e emborca de tanta preguiça. Por isso, fugira, numa manhã igual a todas as outras: “Lá na gaiola, fez um buraquinho, voou, voou, voou, voou. A menina que gostava tanto do bichinho, chorou, chorou, chorou, chorou”. Ele cansara daqueles mesmos sorrisos: “Dá o pé, dá o pé”, daqueles mesmos galos: “Cocoricó, acorda preguiçoso”, daqueles alpendres ventosos: “Frio, tô com frio”, da vida de papagaio repeteco: “Papagaio repeteco, uma ova!”

Sobrevoando as matas, as cidades e as gentes de toda espécie, a ave falante repetia “Nunca, nunca, nunca mais, nunca, nunca mais”.

E foi assim, voando longe, que, numa tarde, o louro aterrissou numa palmeira barulhenta. Ele ajeitou o topete, esfregou o cocoruto num galho e, tremelicando o pescoço, observou: no meio das folhagens, uma revoada de sabiá conversava. Uma algazarra, uma fofocada, uma babel. Ele bem que tentou entender e se entreter, mas os primos não falavam coisa com coisa, era um cré sem cré ensurdecedor.

Enfim, era sua hora: sonhara com aquela liberdade de criar. Uma plateia selvagem, primitiva, sem traquejo nem requebro. Uma turba que não sabia que papagaios são papagaios, ou seja, só sabem papaguear.

Impostando a voz, ele recitou:

– Abaixe a tábua!  Lave as mãos! Tomou banho, Zé Caribé?!

O frufru dos sabiás não ensaiava reação.

– Fogo, fogo na canjica! Apeia, pirulito! Cabulou de novo, Marquinho?

A cacofonia redobrava de intensidade. O louro ensaiou em prosa e verso “baratinha quando nasce”, “ouvido do ipiranga”, “ave Maria cheia de garras” e ninguém deu bola para sua eloquência.

E quando ele já desesperava de ter voz naquela barbárie sem pé nem bico, um sabiá poliglota aproximou-se e sentenciou:

– “Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá.”

O Louro acocorou-se num canto do galho e fundo, fundo, lá no fundo de seu coração, de saudade soluçou, soluçou e soluçou um chororô sem fim.

E de tanto soluçar, a colônia de sabiás apelidou o exilado, liberto, repeteco, tagarela e soluçante: papagaio!

O jogging da avestruz

A avestruz é um pássaro com longas patas que vão até o chão, delgado pescoço rosa que chega à cabeça e um traseiro grande que rebola lindas penas brancas. São exímias fundistas quando se abanam com seus braços rendados.

A avestruz é um bombom formoso que adoça os cerrados.

Certa vez, Ana, um desses privilegiados seres, saiu para seu footing matinal. Estava despenteada e desarrumada e cantarolava “Rocket man, rocket man”, arremessando Mimi, sua pelúcia preferida, para o alto. A cabeça nas nuvens e as mãos nos bolsos davam-lhe ares de bailarina emancipada.

Numa esquina, ela cruzou com um amigo que franzia de nervoso, em outra, um anônimo espirrou negros odores, adiante, uma senhora encastelada num penteado paralisante equilibrava seus predicados injetados.

A sensível era dada a profundas introspecções e interrompeu seu passo, cessou as rimas e pôs-se a meditar.

“De que nos serve a vida se pouco nos preocupa a morte na alma de um, a doença do outro, a vaidade de todos? De que nos serve viver sem definhar a cada momento de sobrevida? Sobreviver é uma cantilena de apesares.”

Mas foi curta sua filosofia porque já despontava na sua frente um saltitante transeunte.

– Oi, linda!
– Oi, fofo.
– Tá na paz?
– Pensando na vida.
– Pra quê?
– Bobagens
– Que boa idéia!

Foram seguindo pelas quebradas, tagarelando animadamente sobre as coisas que na vida dão gostosura: quanto por quanto, quem com quem, gasto como gasto. Temas sem gastura.

Dulcílio também não voava, mas como nadava! Vogava nos lagos atarefado: tinha prole para alimentar, roupa pra passar, meias para cerzir, feijão pra refogar. Ele também sabia da guerra que grunhia, do vento que destelhava, dos poemas de todo dia e de sempre. Dulcílio tinha muita graça e muita história para contar. E quando retornava do chafurdo, juntava gente para ouvi-lo.

Foi assim que Dulcílio, o pato, ultrapassou os dois flaneurs e captou suas perorações.

– Quá-quá-quá, quem-quem-quem, gá-gá-gá.

O pato não era versado em assuntos de sociedade, mas tinha lá suas tiradas e soltou alto e bom som: “Depois, o pato sou eu!”. E seguiu caminho.

O arqueólogo

Para Aaron

Morava numa montanha bem alta e, quando o sol escorregava para o chão, o velho despertava. Apressadinho, chacoalhava os ossos e saía.

Logo na soleira da casa, desvelava um olhar preciso: o poço resistira.

Era assim: ele dormia de tanto sonhar. Mas, na primeira hora da noite, corria para o poço, tirava a tampa, aninhava-se no balde e soltava a polia.

Um, dois, três, vinte e quatro, vinte e cinco, cento e quarenta e nove, mil oitocentos e vinte e três.

Aproximadamente três metros de sonhos fujões. O poço secara muito dessa vez. Ele nem lembrava de nada não.

No coração da montanha, ele tirava a picareta, o delicado pincel e seu caderno pautado. Fosseis quebrados  desenhavam as viagens que se foram.

Agachado no escuro, ele psicografava vestígios.

Quando lá no alto uma nuvem de luz tremelicava, era hora de voltar, um tanto compensado, um tanto envelhecido.

Um pouco mais curvado, mais dolorido, mais senil e esburacado, ele se arrastava para a cama para, mais uma vez, dormir e sonhar a vida que se evapora do poço, no coração da montanha.

Como nasce um rio

Para Cacaia

Um lago pacato se estendia entre os braços de Montanha pontuda e Colina de bumbum pro ar. Era um tédio milenar. Uma preguiça geológica imemorial.

Naquele pedaço esquecido do mundo, chovia de vez em quando, mas só dava uma coçadinha na superfície do lago. Fazia sol também, mas nem fum no seu gogó. Ele só mamava tranquilo nos rios que brotavam das tetas de Montanha e Colina e arrotava ondinhas nas margens arenosas.

Para quem olhasse de fora, era um êxtase lírico e arroubos poéticos se perdiam nos desvarios dos tempos. Mas para quem armava a cena, era uma preguiça, uma falta de viço, um coma estéril.

Até que um vento safado, um cupido pornográfico, resolveu passar por ali. Não havia quem acudisse a tamanho fudevu, e a chuva, lasciva messalina, acudiu no rendez-vous.

Choveu tanto que o lago despertou e inundou pés e encostas. Foi subindo, subindo, subindo. E quanto mais subia, maior a febre. Colina enfeitou-se de brilho, Montanha suava em bicas.

Ao final de dois dias, o vento distraiu-se e foi armar-se em outras praias.

Mas Montanha e Colina deliravam em cama ardente tamanha tinha sido a corte que o malandro aprontara. Suas súplicas eróticas chegaram a seus ouvidos.

Ô cupido de sádico saber!

Vez por outra, lá ia ele cutucar Montanha e Colina.

Cutucava e se mandava, cutucava e escapulia, gargalhando, gargarejando, garganteando “sem contenção não tem tesão!”

E o lago transbordou um belo dia, num fluxo de interminável gozo.

A naja tricota

Ao abrigo dos olhares, a naja real tricotava, tricotava, tricotava, um longo cachecol de jacquard.

Isso não pegava bem para sua reputação. Afinal de contas, suas exibições públicas eram sempre envoltas em mistério e tensão. Ninguém poderia imaginar que ela, o terror do reino do marajá, temida muito além do telhado do mundo, fosse afeita a tão prosaico e vulgar passatempo.

Mas de verdade, nunca ninguém se preocupou em entender direito o mundo das cobras. Ninguém nunca chegou perto, no pé do ouvido, ali, cara a cara, mão na mão, ombro contra ombro. Nunca ninguém ouviu uma cobra suspirar, abrir-se, desabafar.

Assim é com a espécie inteira. Por vezes, venerada e respeitada, como era o caso da naja real, mas invariavelmente mantida à distância, na solitária do mundo.

Cobras, najas, víboras e todas os seres rastejantes são animais complexos e sensíveis. Muito sensíveis. Por esfregar a barriga no solo, por rebolar incessantemente entre os imundos eflúvios da natureza e ainda pela proximidade que têm com as dimensões subterrâneas, as cobras armazenam, sem escape, todas as baixezas da vida na Terra.

Como manifestação de defesa, quase involuntária, elas destilam, é certo, preciosos venenos. No entanto, é reflexo e não, índole. E essa catarse atávica, muitas vezes letal, é fonte inesgotável de arrependimento, culpa e depressão para as cobras.

São seres banidos. Em seu exílio da elite da criação, um imenso frio de abandono habita suas almas. Frio gélido, tenebroso, insuportável. Um frio que é matéria e não, estado.

E, para exacerbar o sofrimento das cobras e até das najas, nobre estirpe da raça, muito mais do que os cangurus, os flamingos, as girafas, as top models e as diafánas mulheres de Modigliani, seus pescoços são intermináveis.

Por isso, frio, mais e mais frio.

Eis o mistério do mundo das cobras: para abrigar a alma proscrita, elas tricotam, tricotam, tricotam, longos cachecóis de jacquard.

A ilha

Não me lembro como fui parar naquela ilha. Deve ter sido pelo mar, ou pelo ar, ou simplesmente uma viagem sonhada. Lá estava eu, na praia deserta, com sede e calor. Como eu estava molhado, percebi que chovia e que as gotas eram salgadas.

Como é da minha natureza, procurei imediatamente o que fazer, varrendo da cabeça as conjecturas da chegada e do destino. Olhei para os lados e descobri uma pequena trilha que se abria entre dois bosques cerrados. Saltitei de alegria, com o convite evidente e corri para dentro da mata.

Andei, tropecei e enlameei-me todo. Apesar do caminho aparecer bastante delineado, a pressa me fazia escorregar, titubear e me espatifar de cara no chão. Para evitar o contágio da razão, obstinei-me mais ainda para dentro. Tampouco encontrei estímulos para a contemplação da mata, que sem dúvida devia ser linda.

Não me lembro de nada, só das quedas e do meu miserável estado, quando dei de cara com um elefante anão tomando sol numa clareira. Ele estava todo esticado numa esteira florida, com enormes óculos de sol verdes. Quando me aproximei de sua preguiça, ele levantou as sobrancelhas. Sem saber direito o que dizer, perguntei-lhe o caminho.

–    É por aqui?
–    É sim, senhor. Mas é longe.
–    Muito?
–    Muito. Mas se quiser, levo o Senhor até lá.

Aceitei, mesmo sem ter a mínima idéia de onde era lá. Subi no seu pescoço e papeamos longamente. Falamos da vida e, como ele era um especialista em astronomia, interessei-me pelo desenho das constelações que ele descrevia com preciosa poesia. Ele era muito amável.

Nem senti o tempo passar, devo ter cochilado até. Mas logo estava eu de pé numa aconchegante choupana. O elefante estava a meu lado, descansando a trompa no meu ombro. O ambiente era de um luxo silencioso e, apesar da precariedade da construção sobre palafitas de bambu, voluptuosos sofás de veludo, cômodas de marfim, lustres de cristal e profundos tapetes pesavam no assoalho de cipó trançado.

Num canto, duas senhoras distintas trabalhavam num tear, bebericando suavemente em enormes xícaras de porcelana. Elas conversavam também numa língua aguda. Do outro lado, apoiado na janela que dava para uma baía ensolarada, uma pessoa de costa cantarolava algum folclore repetitivo.

E no centro da sala, a mesa estava deliciosamente posta. A ordem dos incontáveis talheres e copos, os arabescos da toalha de linho, as cadeiras de alto espaldar e as travessas que transbordavam de fantasia envergonharam-me: lá estava eu, ensopado, sujo, maltrapilho e acompanhado de um turista paquidérmico.

Até hoje não sei o que me deu, mas ensaiei fugir pela porta, assoviando para meu amigo desengonçado. Entretanto, sorriso das moças do tear me fulgurou. Dei para trás e, de mãos dadas com elas, sentei-me à mesa. O cantor acompanhou-nos também, assim como o elefante que, com muita graça, empertigou-se na cabeceira.

Banqueteamos alegremente, celebrando o acaso e a fantasia. Quem sabe um dia, não nos encontramos por lá? Vamos?

A guerra de todos os dias

Uma aranha diminuta descia do teto, de rapel. Hábil e silenciosa ela se fixou na frente dos meus olhos. Ela estava de capacete e colete de segugança. Da sua cintura, pendiam martelos e ganchos de escalada. Depois de me observar por alguns instantes, resolveu continuar a desenrolar sua corda de seda até a mesa. Bebeu um gole do cantil de alúminio e jogou-se do alto da mesa. No meio do caminho, um pára-quedas rosa e branco abriu-se, amortecendo sua queda. No chão, puxou um canivete suíço e cortou as amarras. Saiu, então, em disparada, de testa abaixada. Na divisa entre duas pedras lisas do piso, um jipe sem capota esperava. Ela pulou na caçamba e o carro arrancou, fazendo muita fumaça. Ela foi seguindo pelo rejunte do piso, dobrou à esquerda e depois à direita. Fez sinais com os faróis e entrou numa frestra.

Fui atrás.

Sem me perguntar como é que eu poderia entrar naquele diminuto túnel, me infiltrei rapidamente. A aranha estava com pressa. Corri bastante, mas, quando percebi que não conseguiria alcançá-la, uma moto barulhenta adentrava o túnel. Saltei na garupa do grilo padeiro que estava atrasado para suas entregas. Segurei na sua cintura e em pouco tempo estávamos à altura do jipe. Agradeci ao grilo, ele me sorriu e pulei no banco do carro. A aranha se assustou um pouco, mas logo que percebi seus distintivos nos ombros, bati continência e ela sorriu. Pelos meus cálculos, devia ser uma aranha coronel, provavelmente da divisão de fuzileiros navais pára-quedistas.

A conversa estava boa. Ofereci-lhe um cigarro, ela agradeceu e, quando chegamos no final do túnel, avistamos um imenso tropel de besouros atravessando lentamente a estrada. Perguntei-lhe onde ela ia assim com tanta diligência. Ela deu uma sonora gargalhada e respondeu que iria aonde eu bem entendia. Eu lhe disse, então, que eu não tinha destino definido, que ficara curioso com sua pressa e por isso a seguira. Ela riu novamente agitando seus braços. Os besouros já terminavam de atravessar a estrada, um peão montado num cascudo tocou seu berrante, e o jipe acelerou novamente.

A essa altura, já tínhamos ficado bons amigos. Ela me ofereceu algo para beber. Havia muita poeira, e minha garganta agradeceu o frescor daquele aguardente com gosto de menta. Lá pelo meio-dia, estacionamos o carro numa moita de trevos que se infiltrava entre duas placas de cimento. Descemos, esticamos uma toalha verde e branca no chão e, deitados de lado, comemos pés de mosca empanados, olho de mosquito em calda e asa de barata com farofa de antena de formiga.

Conversamos, contamos piadas, zombamos de uma fileira de cupins-escravos que carregavam uma guimba de cigarro, jogamos badmington e pôquer. No meio da tarde, fomos até a bica que despencava uma água cristalina do telhado, tiramos a roupa e brincamos de nos molhar. Cochilamos ao sol e partimos no final da tarde, enquanto a luz dos lampiões da rua tingia o asfalto de roxo.

Foi um dia que cabulamos com prazer. Eu, escritor sem história para contar, e ela, aranha fuzileira naval pára-quedista, sem guerra para lutar.

A estrada

Já viajávamos fazia muito tempo, no meio da floresta. A estrada era uma reta só que se estendia solitária e sem fim, quebradiça, traiçoeira, cabotina, velhaca. Quando chegava a noite, aninhávamo-nos num canto protegido, ao pé de uma árvore, agarrados, para enfrentar os gritos da escuridão. E, no dia seguinte, novamente a estrada desenrolava-se a nossa frente, confundindo seu horizonte ocre com o sol. A prosa sofria, mas o motor tagarelava numa monodia grave. Por vezes, um animal atravessava a pista ardente, para aconchegar-se novamente na sombra úmida do matagal. E mais estrada, estrada deserta, a estrada amaldiçoada.

Foi, então, que enlouquecemos. Ou talvez tenha sido real. Nunca saberemos, e pouco importa.

Atravessamos uma enorme clareira de pedra. A vegetação sobrevivia nas frestas das rochas, enrugando-lhes as encostas. O céu já ia escuro, e decidimos pousar sobre uma  pequena elevação plana. Estava frio. Juntamos alguns gravetos e ateamos fogo. Ficamos ali, observando as chamas débeis, lambendo nossas mãos cansadas.

E eles surgiram. Silenciosamente. Pelo menos ninguém se dera conta de nada. Mas quando levantei o rosto, eles estavam lá, à nossa volta, cercando-nos em roda. Ficamos paralisados, como se tivéssemos perdido os movimentos por um tempo que me pareceu interminável.

Num determinado momento, um deles desprendeu-se do círculo e caminhou em nossa direção. Quando ele estava a menos de um metro de nós, jogou um pano sobre a pequena fogueira, e não vimos mais nada. A próxima memória foi de eu ser agarrado pelos braços e pernas e levado com o rosto para cima, sob o céu escuro, fartamente estrelado.

Não me lembro de mais nada depois disso. Minto. Lembro-me sim, mas, ainda hoje, na soleira do grande esquecimento, do grande asilo, arrepio-me todo. Nunca descobri quem eram aquelas pessoas, que lugar era aquele. Mas, lembro-me, do preâmbulo da morte.

Uma grande festa, uma dança frenética, uma orgia. Uma bebida amarga e minha cabeça em rodopio, num torniquete de sensações. Meu corpo inteiro projetado para o alto, girando em meio a uma gigantesca mandala colorida. De todos os lados, o solo da floresta pulsava lentamente, ritmato pelo meu coração. Evoluí por ali, sem noção do tempo, do corpo.

Foi um indizível contato com as mais profundas de todas as emoções: a emoção de derramar-se languidamente pelos barrancos sem fronteiras do universo.

A estrada, a estrada de novo. Nua, crua, monótona, seguiu depois disso. E ainda segue na minha frente. Por quanto tempo?

A chaleira

–    Pai, pai! Adivinha?
–    Que foi, filha?
–    Fui escolhida, fui  escolhida!
–    Trouxe o pão?
–    Sim, pai.
–    Dá aqui.

Célia recolheu sua mochila e foi até a cozinha. Tinha louça para lavar. E Vladimir estava com fome. A mãe não tinha chegado ainda. Para quem ela iria contar?

Já estava escuro, quando a menina terminou o serviço de casa. O pai estava dormindo, bêbado. Vladimir tinha aquietado e nada da mãe. Célia saiu e caminhou um pouco sob a luz crua da rua, vazia e triste.

–    Oi, Célia.
–    Oi.
–    Seu pai tá em casa?
–    Tá dormindo.
–    Bebeu de novo?
–    É.
–    Ele me deve uma grana, o inútil.
–    Eu sei, Bill.
–    Cadê sua mãe?
–    Não chegou.
–    Então, tá. Vai para casa, menina, a rua é lugar de vagabundo.
–    Não enche.
–    Eu hein, o que deu em você?
–    Nada.
–    Aconteceu alguma coisa?
–    É.
–    Que foi?
–    Eu fui escolhida lá no concurso da escola.
–    Puxa, que legal! Parabéns.
–    Tá.

Bill era o vizinho camelô lá na Central. Gostava de Célia. Tinha gente que achava aquela amizade estranha. O pai não gostava de Bill. Mas ele sempre ajudava. Era um cara legal.

–    E o que você ganhou?
–    Nada.
–    Ah.
–    Quer dizer, mais ou menos

Bill sentou na calçada, do lado da menina, na poeira.

–    Desenbucha.
–    É que agora vai ter a final. Tenho que ir, mas não vai dar.
–    Por quê?
–    Por que não é aqui. É lá na Argentina.
–    Que legal! Quando é?
–    Mês que vem, mas não vai dar.
–    Por quê?
–    Preciso dos documentos.
–    Para viajar?
–    É.

Bill pegou Célia pela mão e arrastou ela para dentro de casa.

–    Vagabundo, acorda.
–    Que foi?
–    Onde estão os documentos da menina?
–    Documentos? Que documentos? O que você está fazendo aqui? Vou te pagar.
–    Onde você colocou os documentos?
–    Pra quê você quer isso?

Escondida atrás da porta, Célia olhava para o chão, varrendo a terra com o pé.

–    Você não viu que a sua filha ganhou o concurso lá da escola?
–    Ganhou?
–    Ganhou, Gordo, ganhou! Ela precisa viajar para a final e precisa dos documentos.
–    Célia, minha menininha, cadê você?
–    Aqui pai.
–    Vem aqui para o seu pai te abraçar.

Célia fez careta de nojo quando o pai envolveu seus ossos entre as mãos sujas.

–    Eu acho que eles estão ali, em algum lugar. Cadê a Maria?
–    Não chegou, pai.
–    Ah. Mulher inútil.

A mãe trabalhava longe e nem sempre voltava para casa. Às vezes só vinha para trazer um pouco de dinheiro, brincar um bocadinho com Vladimir e brigar com o pai. Nessas horas, as duas conversavam. Célia sentia falta da mãe.

Em meio aos choros de Vladimir, viraram a casa de cima a baixo. Não tinha muito onde procurar.

–    Lembrei. Estão na chaleira!
–    Na chaleira?
–    Sim, na chaleira, é lá que a Maria guarda os documentos dos meninos.

Mas a louça do casamento sumiu, o vestido de noiva também. Tudo sumia na casa do Gordo. Ele vendia. Sumiu o relógio do avô, a bicicleta de Célia. Ele bebia. Sumiu o dinheiro emprestado por Bill. Até a mãe sumiu.

Àquela altura, todos choravam mais alto que o pequeno Vladimir.

–    O que está acontecendo aqui?
–    Oi, Maria.
–    Mãe!
–    Filha, o que houve?
–    O pai vendeu a chaleira!
–    Mulher, onde está a chaleira?
–    Maria, a chaleira?

Todos olhavam, petrificados para a mãe com os braços carregados de mantimentos.

–    Vendi.
–    Vendeu?
–    Vendeu?
–    Vendeu?
–    Vendi. Mas comprei carne, arroz, feijão. E isto aqui.

Neste instante, Maria retirou da sacola uma boneca enorme, linda, cor-de-rosa. A menina sorriu.

–    Mas e a chaleira? E os documentos?
–    Que documentos?
–    Os documentos da menina para ela viajar para o concurso?
–    Concurso?
–    Sim, ela ganhou o concurso e não pode viajar, porque você vendeu a chaleira dos documentos!

O Gordo gritava, Bill se aproximava da porta para ir embora. Nada mais a fazer.

–    Mas quem disse que os documentos estavam na chaleira?
–    Não?
–    Não. Estão numa caixa no armário.

Maria foi até lá e, depois de instantes, virou-se em lágrimas. A caixa do vestido de noiva não estava mais lá. Bill deu de ombros e saiu pela porta da casa.

A chaleira, o vestido, a viagem, tudo sumira, transformado num sono de bêbado e um prato de feijão.

E se fosse tudo Nada?

As pessoas dizem que o Nada é escravo do Porquê: se a gente não acha nenhum Porque, então é Nada.

Mas o Nada é muito mais improvável do que o Porquê. Se o Nada fosse, assim, nada, Nada nem existiria. E se Nada existe, então ele é. Sem porquê.

Nada pode ser uma coisa. Uma coisa sem Porquê existe. Mas esse Nada-coisa não interessa a ninguém.

Nada pode ser um sentimento. Um sentimento sem Porquê existe. E esse Nada-sentimento interessa muito.

Para identificar esse Nada aí, é fácil. Basta sentir seu coração batucando de um certo jeito.

Se ele batuca como um metrônomo, não é um Nada, é um algo que tem Porquê.

Se ele batuca como um relógio bêbado, também é algo e seu médico vai te contar o Porquê.

Mas se ele bate sem compasso, fugindo, fugindo e nunca mais voltando, como se ele tivesse começando uma frase que nunca acaba, sem verbo, sem substantivo, só uma interminável seqüência de adjetivos que não se repetem, daí, pode bem ser esse Nada sem Porquê.

E se você ficar pendurado neste infinito rosário, você vai apalpar pedrinha por pedrinha. Vai dar aquela sensação de choro que vai aumentando muito. Parece que vai acabar e só aumenta. Mas você nunca chora. Só se chora quando tem Porquê.
Tem gente que dá outros nomes pra esse Nada. Mas dar outro nome ao Nada, mesmo os mais bonitos, os mais estranhos, os mais novos, os mais arrojados, os maiores, os mais inventados, os mais gostosos, é transformar um Nada em algo.

Pode ser que isso aconteça um dia a todos os nadas: virar algo.

Pode até ser. Mas nada é melhor que um Nada. Salve os Nadas.

A viúva

A viúva não tinha do que se queixar. Ainda restavam-lhe longos anos de vida, uma grande disposição e formosura suficiente para reconstruir-se um destino.

Quando seu marido foi atropelado, ela inicialmente perdeu o juízo e a compostura. Todos louvaram a demonstração de perda e mais ainda o extraordinário esforço de exibicionismo. Embora fingido – todos sabiam que seu casamento não era um idílio açucarado –, era de bom tom demonstrar claro apreço pelo falecido.

Mas, consciente do delicado tecido de fofocas no qual ela bordava seu ócio, a viúva recolheu-se para uma desejável e piedosa quarentena nas terras herdadas do falecido. Em meio a podas de begônias, tranças em campesinas e geléias de morango, seu nome, seu título e sua disponível fortuna seriam esquecidos, submergidos sob outros escândalos, passatempos e cavalgadas beneficentes.

Recolhida em seu pagode flutuante nos nenúfares, ela lia a condessa de Ségur, as irmãs Brontë, Hildergard Von Bingen, Anaïs Nin para acalmar sua abundante gulodice. Meditando aos pés do pároco surdo, ela expiava suas memórias insaciadas. Caminhando nos bosques desertos, desmaiando nas penas de gansos ou enchendo a lata na adega centenária, a viúva aplacava seus desejos censurados.

O retiro durou tempo de mais, pois, quando se viu sonhando com tabernas sujas, ruas bêbadas e marujos russos, ela retornou do exílio.

Foi em grande estilo que ela organizou seu début. Enviou cartas e presentes aos potentados, contratou os mais inventivos artesões e arquitetos, magos e outros charlatões, deitou-se por semanas com renomados maquiadores, estilistas, estetas e luxuosos picaretas, para refazer-se uma beleza irresistível. E quando as revistas já não tinham mais o que antecipar, quando os paparazzi deram chiliques e as madames faliram suas faraônicas mesadas, a viúva anunciou seu noivado a toda sociedade.

A festa foi retumbante, extraordinária, fantástica, memorável, um escândalo, um “tudo”. Detalhes inimagináveis tinham sido previstos: cisnes deslizando em lagos de mel, tapetes de pétalas de ouro, cascatas de trufas, fontes polifônicas, fogos boreais, caravanas de faunos flutuantes, danças berberes, celtas e swahilis, milenares cânticos babilônicos, declamações mântricas e chuvas de herméticos filtros.

No meio da madrugada, finalmente, a viúva surgiu com o eleito. A turma do deus-me-livre sentiu-se abusada e os minha-nossa-senhora fremiram de inveja. Era um negão cabelo ruim, nariz de boi pisou, beiçola indecente. Nem título, nem nome, nem fortuna, nem pose nem ciúmes, nem luxo nem ócio, nem partidas de críquete nem cruzeiros mediterrâneos, nem mausoléus nem sogra, nem chiqueza nem cashmeres ton-sur-ton, nem implante nem Viagra.

Um negão irresistivelmente sazonal.

Embrulhos virgens

Quando abri a caixa, não tinha nada. Estava completamente vazia. Como não tinha remetente, não dei muita bola.

No dia seguinte, era um envelope. Virgem também. Nem selo tinha, nem nada escrito, a não ser meu nome.

Depois recebi um saco plástico e, claro, vazio. Continuou assim por alguns dias, embrulhos de todos os tamanhos e tipos, caixas, caixinhas, caixonas, papéis de presente, elásticos também e fitas coloridas.

Passou-se um ano, um ano de uma regularidade impressionante. Vazios anônimos chegavam todos os dias, à mesma hora e era sempre uma surpresa. O que será desta vez?

Com o passar do tempo, minha curiosidade se acalmou. Era uma deliciosa rotina.

Até que desisti totalmente de tentar desvendar o enigma: quem mandava, por que mandava e se um dia eu saberia a origem daqueles embrulhos virgens.

Quando abri o correio àquela manhã, uma mão trêmula, muito diferente das etiquetas datilografadas das anteriores, escrevera meu nome num envelope pardo.

Eu logo saberia: aquela que me amava e se corroía de vergonha, aprisionada do outro lado das convenções, que não ousava desafiar seus algozes nem enfrentar o meu amor me presenteava com seu silêncio, sua desesperança, seu desejo invisível.

Por isso, não abri o envelope. Queimei. Não tive coragem de traí-la, nem a meu sonho.

A origem dos dentes

Para lá de antigamente, quando a Terra era bem vazia ainda, quando as árvores, os rios, as rochas, o mar e o céu eram soberanos, na confluência de dois vales apoiados na carcaça de uma desértica cordilheira, vivia um povo de cantores loiros e desdentados.

Eles viviam solitários, colhendo o próprio sustento e infantando intermináveis proles de crianças cantoras, loiras e sem dentes, como eles.

Agrupados em pequenas vilas cavadas na pedra, ao longo de um rio raivoso, quando não estavam moendo tubérculos ou fazendo amor, agrupavam-se nas varandas para cantar.

Eles não eram muitos, mas, assim mesmo, um viajante perdido naquele fim-de-mundo que adentrasse o território, seria, a qualquer hora do dia ou da noite, surpreendido pela cantoria melódica que tingia o vale de reflexos sonoros.

Eles cantavam de improviso e divertiam-se respondendo às provocações harmônicas dos vizinhos, retomando estribilhos, temas, fraseados e ornamentos num incessante diálogo.

O povo loiro e desdentado do vale não aprendera a língua falada e escrita. Eles apenas comiam, amavam-se e cantavam, acompanhando o rítmo ora frenético, ora grave do rio que serpenteava entre as rochas.

Era assim desde sempre.

Até que um dia, um dia, tudo mudou, quando, no meio de uma das famílias mais numerosas, no meio das rosadas gengivas de um pequeno garoto, um dente, um único dente despontou, alvo e frágil.

Os pais do menino acharam que era uma doença, uma pústula contagiosa. Imediatamente isolaram o menino e o dente longe do alcance dos outros e principalmente dos corais avarandados da aldeia.

Mas o dente crescia a passos largos, arrastando á sua volta mais e mais dentes até formar uma coroa de esmalte que ornou em pouco tempo a boca do garoto confinado. Ninguém reparou, ninguém notou a sua falta já que era uma família muito grande e com dotes musicais excepcionais.

E a vida continuou por algum tempo aparentemente tranqüila. O povo loiro continuava cantando, fazendo amor e comendo batatas. O menino cheio de dentes permaneceu trancafiado, sem cantar, sem fazer amor. Só comendo batatas.

Até que um dia, um dia, tudo mudou, quando, no meio de uma tarde de cantorias, no meio da desolação isolada de um pequeno garoto, um soluço, um longo soluço alçou triste.

Pouco a pouco, as vozes que ressoavam no vale calaram-se, até que um silêncio pesado se abateu sobre o murmúrio solene do rio. As cabeleiras loiras cessaram seu balançar, as bocas pararam de mastigar, e os amores interromperam seus afagos. Só sobrou mesmo o longo lamento de um garoto diferente,  um garoto loiro cheio de dentes.

Era um choro diferente, articulado, carregado. Parecia que dizia algo, que significava algo. E, apesar do espanto inicial, o povo loiro entendeu. O choro do menino falava de sua tristeza, de sua solidão.

Hoje, o povo loiro do vale não canta mais, ama pouco e abandonou a lavoura de tubérculos. Hoje o povo loiro do vale é cheio de dentes, porque um dia, um dia em que tudo mudou, um garoto diferente foi abandonado.

Brincadeira de esquina

Para Jean Claude

Foi numa sexta feira que tudo aconteceu. O sol ardia e as narinas penicavam. Fumaça, fuligem e aquele rugido grave dos motores. Marquinhos tinha treze anos e vendia no sinal.  Helicópteros bicolores, martelos enormes, ioiôs iluminados.

E também infláveis: um avião gorducho, um sapo transparente, um papagaio debochado. Marquinhos sambava entre os carros, desviava das motos, levantava seu zoológico por cima da cabeça para ser visto de mais longe.

Quando não conseguia vender, fazia uma cara assim, de menino pobre e maltratado, e conseguia umas moedas, uma bala. Quando não vendia nada, fazia a cara que ele tinha, de menino com fome e sujo. E quando conseguia vender um avião gorducho, um sapo transparente ou um papagaio debochado, Marquinhos não sorria nem agradecia. Corria para a calçada substituir o animal faltante e voltava para o vapor tremelicante do asfalto. Com sua cara de menino triste.

Uma garota rosada abanou para ele de dentro do carro, mas o vidro não baixou. Uma moça, jovem e dentuça acenou, mas achou muito  caro. Um senhor de bigode sorriu, mas o farol abriu. Estava difícil aquela sexta feira. Mas Marquinhos não ligava. Marquinhos não sabia nem queria ligar para aquelas notas amassadas. Ele era só um menino. Ele não ligava para os gritos do Manuel, o fornecedor de helicópteros, martelos, ioiôs e agora infláveis. Marquinhos era só um menino pobre, um menino brinquedo, um menino triste que não tem tempo para brincar.

Quando a sexta feira, aquela sexta feira acabou, Marquinhos tinha vendido três aviões e dois sapos. Nenhum papagaio debochado. Marquinhos ia apanhar. Mas ele não ligava. Ele era só um menino pobre, um menino a mais, um menino qualquer, um menino triste que não sabe nem chorar.

Foi quando tudo aconteceu. Sentado no chão, Marquinhos contava as moedas, devagar. Ele não tinha pressa para voltar. Ele não tinha pressa para o buraco do viaduto. A noite caira de repente. Viscosa, pesada, sem brilho. Marquinhos ficou ali, na rua, deserta, suja e fria, na esponja negra da noite.

Marquinhos parou de contar, e olhou para os lados. Com sua cara de menino triste. Lá estavam o avião gorducho, o sapo transparente e o papagaio debochado, conversando animadamente.

–    O que vocês estão fazendo aí, ó?
–    Ca ca ra cá, ué Marquinhos, papeando.
–    Você é papagaio, mas e o avião?
–    Vrum Vru Vrá, não sei falar mas posso voar, disse o avião gorducho.
–    Croacroacroá, não sei voar mas posso pular disse o sapo transparente.

Nesse momento, avião gorducho levantou vôo e num rodopio pousou  no ombro de Marquinhos. Papagaio debochado empoleirou-se no outro ombro e sapo transparente espatifou-se sonoramente entre as pernas do menino.

–    Cá cá rá cá, Marquinhos, você quer aprender a falar?
–    Vru, Vru Vrá, Marquinhos, você quer aprender a voar?
–    Croá croá croá, Marquinhos, você quer aprender a pular?

A noite caíra de repente. Escura, abafada, suada. Marquinhos voava, pulava e falava. Como avião gorducho, sapo transparente e papagio debochado.

–    Marquinhos cadê a grana, moleque?

Marquinhos aterrissou, pesado, no chão.

–    Só isso seu trombadinha?!

Marquinhos, o menino triste apanhou. Marquinhos, o menino feio não chorou. Marquinhos, o menino pobre não ligou.

Marquinhos, o menino triste que não sabia chorar, que não sabia brincar, aprendera a sonhar.