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Dar opinião é diferente ter opinião

Já reparou que quanto mais tentamos entender um assunto, mais perdidos ficamos? Quanto mais aprofundamos, mais boiamos? Então por isso, melhor desistir de qualquer complexidade e abandonar-se à tentação do scroll histérico, da opinião ejaculada e da postagem precoce?

Se a opinião não tivesse importância, se aquilo que falamos e postamos fosse apenas um reflexo involuntário, como respirar ou coçar, nenhum mal faríamos em distribuir, sem filtro, ideias ao vento. Mas ninguém é uma ilha. Todo mundo é influencer de alguém.

Mas será realmente importante dar opinião? Será que precisamos tomar partido e posição sobre tudo? Por quê? Pra ser o primeiro da classe, da turma, do grupo a vomitar, qual telefone sem fio, uma imprecação categórica? Uma informação que circulou, editada em cada nó de retransmissão, sem fonte, sem contexto? Uma opinião adjetivada, numa língua frágil, imprecisa, mas radical?

A viagem pode ser tão mais gostosa que a chegada. A descoberta é tão mais legal. E tudo bem não chegar ao fundo. Tudo bem perder-se nos meandros infindáveis do pensamento complexo, tudo bem não saber quem tem razão – o que é ter razão? – na guerra da Ucrânia, na guerra da Palestina, na guerra no Cazaquistão no Alto Carabaque.

E principalmente, tudo bem recolher-se para pensar, meditar, rezar ao invés de postar como se faz cocô, opiniões fisiológicas.

A travessia do deserto

Tive o privilégio de visitar, há duas semanas, uma aldeia do povo Kamaiurá, no Alto Xingu e assistir a um Kwarup, a convite do Cacique Kotok Kamaiurá.

Para boa parte dos brasileiros, a frase acima inspira enigmas exóticos, entusiasmos lisérgicos ou interrogações jocosas. Não é a intenção desse texto desvendar, incentivar ou bater boca. Mas a experiência me fez refletir para além dos clichés circunstanciais e dos frissons indigenistas que percorrem a Sociedade de Privilégios, a minha. Arrependidos da indiferença ancestral, tanto os neófitos quanto os engajados, colocaram a causa dos povos indígenas no centro de seus interesses e debates. E pouco importa se é para turismo de aldeia, experiências mágicas ou fazer um décor levemente étnico em casa, a pauta arrepia muitas conversas.

Mas o que não dá pra negar porque é visível, respirável e triste, quando se faz a travessia terrestre, de Goiânia até Gaúcha do Norte e de Gaúcha do Norte até uma aldeia do Alto Xingu, é que falhamos miseravelmente. Falhamos miseravelmente – ainda que se tenha tentado – para encontrar meios de garantir o futuro da humanidade que não passe pela exploração desalmada dos recursos naturais. Entre Goiânia e Gaúcha (15 horas de estrada), criamos um deserto (e já são tantos outros Brasil afora). Não tem passarinho, não tem inseto, não tem gente. Nos arrabaldes do horizonte bem-pensante da Grande Pinheiros, arrepiada com a causa indígena, tem um deserto, enorme, quente, feio e que, incontrolável, espalha suas ramas.

O que não dá pra negar, porque é visível, respirável e alegre, quando se faz a travessia, é que lá, na aldeia, as cores vibram, a vida é solta e o sorriso orgulhoso. Lá, na aldeia Kamaiurá do Alto Xingu a gente conseguiu – ainda que se tenha tentado impedir – conservar beleza, riqueza e origem. Quanto à bem pensante Grande Pinheiros, ao exibir braceletes de miçangas e tomar florais amazônicos, ela está por fim aderindo a uma onda maior, irreversível, mundial. Pouco importa se é modismo, oportunismo, culpa reprimida ou reflexiva convicção e pouco importa como se manifesta: se para preservar as culturas tradicionais ou encontrar saídas criativas para os desertos que pululam.

O que interessa é que ela existe, é forte, é legítima, é nossa. O que interessa é que tem a força de reverter.

Ainda dá tempo de atravessar o deserto sem morrer de desesperança.

Eu sou nem-nem

O que é uma crise? É um demi-monde entre aquele que está morrendo e aquele que ainda não nasceu. É a resistência disfarçada do mundo putrefato lutando contra a arrogância do que ainda não saiu das fraldas.

O sistema capitalista, que norteia a prosperidade por meio do consumo, esconde os abusos sem volta com retóricas bem-pensantes e outras ESGs. Um marketing de boas intenções para ocultar a extraordinária produção de sucata material e cultural que nos encobre. Mas, no fundo, o que se quer é mais e mais descarte. O sistema – e seus discursos cheios de propósitos factícios – alimenta a ilusão de que está indo em uma direção sustentável, mas isso não passa de uma exploração sem dó da culpa que temos de envenenar o planeta e as mentes. É tanta palestra, tanta reunião e tanta pauta fofa e cheia de boas intenções que é de se desconfiar que algo está muito podre, nem que seja só pela falta absoluta de contraditório.

Talvez haja um consolo para essa deriva, ainda que hipócrita: o outro mundo, aquele que está para nascer, excela em mediocridade, falta de argumentos e clara ignorância. Em um desfile de estudos de casos cheios de páthos e visivelmente manipulados para abalar, o ativismo das novas fronteiras não consegue desenvolver as teses de forma prática, simplesmente porque também não sabe como realizar o que é defendido. Então, a histeria lacrimosa, a chantagem de baixo calão e o cancelamento covarde são armas fáceis.

Mas a verdade é que estamos no demi-monde, repleto de fantasmas e monstros primitivos: os fantasmas do que já era e os monstros do que não é. Talvez a solução à crise não seja enfrentar as entidades, mas, sim, bailar com elas. Talvez seja mais inteligente – ou prático, ou mentalmente saudável – o diálogo sereno, uma tolerância que aceita a complexidade sem tomada de posição. Talvez o nem-nem seja mais pacífico e rume para um futuro que, por uma vez, não admita mais as dialéticas mortíferas.

Tempos de cólera

Como em todas as grandes gestações, em qualquer campo de atuação humana, elas convivem em igualdade de força, atuação e principalmente perspectiva. Na esfera dos costumes, enquanto uma ordem plena das individualidades é defendida por um grupo, de outro lado, uma horda clama pela defesa de regras mais conservadoras. No campo das ideologias econômicas, políticas mais estatizantes eletrizam os debates contra aqueles, mais liberais, a favor do mercado. Tem gente que levanta as armas pelo consumo de proteína animal com a mesma força daqueles que defendem o direito animal. Em todos os casos, há argumentos que merecem atenção e conversa.

Mas vivemos em tempos de radicalismos à flor da pele, sem gosto pela complexidade. É mais fácil tomar partido, levantar bandeiras, bradar palavras de ordem e clichês nas redes anônimas ou nas privadas. Afinal de contas, parece preferível ser aprovado por poucos do que ouvir muitos.

Enormes interesses defendem um mundo fragmentado, cheio de grupos microscópicos, de comunidades provincianas, que se bastam e ignoram as demais. Quanto mais fragmentadas forem, mais isoladas, e principalmente mais influenciáveis e manipuláveis serão. Esses grupelhos têm seus códigos e seus dogmas. Esses clãs desenvolvem razões para justificar o cimento comunitário. Essas cavernas se defendem das outras com armas e dentes. Grupos, grupelhos, clãs, cavernas. Gangues.

E estranhamente, nunca se falou tanto em diversidade.

Existe uma tendência a fazer uma amálgama entre diversidade e divisão. Assim, defender a diversidade significaria enaltecer diferenças e particularidades. Diversidade seria uma espécie de afirmação de identidades – sempre legítima – mas que coabita tantas vezes com radicalismos e intolerâncias. Mas é entender de forma rápida as duas palavras.

Divisão tem como significado etimológico “separar para conhecer” (di – separar, videre – conhecer). Separar para conhecer. Dividir os sexos, os gêneros, as raças, as crenças, é reconhecer identidades e reconhecer identidades é acolher.

Já diversidade, por razões variadas foi uma palavra apropriada para qualificar principalmente o acolhimento de sexos, gêneros e raças. Mas podemos também entender que defender a diversidade pode representar outras lutas por representatividade e igualdade. A das crenças, ideologias e opiniões, por exemplo.

É outra definição, mais complexa, humanista, universalista, cosmopolita, profundamente democrática. O respeito à diversidade, assim, passa a ser sinônimo de tolerância e escuta. É dar passos em direção aos outros, sem esperar retribuição. É acolher o outro que é diferente, pensa diferente ou age diferente. É, também, não confundir debate de opinião com processo de opinião.

Defender a diversidade talvez não seja exigir respeito às minhas diferenças, mas respeitar as do próximo.

Somos musaranhos etruscos

O musaranho etrusco tem uma pelagem marrom acinzentada, um focinho pontudo, olhinhos inteligentes e apesar do tamanho, ele não tem nenhuma dúvida de que pertence à mesma classe de animais que uma vaca ou um rinoceronte. O musaranho, embora desconhecido, não é um animal em extinção. Ele acredita que sua sobrevivência está garantida por sua incrível capacidade de assustar os predadores: se ameaçado ele levanta-se nas patas traseiras e abre os braços para o alto com agressividade. Tudo isso do alto de seus 3 centímetros de altura.

Já achamos que um post poderia destruir a reputação de uma marca e que uma mensagem nas redes poderia derrubar um tirano. Acreditamos que do alto dos nossos centímetros de influência seríamos capazes de amedrontar os predadores.

Ainda seremos destemidos musaranhos enquanto os interceptadores de nossa liberdade de expressão e ação forem regulados e controlados por poderes públicos democráticos. Ainda seremos etruscos destemidos enquanto não trocarmos o senso crítico por alguns seguidores venais. Enquanto o mais frágil dos mamíferos, o humano, defender sua liberdade acima de tudo, ele terá forças para assustar o maior dos predadores.

A gente é tudo Cuiabá

No centro de Cuiabá, tem uma linha de trem abandonada. Todo mundo conhece essa história: projeto faraônico para enriquecer poucos safados às custas da credulidade da população.

A cadeia e a vaidosa frieza dos juízes não inibe ninguém. A falsidade de uma certa elite não é páreo para essas pantomimas televisivas. Colocam atrás das grades os mais vistosos, os mais burros ou azarados.

Quanto aos larápios que se safam, esses que desfilam suas indignações nas redes sociais, eles continuam indiferentes às veleidades moralistas.

Sabe quando você está parado, e pela janela, vê outro avião, manobrando para decolar? A sensação é de que o seu também está saindo, mas na verdade, não saiu do lugar. Ainda não é a sua vez. Quando a gente olha uma parte do mundo desenvolvido pela janelinha, é como se mal tivéssemos saído do lugar há décadas.

Apesar da miragem do Brasil decolando, fomos com muita sede ao pote. Apesar do chamego político-judiciário, perdemos o slot de decolagem e fomos para o final da fila.

Não há bolsa-família nem lava a jato capaz de resistir à nossa hipocrisia gingada.

Porque, apesar das demonstrações folclóricas de verde amarelo, lá e cá, ainda fazem a lei nos garimpos ou transformam o lindo cerrado num transgênico deserto verde.

Cuiabá é o Brasil.

Vida esfarelada

Se o mundo está se esfacelando para todos os lados, acentuando separatismos e identidades, e radicalizando visões com simplismo, não é a toa. Nossa vida – já esfarelada – alimenta a britadeira global.

A visão do todo, da história e da evolução, escapam das nossas mãos à medida em que nos auto-bombardeamos de estímulos, informações e distrações.

O foco, biruta, metralha para todos os lados. E o tempo, perdido, esvai-se em sinuosos e hyperlinkados linhas do tempo. A apreciação dos conteúdos é naturalmente superficial, e não é possível escapar, numa exposição ou num cardápio, à necessária bula explicativa.

Nas relações humanas, o mesmo: encontros, envolvimentos e afeições fugazes. Também pudera, quem tem tempo e saco?

Mas parece irreversível. A febre da fragmentação é extraordinariamente rentável e contagiante. Uma indústria que perpetua o consumismo compensatório e a solidão narcisista.

É o fim do luxo.

Do luxo de banhar-se numa longa e intricada história, do luxo de envolver-se com conversas que são como picadas na floresta, do luxo de se jogar no sofá, um domingo à tarde, só para curtir Proust, uma integral das sonatas de Beethoven, um abraço apertado até a noite cair.

Crise de quê?

Existem muitas teorias sobre a crise menos porque saber as causas ajuda a tratar, mas principalmente porque ajuda a suportar as consequências.

Mas a psicologia das causas são um objeto de estudo divertido.

Politização das causas públicas, corrupção, paternalismo do Estado, falta de infraestrutura, de educação, blablabla. Todas elas, sem exceção, terceirizam a responsabilidade, porque também faz parte daquele mesma dinâmica: encontrar um álibi intelectual para sofrer menos e se for a culpa dos outros, melhor.

Todas elas também são causas opacas, complexas e em cuja relatividade reside uma espécie de mística para manter afastada das discussões a grande massa ignara.

Mas esqueceram uma: a crise, esta crise, também é uma crise de fé.

“Não tem jeito. O Brasil não tem. Isso não vai funcionar aqui. Aqui é diferente, nem adianta tentar.”

Essa mesma gente que se empoleira atrás das causas arcanas, suportadas por números transcendentais, é a mesma gente que nunca teve um pingo de fé. Fez de conta que acreditava mas no fundo, não queria porque acreditar significa abalar privilégios.

Mas tem gente que ainda acredita. Muita gente acredita até porque tem pouca alternativa.

E como antes, é essa gente que não tem opção senão acreditar que vai fazer a gente sair da crise. Com ou sem políticos dinamarqueses, com ou sem infraestrutura alemã, com ou sem educação coreana.

O time-sheet e a qualidade

Como é difícil e principalmente demorado dar a luz a qualquer realização humana digna.

Das singelas linhas de um cartão postal a uma correspondência formal, de um instantâneo que capta a essência de um olhar a um mural evocativo de fantasmagórica cena, de um castelo de areia a um de açúcar ou pedra, de uma canção monódica a uma construção polifônica, do mais singelo haiku às Mil e Uma Noites, de um título de oito palavras a uma saga cinematográfica de oito horas, a qualidade é dependente e tributária do tempo, da maturação, do descanso de que a obra precisa para exprimir-se e da indispensável contemplação do autor.

Mas este mundo atribulado e nosso sistema histérico transformam uma sensação abstrata – o tempo – em unidade real. Essa compressão, artificial, pasteurizada, matemática e enlatada sequestrou, em sua contagem opressora, o valor das coisas e das pessoas.

Assim, a qualidade vira sinônimo de pressa e o trabalho de frações cronológicas. Fazer no prazo é mais importante do que bem fazer.

Não extraímos mais o melhor mas o que de melhor foi permitido. Aos poucos – e mesmo nas mais elevadas manifestações artísticas – insidiosamente, a mediocridade infiltra-se e transcende. Aos poucos – e antes nas atividades comerciais – embrutecem-se as mentes.

Devolvam-nos o tempo perdido nas contabilidades vulgares. Devolvam-nos o tempo perdido!

Mais Um, Baêa por Gustavo Soares

https://www.youtube.com/watch?v=RnzDAPcYzmE

Viram esse vídeo?
Os alemães se concentram numa cidadezinha da Bahia, Santa Cruz de Cabrália.
Por não terem sentido muita firmeza no governo brasileiro anos atrás, decidiram construir eles mesmos seu centro de treinamento.
Arrogância? Preconceito? Não, pragmatismo. Os caras não quiseram aborrecimento, pouparam a gente de mais um vexame.

Mas esse não é o ponto.
O ponto é a cidade que escolheram, Cabrália. É pertinho de Porto Seguro, e foi onde os portugas estacionaram as primeiras caravelas em 1500.
Eu já estive lá, fotografando no local exato onde fincaram a primeira cruz, diante de índios festeiros, que se fantasiaram e se paramentaram para impressionar aqueles visitantes esquisitos, e de índias loucas para dar para aqueles homens barbudos e fedorentos. Sem entender patavina, índios e índias se ajoelharam imitando os portugueses e aceitaram rezar junto, mesmo sem conhecer o deus em questão. Me parece auspicioso ver os alemães cantando o hino do Baêa nesse mesmo solo, 2014 anos depois.

Há alguns anos eu fiz um livro sobre a presença germânica no Brasil, e nas minhas pesquisas ficou mais que evidente o quanto alemães amam o Brasil, ainda que as razões nunca tenham ficado aparentes nem mesmo para eles. São inúmeros os exemplos: o navegador chefe da expedição de Cabral era alemão. Brasil, que era o nome da madeira, pode ter vindo do vocábulo alemão “brazen”, que quer dizer brasa, fogo, vermelho. E o único lugar no mundo onde o Fusca teve nome oficial foi aqui – no resto do mundo era só VW – e o nome nasceu porque os brazucas ouviam os alemães dizendo Volks com sotaque (algo como fuLcas).

Os alemães do vídeo são dois dos principais jogadores de um dos melhores times do planeta. E parecem dois turistas em pleno Carnaval, pulando com os locais numa rua sem asfalto em frente a uma birosca. Isso é Brasil, purinho. É atrás disso que o mundo vem: de ser convidado pelos nativos a pular e cantar algo incompreensível, nesse país louco, fascinante e estranho, que já tem 2014 anos e continua na fantasia de todo estrangeiro. Na capa da Folha de hoje tem outros dois jogadores, holandeses, se jogando no mar de Ipanema durante um treinamento. É dessa liberdade para fazer bagunça e sermos todos inconsequentes é que os gringos vieram atrás. Porque aqui eles podem desobedecer um pouco as regras de lá. Não precisam de um telão com a letra do hino do Bahia pra cantar junto. Até porque a letra não diz muito mesmo: “Mais um Bahia. Mais um título de glória. Mais um, mais um Bahia. É assim que se resume a tua história”.

Nós, os índios hipsters, nos ressentimos de sentir vontade de ajoelhar e rezar junto com os gringos. Rejeitamos as cantorias e as fantasias. Não queremos ser índios, mas somos, só que em vez da cruz ajoelhamos para os trens-bala japoneses, para os aeroportos reluzentes dos americanos, para o padrão Fifa das calçadas e metrôs em que vive a Europa.

A Copa não pode servir como a expurgação das frustrações com a nossa letargia, com a nossa tendência para a procrastinação, com a nossa incapacidade de lembrar que políticos eleitos são um espelho que nos reflete como sociedade. A Copa é um evento de 30 dias que deve ser de festa, não de imolação pública. Sob pena de perdermos essa identidade que é tão-somente nossa. Temos é que aproveitar para fazermos as pazes com essa identidade. O jeito brasileiro, mesmo que seja o jeitinho, que é nosso maior apelo, nosso trunfo.

Vai ter Copa sim. Só que a se continuar o conflito psicanalítico sobre a nossa incompetência, a Copa vai ser dos alemães, holandeses e todos os outros estrangeiros que estão aqui para aproveitar a vida. Abrir mão da alegria, da festa, não vai nos tornar melhores. Ainda menos nos próximos 30 e poucos dias.

Gustavo Soares

Big Data

Se toda história da humanidade é um processo de evolução incessante, se Darwin só pariu sua teoria porque conhecia Lamarck, Beethoven não foi  Beethoven sem Haydn e o último prêmio Nobel da medicina não passa de uma gota no mar, se Criação só existe uma, a primeira, do big-bang, de Adão amolengado pelo Criador, se tudo o que fazemos são veleidades de primazia, se a capacidade inventiva do homem é relativa e proporcional à suas referências, mas também, se nosso cérebro não funcionasse por amostragem, seleção e esquecimento, se fossemos capazes de tudo conhecer e tudo processar, se não nos contentássemos apenas com a opinião do nossos próximos, dos nossos pesquisados, mesmo muito misturados, se a norma fosse o erro e o erro o acerto, se não estivesse provado que a grande maioria dos saltos qualitativos operam na margem de erro, no desvio padrão, se a gente tivesse a humildade para se sentir parte ínfima mas fundamental, então talvez assim, talvez enfim, a gente acreditasse que em tudo existe Lógica. Big Data, amém.

Síndrome de mozartismo

“Ele nasceu para isso! Pequeninho já brincava de escrever e desenhar. Quantas vezes não chegava correndo na sala mostrando para as visitas as propagandas que ele tinha feito? Dava gosto. Não espanta que ele se deu bem na vida. Veio com o dom.”

Por menos que se acredite na predestinação, ainda reverenciamos a genialidade de direito divino. Como se nascêssemos dotados de pré-talentos que desabrocham no curso da vida, por uma centelha mística, em realização e reconhecimento. A educação que recebemos existe para criar uma espécie de terroir fértil para que ecloda a genialidade natural. É o dom que se aplaude.

A gente passa a vida tentando achar nosso grão de Mozart.

E ninguém nunca falou do suor do pequeno Woolfie, ninguém nunca se interessou pelo sangue escorrendo dos seus dedinhos sobre os teclados. Ninguém nunca quis saber da sua teimosia, obstinação, obsessão.

A gente gosta mesmo é da mágica e enquanto ela não vem, que tal empurrar a vida para o fim?

Experimentar é tão mais fácil do que perseverar!

Põe a mão na sapucaia

No ano que não acaba nunca de não começar não deixaria de faltar causo da mulher do piolho.

Ela mandou dizer que já deu aquela coceira de aprontar quizomba. Coceira de cutucar bem curtinho. Coceira de acabar com a pasmaceira e tocar fogo na capoeira.

Bom de começar fazendo pergunta besta. Por que tem que ser assim? Por que tem que fazer de conta? Por que não pode perguntar por quê?

Bom de já ir dizendo não, não e não. Não quando a gente engasga com o sim, não à continência, não ao quase.

Bom de já ir dizendo sim, por que não? Quando dá coceira de certeza, sim à incontinência e sim quando é porreiro.

E se não girar a carapeta, vem mais um ano que passa sem nem doer nadinha. Mais um ano que se foi.

A mulher do piolho mandou dizer que ano incólume não volta nunca mais.

Obrigado pastor

Numa mega-igreja de Ohio, onde 4 mil ovelhas se encontram cada domingo para um show de fé, alguns aproveitam para fazer uma pós-graduação religiosa oferecida pela corporação evangélica. O temente a Deus pode escolher diplomar-se em “oração aos nossos soldados em guerra contra os inimigos do povo americano” ou “a cura do homossexualismo”, por exemplo.

Entre doações para a construção de um estúdio de gravação ou para sustentar os missionários evangelizadores de povos atrasados, a pequena burguesia caipira do cinturão da bíblia americano – aquela mesma que elege os grandes guerreiros do império e que acalenta legionários domésticos para combater a tirania – luta contra a culpa cristã.

Não poderia ter sido mais caricato do atoleiro institucional e cultural em que nos encontramos, do que eleger como presidente um pastor homofóbico e racista convicto para a Comissão de Direitos Humanos e de Minorias da Câmara.

Vivemos momentos turbulentos. Quando conchavos políticos sinistros contrariam o bom-senso civilizatório mais elementar e quando as instituições que nos representam fazem vista grossa, é um déja-vu na história dos povos: prelúdio de trevas.

Mas o pastor insignificante e irrelevante talvez esteja fazendo-nos um favor. Quem sabe, graças a ele, não abra-se o debate sobre questões importantes da sociedade como o preconceito em todas as suas formas.

Ou questões ainda maiores, como esse poder oculto, insidioso, perverso, organizado por uma espécie de ressurgimento religioso em todos os lados do espectro da fé: do papa dos pobres careta ao ambicioso pastor.

Aprender a escrever é falcultativo

Milhares de americanos já morreram porque se enganaram lendo a receita do médico. Ao invés de mandar todos os médicos para um supletivo do Mobral, 45 estados americanos decidiram que o estudo da caligrafia será opcional nas escolas a partir do ano que vem. Opcional como o estudo do grego, a prática da esgrima, o tricô.

Seja por causa dos médicos preguiçosos, seja porque escrever à mão dá uma trabalheira danada, o fato é verídico.

Difícil julgar se a medida é boa ou ruim, mas a sensação de acentuada dependência de próteses tecnológicas aumenta ainda mais. Como se estivéssemos transferindo nossas fraquezas para soluções externas a nós, ao invés de procurar resolvê-las com o que temos. Como se estivéssemos paulatinamente atrofiando a suprema qualidade que tivemos, como animais em evolução, de, precisamente, evoluir. Como se a tecnologia fosse um remédio para o cansaço. Um entorpecente do drama da existência.

Não andamos mais, não caçamos mais, não colhemos mais, falamos cada vez menos e, em breve, não escrevermos mais.

Quem não experimentou o torpor físico depois de uma caminhada, o fôlego desatado de uma perseguição na floresta, o frio na barriga de trepar na árvore para catar jabuticaba, quem nunca rabiscou, rasurou, amassou, rasgou uma carta, duas cartas, três cartas de amor, mil cartas de amor comeu a vida e nem mastigou.

Escambo.net

– Meu Deus, os caseiros levaram de novo a batedeira! Vou lá… Bom dia Seu Francisco.
– Salve patrão.
– Por acaso a batedeira lá de cima está aqui?
– Está sim Senhor.
– Sabe, Seu Francisco, eu acho bonito esse jeito do Senhor.
– Qual jeito, patrão?
– Esse jeito “o que é meu é seu, o que é seu é meu”.
– Obrigado, patrão.
– Mas sabe qual é o problema: o Senhor não tem nada, então sempre me dou mau.

O Estado – e o nosso mais do que muitos – é um monstro de muitas cabeças egoistas. O Brasil do século XXI é um país submisso a um poder exacerbado, centralizador e burocrático. Nem o nosso jeitinho tão criativo consegue mais driblar os tentáculos públicos. Eles estão nas leis, nos tributos, nos financiamentos, nos programas sociais, em todas as obras de infraestrutura e interferem na atividade comercial e empreendedora.

O Estado brasileiro é uma colônia de carrapatos.

Isso não significa, é claro, que do outro lado, no privado, existam santos oprimidos. Ninguém é mártir nesse jogo e os vasos são promiscuamente comunicantes.

Para o cidadão comum, só lhe resta duas alternativas: sofrer ou parasitar.

Mas existe uma terceira via. Sem jeitinho nem cambalacho. Sem masoquismo nem paralisia.

Quando uma pessoa vende ou aluga um bem seu para uma outra pessoa – uma casa, uma geladeira, um carro, um passeio de cachorro, uma jardinada – o Estado não existe. Não existe imposto, nem burocracia, nem jogos de poder, nem corrupção.

É o peer to peer, que faz bem para as pessoas porque descolam um dinheiro, faz bem para o planeta controlando o desperdicio, faz bem para a alma porque dá o troco no Estado e nos seus financiadores privados ao mesmo tempo.

Caniços, sim, pensantes, nem tanto

Muitas vezes lidamos com pessoas incapazes de digerir perguntas existenciais. As questões fundamentais passam ao largo de suas vidas: a morte, a vida, a ilusão, o tempo e o espaço, as conexões, os mistérios, a Terra e o espaço sideral, Deus, o Verbo. E para não questionar-se, empurram os dias com a barriga, dissipando-se na rotina até serem surpreendidas pelo “mas já?” fatal.

A dificuldade no entanto não se concentra apenas na metafísica. Pessoas – muitas – só questionam pelo gosto da retórica ou por cerimônia, sem verdadeiramente esperar respostas. Quantas vezes a resposta está na pergunta? Quantas vezes a resposta bate oca no interlocutor? Quantas e quantas vezes o ponto de interrogação é apenas uma inflexão musical estéril?

E por que, nós, caniços pensantes, resistimos inconscientes à pergunta? Por que driblamos com maestria aquelas que realmente precisam ser feitas, quaisquer que sejam as circunstâncias?

Por que não fazemos as perguntas certas?

Porque temos medo das respostas.

Contra a violência, só o desabafo?

Hoje no trânsito, um casal foi assaltado na entrada de um túnel. Tudo muito rápido, difícil de entender, impossível de ensaiar reação. A mão armada é poder para os covardes e impotência para as vítimas.

Mas choca e a gente quer contar, como uma catarse ou um gesto – covarde também – de contra-ataque. Conversa mais banal impossível. Todo mundo tem a sua própria história e geralmente pior. Então a gente baixa os braços, engole o choro e enfia a cena na gavetinha dos assuntos para conversas aleatórias.

Se fosse nos Estados Unidos, pessoas teriam sacado suas armas automáticas do porta-luvas em nome da “liberdade contra a tirania”. E a vítima teria ido chorar as mágoas no clube de tiro ou numa escola primária.

Se fosse no Pará, a gente mandava uns matadores atrás dos safados que roubaram a bolsa e o celular. E seriamos vingados sem consequência nenhuma.

Quando a justiça hierarquiza os crimes, se existem os “crimes comuns”, então, o crime pode ser banal, corriqueiro, natural.

No dia 3 de abril, começa o julgamento dos assassinos do José Claudio Ribeiro da Silva e da Maria do Espírito Santo Silva em Marabá, extrativistas defensores da floresta, mortos em 2011. Duas pessoas comuns, como são também comuns outras dez pessoas eliminadas em Rondônia em 2012.

Da violência contra pessoas comuns, a mídia faz como fiz, hoje de manhã, no trânsito: dá de ombros. O Papa vende mais. Para a justiça, também é comum. O mensalão dá mais fama para os juízes.

Enquanto isso, nós todos, brasileiros comuns, não passamos de vítimas silenciosas e conformadas do silêncio da mídia e da justiça.

O país na bolha

A frustração é um sentimento que decorre da relação entre expectativa gerada e possibilidade de realização.

É como custo X benefício: para melhorar a relação, você pode reduzir o custo com o mesmo benefício, aumentar o benefício com o mesmo custo ou simultaneamente reduzir o custo e aumentar o benefício.

Para reduzir a frustração, você pode diminuir sua expectativa, aumentar a possibilidade de realização ou ambas as coisas.

Exemplificando.

No Brasil, vivemos numa bolha de expectativas eternas. Queremos andar de bicicleta nas cidades, consumir produtos orgânicos, ter uma vida mais sustentável. Queremos também consumir marcas internacionais e conhecer o mundo. Queremos probidade pública e transparência.

Mas no Brasil, as vias públicas são esburacadas, ainda temos gente que não come direito e estamos azulejando a Amazônia. Compramos Goyard em 20 prestações e nossos aeroportos são à imagem e semelhança do site da TAM. Nossa democracia eternamente em construção balança dialeticamente entre a prepotência de uma direita com veleidades sociais e uma esquerda populista regada à estímulos desenvolvimentistas ultrapassados.

Em suma, nossas expectativas são altas e nossas possibilidades de realização atravancadas.

Só existe um jeito de ser feliz e não sonhar com o impossível idílio de picar a mula: baixar as nossas expectativas. Ou pelo menos, calibrá-las às nossas – brasileiras – reais capacidades de realização.

Furar a bolha.

Graciliano Ramos foi um dos maiores escritores de sua época. Morreu mais pobre do que nasceu. Em sua única viagem internacional, foi à antiga União Soviética e aproveitou para conhecer algumas capitais europeias. Ficou maravilhado com tudo que viu mas disse que nada daquilo era para ele, que ainda preferia o Brasil, apesar do atraso, porque aqui tem calor em todas as declinações possíveis.

A liberdade de matar 27 pessoas

O choque, a dor e principalmente a dúvida: por quê? Por que um garoto de 20 anos mata 27 pessoas numa escola? Essa dúvida atormenta tanto quanto a perda porque ela expõe a ferida da condição humana: a imprevisibilidade dos nossos reflexos. Este descontrole é a antítese da vida em sociedade. Por isso existem as leis, os costumes e até os tabus: colocar limites na imprevisibilidade da condição humana.

Controle, para muitos no país do massacre, além e aqui embaixo, significa tolher a liberdade.

Conservadores falando de liberdade e progressistas falando de controle. É nesse ponto que chegamos.

Mas a liberdade é um conceito utópico. A liberdade é uma moeda de negociação necessária para a vida em sociedade: Quanto liberdade devemos tolher? Quanta liberdade devemos tolerar? Qual é a liberdade que nossos valores aceitam ou defendem?

Mas como a liberdade é um conceito elástico, ela virou chantagem retórica, cortina de fumaça, desvio de foco. É irreconciliável procurar “porquês” partindo de um terreno tão pantanoso.

E os porquês passam para o campo do absurdo. Já ouve-se que a posse de armas é um alicerce da democracia, que a posse de armas sustenta o combate à tirania, que há loucos soltos. Ouve-se até que a solução dos massacres está na mega-church.

Afirmar que a democracia americana se formou sobre a liberdade de possuir armas é confundir História com Sabedoria. O passado é sangrento demais para servir de modelo.
Falar de armas para combater a tirania é defender a lei do mais forte. Tirania para esses paladinos da liberdade é tudo aquilo que é diferente. A diferença tem que ser combatida e aniquilada com todas as armas. É por isso que esses super-heróis maniqueístas acham que o massacre foi perpetrado por um diferente, um louco. E que esses diferentes da média rastejante são culpados, que precisamos de armas para nos defender dos loucos, dos diferentes.

E claro, nessa hora, a bíblia não pode faltar. A bíblia é um arsenal de defesas: olho por olho. É a palavra de Deus. Nas palavras de reverendos-business-men, a matilha de conservadores acha o que procura: God bless the National Rifle Association.

O problema é complexo – e qualquer simplificação estatística está na sua origem – mas enquanto não resolvemos o drama de nossa condição humana, bom senso e lógica: uma faca mata menos.

Afirmar que possuir armas é liberdade é o mesmo que defender a liberdade de matar 27 pessoas.