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O trabalho pode ser bom, mas pode ser excelente.

Existem bons restaurantes, e restaurantes excelentes. Nos bons, o endereço é central e fácil de chegar. Nos excelentes, pouco importa onde fica. Nos bons, a galera é legal, bonita e alegre. Nos excelentes, você encontra pessoas que você nem pensaria em ver. Nos bons, a comida é inventiva, bem feita e farta. Nos excelentes, não tem comida, tem experiência e ela será inesquecível. Nos bons, o serviço é atencioso e sorridente. Nos excelentes, você nem percebe que está sendo servido.

Uma empresa de serviço não se chama serviço à toa: sua missão é servir. Um banco, um comércio, uma academia, um hospital, uma agência de propaganda são empresas de serviço. É óbvio, mas é importante lembrar-se, sempre, se queremos ser bons ou excelentes.

Servir não é um ato vil nem vergonhoso. Servir é retribuir às pessoas e ao mundo o que elas e ele lhes deram. Servir é a palavra que qualifica a palavra trabalho, qualquer trabalho.

Desde a revolução industrial, o trabalho foi associado a uma mercadoria, algo que se vende – ou algo que se explora, dependendo do espectro ideológico.

Podemos ver o trabalho como um cárcere (é uma certa origem etimológica da palavra inclusive), que tortura e espreme nossa energia para que seja usada, sempre mal paga, a um poder ou força que nos oprime. Aqui o trabalho é usado, sem ser servido. É uma visão de mundo e, nela, felizes os libertos que mandam.

Mas também podemos ver o trabalho como um “don de soi” ao mundo (“don” de doação, doação de si em tradução desajeitada). Trabalhar é um ato de generosidade, de justiça, de entrega. Nessa concepção, o trabalho não aprisiona, liberta, não confina, define. O humano que trabalha é agente do mundo, da sociedade, dos seus. Aqui o trabalho é servido, e nunca usado. É outra visão de mundo e, nela, felizes aquelas maiorias que dão antes de de receber.

Na primeira visão, o trabalho só serve para ganhar dinheiro. Na segunda, o trabalho serve (e ganha dinheiro).

Essas concepções opostas, não são conjugáveis. Não é possível conceber o trabalho como mercadoria e como doação. Se o trabalho é cárcere, se servir é mero ato de troca, então seu produto será sempre mediano, correto, passável. Já se o trabalho é dar-se aos outros, então seu produto será sempre cuidado, capricho, inventividade.

O trabalho pode ser bom ou excelente. Servir pode ser bom ou excelente. É uma questão de escolha de vida e de mundo em que queremos viver.

Coitados dos desapaixonados

“A paixão é cega. Por isso que ela funciona.
Senão até ela já tinha desistido!”
Eduardo Lima

Para alguns, a paixão é uma doença; para outros, um maná – mas, qualquer que seja a definição, aquece, “posto que é chama”.

Como seria possível enfrentar o sono; os humores da manhã; as picuinhas domésticas; o trânsito atormentado; os bons-dias; os beijos; os crachás; as senhas que mudam; os elevadores que não chegam; as chamadas com superpopulação; as câmeras fechadas; as caras também fechadas; os quebra-cabeças de reuniões; as conversas – esquecidas, novas, escapulidas, inesperadas –; os pedidos de atenção; o aumento; a ajuda; os nãos, todos os nãos, tantos nãos; os não suaves; os “não foi dessa vez”; os nãos sem razão; os “não, mas tudo bem”; os “não quero”, “não sei”, “não vou”, “não posso”, “não aguento”, “não é isso”, “não é aquilo”, “não, quantas vezes vou ter que dizer que é não”?

Como podemos encarar briefings que mudam na primeira apresentação; briefings que não vêm tão cedo, mas prazos que vêm tão rápido; briefings com interjeições, repetições, hipérboles; briefings que não são brief, e briefings que são brief demais; briefings que precisam de rebriefing e debriefing; briefings com anexos; briefings com briefing no anexo; briefings prato-feito, álbum de figurinha, requeijão, rapadura ou iogurte escondido na última prateleira da geladeira?

Como aguentar pessoas que não acreditam, que choram, que choramingam, que têm taquicardia de humores, pessoas que dizem “sim”, mas é “não” e falam “não”, mas é “sim”, pessoas que esquecem, que entendem antes de perguntar, perguntam antes de pensar, pensam antes de dialogar?

Como lidar com a fragilidade de uma ideia, a insegurança de acalentá-la antes que veja o dia; como acreditar nela depois de passar por mil humores, mil emendas, mil tormentas; como convencer a realizá-la com tantos suores, tantas horas e tantos autores, mentores, conselheiros, gurus e todos os demais olhos – de juízes, censores e outros sabidões?

Como ainda dá pra crer em um negócio que tem concorrentes descendo do telhado, surgindo do chão, atormentando no escuro e nos tribunais da internet; um negócio que vai acabar a cada inovação, a cada nova mídia, método ou ferramenta; um negócio que precisa trazer resultado e poesia, pragmatismo e sonho, que deve ser criativo e sofisticado e inovador e revolucionário e big e wow! E que-que-é-isso-esse-filme-da-nova-kombi e, ao mesmo tempo, ser superparceiro-amigo-compreensível-tolerante-e-esperançoso na mesa de compras?

Se não tiver coração, sangue, nervo e paixão, não dá.

A era da procrastinação

Dizem que a quantidade de dados gerados em dois dias pelas principais redes sociais do mundo é equivalente em bytes a todos os dados gerados pela humanidade até o dia da inauguração do Facebook. Dizem também que a quantidade de bytes de toda a Wikipédia é menor do que a quantidade de bytes gerados nas redes dos 100 maiores influenciadores do mundo e seus seguidores. Não sabemos como essa estatística foi calculada e não importa muito saber se está certa. O que interessa é que o conteúdo gerado pelos 100 maiores influenciadores do mundo e seus seguidores não vale um verbete da Wikipédia, nem que seja de autoria de um deles.

E tudo bem: nem tudo precisa ser tão sério e importante.

Mas, para além dessa malignamente viciante invenção chamada rede social que enforca a humanidade nas suas próprias vaidades, estamos vivendo a morte do storytelling em fogo lento.

É claro que, como toda boa engenharia social que se preze, muitos vão dizer que não é bem assim: que nunca se venderam tantos livros, séries em plataformas de streaming e filmes blockbusters; que as biografias estão bombando, assim como os podcasts que resumem a teoria quântica em 12 minutos; que todo mundo quer sua própria websérie; e que seus filhos não dormem sem ouvir pela milésima vez que o lobo mau comeu a vovó da chapeuzinho vermelho. É claro que vão lhe dar números quase tão impressionantes quanto aqueles inventados no começo deste artigo.

Mas a realidade é que basta olhar para aquela estatística de uso de aplicativos no celular para comprovar – dessa vez com números reais – que as pessoas passam um tempo excessivo procrastinando, quando não prevaricando, em redes sociais.

Então, vamos observar – simplesmente observar – aleatoriamente esse conteúdo que o dedo aflito rola todos os dias nas mãos de bilhões de pessoas. Não rola: enrola. Enrola o tempo, como Penélope esperando Ulisses, em uma infinita tristeza, tropeçando aqui e ali em piadas mais ou menos requentadas, em surtos noticiosos mais ou menos verdadeiros, em soluços que passariam mais ou menos na prova de ditado da 4ª série. Se a gente espreme muito e descarta as expressões pré-fabricadas, as mentiras óbvias e as imagens chupadas, naufragamos em destroços de conteúdos editados, parciais e estéreis. É com isso que passamos o tempo, o tempo que passa.

E porque estamos em um veículo que se dirige a pessoas de comunicação, profissionais de propaganda e marketing, isso é uma excelente notícia. Finalmente acertamos. Finalmente realizamos a profecia de Bradbury: a era da procrastinação é o antídoto perfeito à razão, essa qualidade humana que compara para decidir. Mas essa procrastinação, por se despedaçar em retalhos de histórias, também entorpece a emoção. Com a razão extinta e a emoção adormecida, é fácil convencer. Aliás, nem precisa convencer, basta pedir. Boa notícia para a propaganda. Boa notícia para o marketing.

Finalmente, a gente conseguiu um ambiente melhor do que o rádio, melhor do que a televisão, para vender. Durante muito tempo, pensamos em evoluir o formato publicitário na internet para alcançar algo mais sofisticado, envolvente e emocionante. Erro tolo. Não é a propaganda online que tem que melhorar: é a mídia, portanto as redes, que tem que seguir estimulando a procrastinação ad nauseam por meio da agonia do storytelling.

Mas a história não acaba assim. A história acaba quando nos dermos conta de que o tempo passa. Quando nos dermos conta de que procrastinar é perder o tempo que passa. É deixar de fazer o que realmente importa, o que realmente amamos. O tempo não volta. O tempo engelha.

O tempo passa, passa, passa, como uma uva-passa.

Publicado originalmente no Meio&Mensagem de 11/08/2022

La sprezzatura

Por melhor que seja a ideia, por maior que tenha sido o esforço depositado nela, por mais receptivo que seja o cliente, não é suficiente. Existe uma arte de venda de uma ideia. E essa arte tem muito mais da performance sensível do que da objetividade argumentativa.

Uma ideia é um prematuro indefeso se não for preparada, estudada, acalentada e encarnada.

A primeira etapa, mais óbvia, é a de encontrar a melhor maneira de vestir a ideia, de fazê-la encontrar sua melhor face. Não adianta ter objetividade e simplesmente mostrar como ela será vista pelos públicos. Não existe mais jornada com mínimo denominador comum no consumo de propaganda. Tampouco é sedutor tentar uma cronologia, seja de como essa ideia entrará em contato com os públicos ao longo do período planejado, seja de como ela nasceu (do problema ao insight). Essas são apenas racionalizações acadêmicas. Preparar uma ideia para ser contada é identificar seu melhor ângulo – o mais sensível, o mais emocionante, o mais impactante – e começar por ele, como se fosse um trailer, um amuse-bouche para capturar a audiência e deixá-la salivando.

A segunda necessidade é estudar à exaustão o que será apresentado. Confiar no tato, na experiência e no conhecimento da audiência está longe de ser suficiente, pois é preciso ensaio, muito ensaio. É como estudar um instrumento: tocar é só uma questão de técnica e conhecimento. Mas tocar e interpretar são coisas muito distintas. E, para interpretar, é preciso muito ensaio. Sozinho, com plateia, de cabeça, no chuveiro, nos sonhos. Quando o conteúdo todo estiver muito automático – nos reflexos, na ponta da língua –, aí, sim, a mágica opera e seduz.

Depois de tudo isso, é fundamental gostar profundamente do que se vai mostrar. Como de um filho. Amor não é algo que se encomende, claro, mas sabemos que o amor se cativa e se domestica. Uma ideia é como um filho: é preciso gostar de forma incondicional. Se não rolar essa química, melhor passar o bastão para quem tem um sentimento filial com a ideia. Passar a apresentação para quem gerou e cuidou de sua gestação até o fim. Se nem você gosta muito da sua ideia, por que um cliente ou um consumidor iria se apaixonar por ela?

Finalmente, la sprezzatura. Para apresentar uma ideia, é preciso mostrar liberdade e leveza. Contar como se fosse para uma criança dependurada nas palavras da mãe. Sem gaguejar nem censurar. Como aquela cantora que deixa as notas mais difíceis saírem da boca num espasmo mágico. Como um jogo, uma brincadeira, um gozo. Sem franzir o cenho, sem tensão na voz, sem hesitação. Curtindo. Como aquele acrobata que dobra a espinha com a mesma elasticidade de um bambu no vento. Como um Garrincha que dribla meio campo com um sorriso na face. Como um físico quântico, preso a uma cadeira de rodas e contorcido pela doença, que discorre sobre a origem do universo numa associação livre de metáforas, bailando ao som do sussurro das estrelas.

A criação, o algoritmo e Bartleby

Muito além de qualquer invenção, a Revolução Industrial do século 19 nasceu para responder a uma ideia: todo trabalho repetitivo será substituído por máquinas, mais precisas, mais rápidas, mais produtivas e não reivindicatórias. Máquinas não sofrem, não pedem e não reclamam.

O trabalho repetitivo é todo aquele que prescinde de raciocínio, ponderação e análise para ser executado. É apertar parafusos, digitar textos, preencher planilhas, calar nas reuniões, ler em diagonal, jogar Minecraft e rolar miseravelmente as redes sociais inventadas para sequestrar o tempo. Como as máquinas, os algoritmos existem para substituir o ser humano em suas tarefas repetitivas.

Todo algoritmo, vendido (e comprado) como uma extraordinária inteligência, é só um conjunto finito de regras que, aplicado a um conjunto finito de dados, resolve um problema. Um algoritmo não tem inteligência: tem método. Tanto o algoritmo que seleciona respostas a uma pergunta – o Google – quanto a máquina que nos propulsiona sem nos cansar – a locomotiva – são fantásticas invenções.

É claro que, na observação microscópica dos fenômenos, ainda podemos preferir encontrar respostas na enciclopédia impressa: esta não veiculava coisas erradas, não viciava e não tinha propaganda. Mas tais conclusões são estreitas. Não podemos mais viver felizes sem algoritmos. Com exceção dos luditas e outros veganos, a volta às cavernas é uma opção de vida trabalhosa e cara.

A questão perturbadora, contudo, é perguntar o quanto nosso trabalho pode ser substituído por um algoritmo. Ou, mais radicalmente, quando nosso trabalho poderá ser substituído. Mas estávamos falando de trabalhos repetitivos. Vale, então, reformular a questão: em vez de “o que pode ser substituído no trabalho?”, talvez seja melhor perguntar “o que é repetitivo nele?”. Ou, ainda, indagar “o que não é repetitivo no meu trabalho?”. Pois não é repetitivo tudo aquilo que é novo, original e diferente. Ou, claro, não é repetitivo tudo aquilo que é criativo.

Não é repetitivo tudo aquilo que é feito pela primeira vez, que não foi ousado ainda, que se atreve. Não é repetitivo tudo o que contraria o status quo, as regras, as pesquisas, os dados, o passado, o senso comum, o conveniente, o responsável, o bem-pensante, o correto, o normal, o briefing.

Não é repetitivo tudo aquilo que diz “não” ao conjunto finito de regras que, aplicado a um conjunto finito de dados, resolve um problema. Não é repetitivo o que difere da solução do algoritmo. As máquinas, os algoritmos, as ferramentas e as inteligências artificiais não são inimigas: elas são referências ou, se preferirem, a régua ou o estímulo para que o trabalho seja melhor ou diferentemente melhor – portanto, criativo.

É um desafio danado, mas é melhor sentir esse frio na barriga do que rezar pelo adágio do “tomara que eu morra antes”, que já matou tanta gente antes da hora.

Bartleby (de Bartleby, o Escrivão, do escritor estadunidense Herman Melville) é um funcionário-padrão. Todos os dias, acorda, veste-se e vai trabalhar em um escritório qualquer de contabilidade, mas poderia ser de propaganda. Ele faz o que mandam e preenche seu timesheet, todos os dias, com a mesma competência. Um dia, ele resolve “não”: “I would prefer not to”. “Não” fazer como todos os dias. Desobedecer: “I would prefer not to be a little reasonable”. O “não” de Bartleby é o começo do “sim” redentor.

E, sempre que a gente se sentir desencorajado pelas distopias do Vale do Silício, lembramo-nos da utopia de Melville: “Ah humanity!”. “Machines have less problems”, disse Andy Warhol. E acrescentou: “I want to be a machine”.  Do you?

Reinvenção não é mágica

Ouve-se muito por aí a máxima (pré-histórica) de que o “negócio da propaganda” precisa reinventar-se: porque a internet, porque a mídia, porque as start-ups, porque a geração Z, porque a pandemia, porque a guerra na Ucrânia, porque o eclipse, a Anitta, as mudanças climáticas e o Rivotril que perdeu o efeito. Os apólogos da mudança também são variados e surgem de todos os cantos: tem o ex-publicitário rico “depois de mim, o dilúvio” e tem o publicitário futuro dono de pousada “não aguento mais isso”; tem o cliente “estão me pressionando” e o cliente “segura a bronca”; tem o veículo “o BV é meu” e o veículo “BV, nunca ouvi falar”. Falam na mídia, nas redes sociais, nas reuniões, nos festivais, no cafezinho e, principalmente, na hora de negociar.

O fato é que “o negócio da propaganda” se reinventa desde que nasceu. Se é que nasceu um dia. Se é que foi inventado.

Ninguém mais duvida de que esse negócio é essencial aos negócios. Em diversos e variados formatos, seja independente, em um grupo, no próprio cliente, integrado, descentralizado, com fiéis parceiros ou infiéis aventuras: toda marca precisa de especialistas em contar para os consumidores o que ela faz, pensa, deseja e defende.

Mas, com o tempo, esses fatos acima, esses perfis de profissionais e uma miríade de públicos finais exigiram dos especialistas em contar o que as marcas fazem, pensam, desejam e defendem uma especialização ainda maior. Não veio do publicitário a decisão de que era bom ter gente que entende de dados, de psicologia e de dinâmicas co-criativas; gente que sabe escrever roteiro de filme e minissérie e longa e música e todo o storytelling da intricada e insondável teia de plataformas de relacionamento. Não foi o publicitário que, do nada, acordou dizendo “pessoal, acho que seria bom a gente saber como faz para comprar mídia no Google, no TikTok ou no carro de som”. Não foi o publicitário que, para ficar mais rico, inventou um monte de subespecialidades.

A internet, as consultorias, a mídia, as start-ups, a geração Z, a pandemia, a guerra na Ucrânia, o eclipse, a Anitta, as mudanças climáticas e, em última instância, os clientes pressionados e que pressionam exigiram dos especialistas a execução de mais e mais tarefas. A contração de mais e mais especialistas portanto.

Talento é pouco

Monica tem uma loja de chocolate em Lubec, cidade de 334 habitantes na fronteira do Maine (Estados Unidos) com o Canadá. Cidade pacata, rural e pobre. Não tem McDonald’s mas também não tem nenhuma loja vegana nem boutique de queijos gourmet. Para um nova-iorquino, Lubec é o que mais se assemelha ao fim do mundo.

Mas a loja Monica’s Chocolate é um arraso: colorida, alegre, bem decorada com centenas de opções de recheios, embalagens, brinquedos e storytelling. A loja da Monica respira carinho a cada chocolatinho embalado com tanto esmero que até dá dó de abrir.

Monica faz tanto sucesso que pessoas de todo o país compram em sua loja, além de ter vários imóveis na cidade, sustentar uma ONG indígena no Peru e querer ampliar seu negócio: “Fernand, venha para Lubec, é uma terra de oportunidades! Podemos ser sócios”.

Quando Monica chegou a Lubec alguns anos antes, ela foi cuidar do marido que nasceu naquela cidade: um executivo de uma multinacional, que sofreu um AVC em Lima e não possuía plano de saúde. Depois de algum tempo gastando o que tinham para o tratamento, Monica se viu com cem dólares no bolso, um marido para sustentar e nenhuma qualificação, experiência profissional ou talento específico. Em Lubec, Maine, uma terra de oportunidades. Com seus cem dólares no bolso e uma fome atávica de sobrevivência, foi à livraria da cidade, comprou livros sobre como fazer chocolate (poderiam ter sido sobre veganismo ou queijos gourmet), encomendou matéria-prima e, no porão de sua casa, pôs a mão na massa. Monica, dona de casa de uma família burguesa de Lima, não sabia lidar com dinheiro: foi ao banco e pediu um empréstimo: “Ma’am, sorry, com seu histórico, recuperando-se de um câncer e um marido com AVC, posso lhe emprestar um pouco de dinheiro, mas a senhora vai recusar a taxa que vou lhe dar”, disse o gerente. Monica aceitou.

A menos que você seja pescador de lagosta, a loja da Monica é a única atração que vale o desvio para Lubec, Maine.

Qual é o segredo da Monica, que não falava inglês, não sabia equilibrar as finanças e nunca cozinhou na vida quando chegou a Lubec, Maine?

Talento?

O que fez o sucesso da Monica foi o trabalho, o cuidado. Foi a preocupação em fazer bem-feito, independentemente do dinheiro ou da pressão. Talento ela tinha, para sobreviver. Mas foi o amor ao trabalho que deu à Monica o passaporte para ser fornecedora da Casa Branca.

Talvez existam razões históricas para o nosso tão brasileiro desprezo ao trabalho. Pouco importam as razões de nossa gênese como povo: elas podem explicar, mas não justificam. Não justificam que a gente se apoie na nossa pretensa “criatividade” (perigosamente sinônimo de improviso) apenas para conduzir nossas entregas profissionais. Não justifica que um trabalho seja mal-acabado, malcuidado, sujinho e com errinhos, “mas tudo bem, né gente? A ideia é tão boa ou barata!”.

Intuição e talento não são nada sem trabalho. Nem em Lubec, Maine, nem aqui.

Falando com ninguém

Muita gente está vivendo a experiência de trabalho a distância pela primeira vez. Mudou ou não mudou? O que mudou, se mudou? O que não mudou, se pouco mudou?

Há mudanças que revelam mais do que modificam.

Antes da COVID-19 (AC), se alguém chegasse vestindo um boneco de Olinda, você diria um “oi” gozador ou passaria reto dando risada.

Depois da COVID-19 (DC), por que prestigiar quem entra sem câmera numa reunião remota?

 

AC, se alguém ligasse para você e não falasse nada do outro lado da linha, você desligaria.

DC, por que se preocupar com mudos invisíveis?

 

AC, quando alguém levantava correndo acometido por uma dor estomacal súbita, você não iniciava uma conversa com a pessoa.

DC, por que conversar com quem sumiu da conversa ou nem se mostrou?

 

AC, você já foi ao escritório de ressaca, sentindo-se péssimo, feio e malvestido. Nem por isso você se vestiu de boneco de Olinda pra disfarçar.

DC, por que as pessoas que ainda não tomaram banho, não se pentearam ou não se olharam no espelho desligam as câmeras dizendo: “ninguém merece me ver assim”?

 

AC, se alguém chegasse vestido de forma contrária aos seus padrões de qualidade, você respeitaria os critérios dessa pessoa e não deixaria o seu julgamento invadir a apreciação.

DC, por que o seu olhar crítico para o ambiente onde as pessoas se encontram mudaria o valor do que dizem?

 

AC, quando alguém era interrompido por uma gritaria interminável ou um barulho de furadeira, você encerrava a reunião.

DC, por que uma criança com fome ao lado do seu interlocutor remoto merece toda a calma e compreensão do mundo?

 

AC, quando alguém não saía do celular numa reunião, você repreendia essa pessoa educadamente, parava a sua explanação ou a fuzilava com olhar.

DC, por que você tem que achar normal as pessoas desviarem o olhar da câmera para responder uma mensagem?

 

AC, se alguém era interrompido numa reunião para resolver um problema, a pessoa em questão podia fazer um muxoxo educado significando “agora não, por favor”.

DC, por que você deve aceitar a desculpa “eu estava resolvendo uma pendência” quando alguém para de prestar atenção ao que está sendo dito para responder uma mensagem?

 

AC, você escolhia uma sala de reunião em função do número de pessoas.

DC, por que as salas têm que ser infinitas?

 

AC, muitos assuntos se resolviam em papos informais, num encontro, numa ligação, num tempo que não tinha sido previamente marcado.

DC, por que tudo precisa de uma reunião, e as agendas viraram um Tetris apavorante?

 

AC, quando alguém tinha uma conversa paralela numa sala ou mandava um bilhetinho, você achava chato, infantil, vulgar e desrespeitoso.

DC, por que você deveria achar natural quando claramente se percebe que a pessoa está de conversinha paralela? E por que você faz a mesma coisa instintivamente?

 

AC, se os pets podiam frequentar os escritórios, as pessoas pediam desculpas quando eles interrompiam uma reunião latindo desesperadamente.

DC, por que a gente tem que achar fofo tudo o que aparece na tela do computador mesmo quando é remelento e mimado?

 

AC, as pessoas mostravam os filhos no cafezinho, e era um prazer fazer bilu-bilu com uma foto.

DC, por que, de repente, as crianças têm que interagir com a gente nas reuniões remotas?

 

AC, você não podia ostentar felicidade e tinha um recato educado em relação aos seus problemas.

DC, por que você tem que fingir que se compadece com a sorte do próximo e disfarça quando está transbordando de alegria?

 

E por aí vai.

Será que as coisas mudaram mesmo ou tudo não passa de um pretexto para sermos o que somos, ou seja, mal-educados, preconceituosos, grosseiros e egoístas?

Propaganda e assédio

Matisse nunca assinou um quadro. Pudera: era um artista experimental. Picasso assinava até o papel higiênico em que obrava. Era um artista conceitual.

Picasso não somente assinava mas também enumerava e catalogava tudo o que produzia. Tudo o que produziu foi obra, ideia, conceito. Imediato, bombástico, performático. Obra que se abate no olhar como um raio fulgurante, deslocando a percepção e transformando a compreensão. Radicalmente. Assim como Duchamp, Bispo do Rosário e Koons. Artistas conceituais.

Propaganda tem que ser conceitual. Tem que viver de porrada em porrada. Uma atrás da outra. Uma em cima, uma embaixo e, quando vem defesa embaixo, bate em cima de novo. Não adianta ser safe, bater leve, ficar na defesa, no quentinho molengão do keynote. A propaganda tem que enunciar, posicionar, confrontar. A ideia é um big bang, um início explosivo que te faz rir ou chorar. Ou, talvez mais importante, que desperta você.

Matisse, quando estava no Sul da França, gostava de pendurar seus trabalhos nas árvores para que eles ouvissem as árvores, o vento, a montanha, o canto da cigarra. O retrato ouvindo o retratado. O retratado pintando o retrato. Autorretrato. E, não raro, a obra ficava inacabada, como são inacabados, mutáveis e infindáveis o campo, o céu e o sussurro do rio. Era sem dúvida por isso que Matisse não assinava nunca. Nunca era findo o experimento. Assim foi Da Vinci também com sua Mona Lisa que acariciou até morrer. Artistas experimentais.

Contudo, andam iludindo a gente e, a custo de narrativas esculpidas no Vale do Silício, dizem que experimentar na propaganda é uma espécie de arte. Cravejadas de dados, elas enunciam que “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. Diante de tão revolucionário conceito, fabricaram ferramentas para enfiar os coitados dos consumidores nos funis de conversão ou em outras armadilhas torturantes. Precisamos vigiar os infelizes vinte e quatro horas por dia e monitorar as presas para morderem a isca e detonarem o cartão de crédito até a quinta geração. Temos que saber tudo e aprender tudo para sufocá-los até pedirem arrego. É como aquela tortura da água que pinga na cabeça do sentenciado: uma hora o sujeito abre o bico.

Esses experimentos são simplesinhos, e seus intuitos são não terminar jamais. Always beta, always learning. Tudo devidamente ornamentado de resultados ali na lata: fez isso, deu aquilo; fez o inverso, deu aquilo outro. Afinal de contas, se nunca acaba, não tem longo prazo, só curto mesmo: tudo no passinho curtinho – bobinho, mas bonitinho. Always beta, always learning e, principalmente, always costing. Como não são mais os mesmos aprovadores depois do curto prazo, ninguém faz a conta a longo prazo. Então, parece mais barato também.

Se a propaganda fosse arte – e talvez seja, às vezes –, ela não poderia ser experimento. Não há tempo, não há sensibilidade, não há grana que pague uma longa e profunda maturação. No mundo do consumo, o jogo se ganha no imediatismo, no reflexo, no tapa na cara, na porrada no estômago. Knockdown ou nada.

Essa coisa experimental não é arte. Nem propaganda. E essa coisa também não precisa de criação, só de malcriação. Não é propaganda: é só assédio.

A pandemia da opinião

É atribuída a Richelieu (o grande ministro do rei Luís XIII na França) a frase “se me dão seis linhas escritas do mais honesto dos homens, eu encontrarei o suficiente para enforcá-lo”. Seis linhas, um post, um tuíte, uma foto.

As redes sociais liberaram a palavra e deram palco e espelho narcísico para as pessoas – qualquer um capaz ou não de dominar discursos, articular argumentos e estilos. E isso é bom porque a liberdade começa pela fala. Não se luta contra a opressão com o silêncio. É de se esperar que, depois do caos, surja certa disciplina e alguma ordem. É de se sonhar que reine a etiqueta e a reflexão.

No entanto, as plataformas de opinião inauguradas pela internet– as redes sociais e suas lógicas únicas – privilegiam duas estruturas de discurso pouco elaboradas: a instantaneidade e a hipérbole. Tudo tem de ser imediato, no calor e no atropelo; é preciso ser rápido e valorizar a moeda social do engajamento. As postagens também devem ser enfáticas, muito adjetivadas e exclamadas, justamente para repercutir, causar e se espalhar.

As redes sociais são o veículo de reação com aparência de opinião. Quem nunca soltou, espalhou ou creditou, no reflexo apaixonado, informações ou ideias das quais se arrependeria se tivesse a chance de analisá-las minutos depois? Quem nunca? Contudo, os efeitos da praga de opinião precoce e enfática são incontroláveis e invisíveis. Soltou e vociferou: esqueça ou reze.

As redes sociais, da forma como estão e progridem, são arenas de embates e não de debates. Reagir e refletir são verbos que não se conjugam da mesma maneira. A reação tem de ser rápida e exagerada para ter efeito. A reflexão deve ser lenta e cuidadosa para ser justa. E não é possível reagir e refletir ao mesmo tempo.

Se acreditamos na opinião reflexiva ainda que acessível, argumentada ainda que democrática, serena ainda que impactante, as redes sociais e seus públicos precisarão evoluir para constituir espaços civilizatórios.

Enquanto isso, o que grassa como um vírus biônico é a opinião apressada, maniqueísta e binária de bulas de autoajuda 2.0.

E esse vírus tem cura. Não precisa suicidar-se das redes nem impor censuras. Basta sossegar o dedo nervoso. Basta deixar que falem sem dar bola à gritaria.

Ritualbrands: uma ética para as marcas

A grande – e talvez única – inteligência do ex-presidente dos Estados Unidos foi ter trabalhado sua marca como se fosse a de um produto comercial. Com as mesmas técnicas, as mesmas métricas e as mesmas campanhas utilizadas pelo mais banal dos bens de consumo: ouve-se o povo para moldar a mensagem. O que será de Trump? Pouca coisa, mas o irresponsável e nocivo trumpismo venceu – e de seu autor deu cabo.

Se numa democracia o poder emana do povo, uma marca pertence a quem a consome. É a partir do sufrágio da boa vontade do consumidor que uma marca trona, e são sujeitos de seu poder a empresa, seu marketing e suas agências de comunicação.

As marcas têm poder, e esse poder emana do povo: daqueles que as compram, amam ou odeiam.

Uma marca é a representação simbólica – portanto abstrata – de um produto (ou serviço) e tem como objetivo reconhecê-lo e distingui-lo dos demais que são seus equivalentes concorrentes. Uma marca também é a representante universal e popular de um sistema produtivo, de uma organização, de uma empresa e de seus colaboradores, acionistas, fornecedores e clientes. Uma marca não é, portanto, um acessório charmoso e dispensável. Uma marca não existe apenas para encher de graça e história um bem comercial. As marcas não têm somente méritos mas também culpas, deveres e responsabilidades.

Durante muito tempo, as empresas e as agências entenderam que as marcas estão a serviço dos produtos que comunicam e devem ser domesticadas ou aliciadas para servir aos propósitos econômicos das organizações que representam. Muitas vezes, são armas de dissuasão para dourar a pílula de práticas subterrâneas ou servem de biombos, trampolins ou máscaras a interesses individuais daqueles que as manipulam.

Contudo, se a força de uma marca emana de quem a consome e não de quem a gere, ela tem deveres para com essas pessoas.

Essa perspectiva, contraintuitiva para tantos profissionais de marketing e comunicação, no entanto, abre novos universos de atuação.

Também achávamos que existiam dois mundos: o das coisas concretas, do dia a dia, e o do imaginário, da imagem e dos estímulos sensoriais da propaganda. Achávamos que esses dois mundos se encontravam apenas no fundo do nosso bolso, também conhecido como fundo do funil de conversão de consumo. Naquele instante mágico, que fazia estremecer de prazer marqueteiros e publicitários, a rede agarrava o peixe, sem dilema.

A crença de um tempo em que peixes não falavam, não gritavam e não filmavam. A crença de um tempo em que George Floyd morria em silêncio, de um tempo no qual os peixes eram presas fáceis. Para o bem e para o mal, para a luz e para a mentira, com tolerância ou sem: o povo opina e fala, debate e polariza, acredita e age.

Não há mais dois mundos, o mundo onde estratégias e mensagens são urdidas e o mundo da boca do caixa. Este mundo é um só, e as marcas são porta-vozes do povo que lhes dá poder.

Foi com essa crença que criamos Ritualbrands, uma nova maneira de pensar e trabalhar para as marcas. Ritualbrands é um projeto audacioso, muito além da estética insensata da comunicação tradicional. Não é apenas um raciocínio nem só uma metodologia. Não é somente uma forma de auferir e mensurar a performance de estratégias de marketing e comunicação.

Ritualbrands é uma ética que coloca as marcas no centro de suas responsabilidades como agentes influentes da nossa sociedade.

O admirável “novo normal”

Com o confinamento forçado, descobrimos que a sociabilidade não é uma alternativa de vida, e sim um imperativo de sobrevivência e que as aparências — filtros fugazes — não alimentam: viciam. Descobrimos também que as coisas não falam, não cheiram, não abraçam nem beijam. Encontramo-nos meditativos, essenciais e cheios de mente.

A expressão “novo normal” surgiu pela primeira vez na crise de 2008. É difícil dizer o que aconteceu de “novo” depois disso, para além de intenções e promessas. Desde o começo da pandemia, o termo voltou, virou um trending topic e tem substituído muitas sessões de terapia. O “novo normal” é o que está justificando nossas frustrações, fraquezas e preguiças. Nesse “novo normal”, seremos mais saudáveis, mais solidários e mais conscientes. Nesse “novo normal”, haverá menos egoísmo e menos vaidade.

Nesse admirável novo, consumiremos menos também.

Se os quatro quintos da humanidade que consomem mais do que precisam doassem um quinto do que têm para o quinto que consome menos do que precisa, ninguém morreria de fome na Terra.

Ou se um quinto do quinto do quinto do quinto daqueles que consomem mais do que precisam doassem um quinto do quinto do quinto do quinto do que têm, cinco quintos dos humanos — todos eles — teriam mais do que precisam para viver. Cinco quintos dos humanos viveriam com tudo que faz nossas complexas existências serem mais felizes do que somente aquilo que mata a fome para viver.

Isso porque, quando muito, um quinto de tudo o que consumimos serve para matar essa tal fome para viver. Os outros quatro quintos servem para matar a fome de viver.

Com o perdão da ironia, prometem-nos que, no admirável “novo normal”, todos aqueles quatro quintos da humanidade que consomem mais do que precisam para viver estarão satisfeitos com um quinto, e, assim, o quinto que consome menos do que precisa poderá viver dignamente.

Mas se fôssemos para o divã sem mentir, se fôssemos conscientes de nossas fraquezas, talvez admitíssemos quão adoráveis elas são. Fraquezas consumidas para ocupar pelo menos quatro quintos de nossas vidas com deliciosas coisas inúteis e atividades dispensáveis. Deliciosas porque dispensáveis.

A fome de viver são os reais e palpáveis prazeres. Vis prazeres. Alguns vergonhosos, outros ingênuos, mas todos quase sempre supérfluos. Olhe a seu redor, abra o armário, desça no porão, revisite sua agenda de antes e relembre seus projetos. Viu de quantos adoráveis prazeres inúteis é feita sua vida?

Essa dualidade entre necessidade e desejo, entre sobreviver e viver, entre precisar e querer é o ringue de todos os dias de qualquer trabalho de comunicação. Num canto, a emoção; no outro, a razão. Num canto, a motivação; no outro, a função. E quando surgiram métodos mais rápidos, mensuráveis, baratos e automáticos de produzir e influenciar a compra, quando apareceu a propaganda siamesa da busca na internet — a propaganda que associa Michelangelo a pizzaria —, a diferença ficou mais clara. E, apesar de toda a saliva gasta, ainda não criaram um festival de criatividade para os anúncios da Pizzaria Michelangelo di Napoli.

A propaganda é a arte dos quatro quintos inúteis prazeres. Ela entende de preencher de sentido os quatro quintos prazeres que alimentam a fome de viver.

E o quinto restante é trabalho para o algoritmo. A fórmula que calcula sua propensão racional a comprar e que recheia a internet de propaganda feia entende mais do quinto útil. Deixe com eles. Se você é publicitário, cuide dos quatro quintos inúteis. Não é pouco, não.

Quando tudo voltar ao normal — o “novo” —, é pouco provável que a gente esvazie as gavetas de fome de viver.

As frugais promessas do “novo-normal” ficarão no divã. De “novo-normal” o inferno está cheio.

Publicado originalmente na edição de 07/07/2020 do Meio&Mensagem

E depois?

Meu avô e a família decidiram esconder-se com a roupa do corpo e algumas economias. Foram para o Sul da França viver uma vida anônima e simples enquanto durasse a guerra. Todos os dias, uma nova dificuldade, uma nova provação ou ameaça. Mas, à noite, todos reuniam-se e, depois de rezas adaptadas aos parcos conhecimentos da religião, cantavam “Demain, Yerushalaim! Demain, Yerushalaim!”. Uma longa litania, entoada num coro abafado, ainda e ainda, todas as noites, todas as noites.

Quem prevê crise é historiador, depois de a crise passar. Não estávamos preparados para a crise da COVID-19. Ninguém. Nem os mais ricos, nem os mais desprovidos. Nem os mais sabidos, nem os mais bobos. Nem os intelectualmente dotados, nem os ideologicamente atrofiados. Nem os medíocres do bem, nem os medíocres do mal.

E essa crise, mais do que qualquer outra, era ficcional demais para ser crível e distópica demais para ser séria. Portanto, mesmo que a gente descompense nosso espanto batendo no bobo de plantão, estamos reagindo, com ou sem a ajuda do plantonista.

Estamos, hoje, contingenciando, assumindo o golpe, estudando o contexto, aprendendo a conviver em um cenário de recolhimento e retração. Todo pessimismo é necessário e preventivo. Como é difícil ser pessimista!

E parece tão, mas tão inoportuno falar de negócios diante do drama dos prognósticos. Tão vulgar subestimá-los para justificar interesses. Nossos threads já estão poluídos de profetas – apocalípticos ou condescendentes –, gente dizendo que é mais ou menos, que é pior ou melhor. Um esporte às vezes inconsciente, mas sempre sinistro, inócuo, vazio, inconclusivo e dispersivo.

Então, parece melhor viver no reflexo, no dia a dia, no pulso, na intuição e na reação veloz. Contingenciamento estratégico é um oximoro, mas funciona. Vamos navegar carpe diem, fazendo o que podemos e até o que nem suspeitávamos que podíamos, para mitigar os efeitos da crise.

Passado o momento do susto e dos oportunismos voluntários ou ingênuos, é surpreendente ver como, em tão pouco tempo, uma onda de solidariedade altruísta, agnóstica e cidadã está mobilizando as empresas e as marcas. Não cabem mais julgamentos aqui. Não estamos mais numa briga por voz e originalidade da mensagem. A briga é pelo movimento que gera mais movimento.

Mas isso é só uma parte. Porque vai ter um depois. E já, já o depois chega. Depois da contingência. Depois da crise. Algumas deixam sequelas e feridas; outras, até saudade. O que é que vamos fazer depois? Continuar contingenciando?

Aqui, o jogo é de estratégia. De verdadeira estratégia. Perdemos o hábito porque, apesar de termos dado um upgrade na disciplina por modismo, nossas estratégias ainda não passam de planos. Mas estratégia e planejamento não são a mesma coisa.

Planejamento é leitura de contexto e antecipação de movimentos no tempo, enquanto estratégia é intuição e desenho de cenários. Planejamento tem a ver com probabilidades; estratégia tem a ver com visão. Planejamento tem a ver com pragmatismo; estratégia tem a ver com imaginação.

Ser estratégico agora significa ser intelectualmente honesto, neutro, sem ideologia nem paixões.

Vamos sair da crise, e tudo será como sempre foi? Com as mesmas pulsões, as mesmas necessidades, os mesmos medos, as mesmas neuroses? Terá sido uma “crisezinha” sem sequelas? Pode ser. E se for, o que faremos?

Vamos sair da crise e teremos aprendido algo? Teremos flexionado nossos valores? O mundo será mais equilibrado? Terá valido a pena? Não seremos os narcisistas consumistas de antes? Pode ser. E se for, o que faremos?

Ou será que a crise não vai acabar, que vai emendar em outra e mais outra? Será que isso foi apenas um alerta, um aquecimento, uma crise beta? Como viveremos assim, de surpresas em surpresas? Como iremos conviver com inimigos invisíveis? O que faremos?

O que faremos nesses ou em outros cenários mais oníricos ou dramáticos?

A COVID-19 não é só um briefing de hoje mas também um briefing de amanhã.

Meu avô dizia que, durante os cinco anos de guerra, ninguém teve uma dor de cabeça apesar das perseguições, ninguém teve uma dor de barriga apesar da salsicha gordurosa, ninguém teve uma briga apesar do confinamento de quarto e sala sem janela. Todo dia era uma vida inteira. E todas as noites, noite após noite, eles se preparavam para “Demain, Yerushalaim!”.

Publicado originalmente no Meio&Mensagem de abril 2020

Entre mentirosos e cândidos

Nos canais de maior prestígio do mercado, é comum descobrir que as agências estão atualizadas com todos os catecismos modernos.

Fazem processos criativos colaborativos (com todos, inclusive os clientes), estão organizadas em squads (ou outros formatos anti-hierárquicos), promovem design sprints (ou outros métodos criativos arejados), trabalham em processos agile (ou outros formatos rapidinhos), têm escritórios afetivos (ou pets and kids friendly, hot desk, pijama-office) e operam em redes descentralizadas (ou hubs ou qualquer termo que ajude a diminuir as responsabilidades trabalhistas).

Também pululam experiências idealizadas e alternativas de inserção profissional (que sejam apetitosas para os releases), processos seletivos psicossociais (ou aqueles que levam em consideração aptidões assintomáticas), políticas de inclusão e formação de minorias (sejam aquelas engajadas ou expiatórias de culpa) e metas de diversidade (de sexo, gênero, idade, raça e aparência, além de outros critérios científico-emocionais).

Se formos acreditar no que lemos, quase todo mundo está aparelhado técnica e culturalmente para apurar, ler, curar e analisar dados e contextos complexos (com todos os arsenais disponíveis e metodologias próprias apoiadas por anglicismos inteligentes), bem como para receber com generosidade e apetite no processo criativo inputs automatizados (dos dados, dos algoritmos e de todas as criações mercadológicas dos parceiros igualmente bambambãs de modernidades científicas).

Também ninguém mais possui ego nem dá valor à ficha técnica: só são inscritos em festivais trabalhos que realmente tiveram reverberação real (porque o que importa é a efetividade e o impacto no negócio, nos interesses dos stakeholders, na aceitação da sociedade ou no futuro da espécie, do planeta e de cosmogonias variadas).

Outro lugar-comum é que são poucas as agências que ainda dependem da mídia para remunerar-se e que quase todo mundo tem prestação de contas totalmente transparente, baseada numa relação de escopo/recursos reais e em fees de sucesso agressivos (sem falar da competição ética que nunca embute na formação de preço as rentabilidades oriundas de descontos, bônus, incentivos totalizadores, ou outras metáforas).

E, claro, todas essas evoluções do mercado são confirmadas pelos testemunhos honestos publicados nas redes sociais de seus divulgadores com afinco e até certa dose de humildade compensatória.

Em síntese, a crítica é blasfematória, e a autocrítica, suicida.

Talvez seja fruto de nossa formação cultural – segundo a qual a sinceridade é considerada um atentado ao convívio profissional – evitar o confronto com a verdade. Essa falaciosa polidez ou falsidade carinhosa é terreno fértil para a fofoca passivo-agressiva.

Mas por que o teatro continua? Somos ora cândidos, ora mentirosos, mas nunca, nunca desatualizados.

Publicado originalmente no CCSP dia 02/03/2020

O que o data driva

As baleias, além de serem animais lindos e impressionantes, foram uma matéria-prima que moveu a economia norte-americana no século XIX. O óleo de baleia era um combustível valioso para a iluminação e a motorização, bem como fazia parte da composição de inúmeros produtos.

Por meio século, a pesca da baleia e o beneficiamento do óleo formaram a quinta maior indústria norte-americana. Fortunas enormes constituíram-se, muitas vezes anônimas, e financiaram o início da industrialização do país. Poucos sabem, mas os robber barons, que dão nome a formidáveis impérios e obras filantrópicas no mundo inteiro, devem seu sucesso, em grande parte, ao dinheiro da baleação.

 

Mas quem já esteve em mar aberto sabe que encontrar algo – por maior que seja – naquela imensidão, não é fácil, muito menos considerando os recursos tecnológicos da época. As baleias não andam em bando nem têm predador natural e são as rainhas dos oceanos há séculos. Desenhar as rotas desses animais extraordinários era uma obsessão. Seguir as mais produtivas encurtaria viagens que muitas vezes duravam anos.

É tarefa meticulosa e disciplinada de todo capitão de navio registrar em seu diário de bordo cada um dos acontecimentos ao longo de sua jornada. Isso constitui o que chamavam “logs de navegação”. Muitos pesquisadores então começaram a desenhar, a partir desses preciosos registros, os famosos e indispensáveis mapas baleeiros. Milhões e milhões de dados coletados, cruzados e curados tinham a ambição de transformar a baleação em uma indústria data-driven.

Em 1859, Edwin Drake fez a primeira perfuração de solo em busca de outro óleo, o petróleo, nos Estados Unidos. 1859 era o auge do setor baleeiro. A substituição foi meteórica. Em 1865, a produção de óleo de baleia foi reduzida à metade; em 1870, à metade novamente – até desaparecer por completo na virada do século. A primeira indústria data-driven do planeta morreu para a sorte dos cetáceos e o azar do aquecimento global. Bancos de dados extraordinários viraram peças de museu.

A obsessão pela rápida – e cada vez mais rápida – coleta e análise de dados – e cada vez mais dados – dá conta daquilo que sabemos pesquisar. Mas ainda há todas as pesquisas que não sabemos fazer. Pior: há todas as realidades que nem sequer desconfiamos que existem para ser pesquisadas. E essas realidades são muito maiores do que aquelas nas quais mergulhamos as nossas sondas. Muito maiores do que os nossos cookies e tags histéricos são capazes de revelar.

Para tudo o que sabemos, dados. Para todo o imenso resto, mágica.

Publicado originalmente no CCSP, no dia 01/02/2020

 

O fabiofernandismo

Muitas linhas ilustraram nos últimos dias o impacto da saída temporária de Fabio Fernandes do cenário publicitário. A maioria delas, revestidas de saudosismos inconfessos, eram memorialistas: seus feitos, suas conquistas, suas glórias. Alguns também se aventuraram a diagnosticar – sem vergonha de destilar comparações autoelogiosas – uma espécie de ocaso nostálgico e funesto. A maior parte das homenagens eram conjugadas no passado e do tipo “depois de mim, o dilúvio”.

Mas uma obra não se constrói apenas com monumentos, comendas e lindas histórias. Uma obra que vale a pena infiltra-se no presente porque influencia e inspira pessoas.

O fabiofernandismo talvez seja uma escola ou uma filosofia, um jeito ou um cacoete, mais do que uma obra. O fabiofernandismo acontece no presente edificante, e não no passado reconfortante.

O primeiro traço dessa escola é a fome enorme, insaciável e incontrolável de trabalho: gosto e prazer que nutrem a vida. Fabiofernandismo é não achar que trabalho é dever nem direito. É entender que trabalho é sentido. Em um país atingindo por séculos de clientelismos, favoritismos e outras preguiças, a demonização dos ébrios por trabalho, tão anos oitenta, criou raiz. Em tempos em que se confunde rigor com pressão, o fabiofernandismo talvez seja uma higiene redentora.

Outro traço corolário do primeiro é uma extraordinária obsessão pela qualidade e pela superação. O fabiofernandismo pratica enduros, extremos e competitivos, até a linha final. É por isso que erra às vezes na dose, mas, quando acerta, vira o jogo para sempre. É por isso também que, em um mercado de comunicação todo regrado, tabulado e repleto de outros medos, o fabiofernandismo foi assimilado a tempos mais fofos ou fodas, quando, na realidade, ele está aqui e agora, lutando contra um conformismo que mascara a falta de originalidade com uma arrogância cheia de pragmatismos decorados.

Além disso, o fabiofernandismo reza o catecismo do humor. Para os seguidores dessa escola, humor não é truque nem formato. Humor é coisa séria, porque ainda não descobrimos uma melhor maneira de distinguir os Homo sapiens: o que faz sorrir engaja mais. Mas o riso sempre apavorou os carolas, pois, além de convencer, ultrapassa limites moralizadores. Tristes daqueles que levam sua marca tão a sério que toda a comunicação vira mandamento, bula ou cuspidas automatizadas.

Não foi Fabio Fernandes quem inventou o fabiofernandismo. Foi o fabiofernandismo que inventou o Fabio Fernandes, assim como inventou outros que vieram antes e que virão depois.

Australopitecos no Vale do Silício

O australopiteco pode ter sido um ancestral comum na escala evolutiva entre os homens e os grandes símios. Eles eram basicamente vegetarianos e, para correr de rinocerontes peludos, comiam guloseimas energéticas como cupins e formigas. Sua capacidade intelectual seria constrangedora até nas mais altas esferas do poder pátrio.

Outro ancestral em comum, no entanto, iniciou um caminho diferente e, sabe-se lá por que acaso, caiu num pedaço de carne, provavelmente abandonado por algum carnívoro melhor adaptado. Tomou gosto. E quanto mais gostava, mais esperto ficava. E quanto mais esperto ficava, mais carne comia. Seu tino foi se desenvolvendo geração após geração. Sua inteligência faria sucesso no salão oval.

Esse primeiro Homo erectus, já bem sabichão, resolveu bater algumas pedras umas contra as outras, fabricou bifaciais de sílex e virou ótimo predador, açougueiro e também fino gastrônomo quando domesticou o fogo. Isso foi mais ou menos 2 milhões de anos atrás, no Pleistoceno anterior. Quem diria que um dia esse Homo habilis fosse morar em Downing Street.

Depois veio a gente: Homo sapiens. Inventamos o aço, as armas, o computador, a internet e, mais recentemente, a chamada “carne cultivada”. Em outras palavras, uma falsa carne produzida em laboratório. As motivações, como todas as bem-pensantes, começam com pesquisas médicas ou são anunciadas como revoluções ambientais, mas quase sempre derivam para usos comerciais, acabando na mesa e nos bolsos de gulosos investidores.

Comer carne causou uma extraordinária evolução na nossa espécie: o cérebro cresceu – inventamos a cozinha e também as ferramentas. Mas nem tudo o que o sapiens faz é sábio. Em uma ficção exclusivamente paleontológica, deixar de comer carne animal pode fazer o cérebro do homem diminuir, desaprender a cozinhar e ocupar-se a catar mato e cupim.

Piadas pré-histórico-científicas à parte, vivemos tempos em que qualquer descoberta técnica e científica é promovida pelos futurólogos como integrante da espiral de uma evolução positivista inquestionável. O que sai dos laboratórios e das cabeças geniais de empreendedores recém-bem-nascidos vem sempre coberto de um entusiasmo singular. Essas ideias, em sua maioria falaciosamente justificadas a partir de problemas reais (a fome na África, as mudanças climáticas, a luta contra o câncer, o trânsito, o sistema bancário opaco, a burocracia), ganham milhares de adeptos imediatamente. E pronto: o sucesso está garantido.

Assim como comer carne de ervilha amarela é um risco para o desenvolvimento cerebral da espécie, a nova tecnologia – que prometeu dar um salto qualitativo na vida, nas relações sociais ou profissionais, na solidariedade, na segurança, na saúde pública, na democracia, na ansiedade, na falta ou excesso de tempo e na sua coleção de bolsas importadas, cocares, G.I. Joes ou drones – pode ser igualmente prejudicial.

Depois de algumas décadas de “startupismo” desenfreado, já teve novidade que enganou com a cara lavada, bem como aquelas que não se deram conta de seu impacto. A Theranos que ia revolucionar a medicina, e o Telegram que serve com a mesma competência a terroristas e a políticos. Isso para ficar só na letra “T”.

Talvez seja mais saudável olhar para o novo com entusiasmo irônico e adesão malandra. A proporção de australopitecos nos Vales do Silício não é menor do que nas redondezas.

Publicado originalmente no Clube de Criação de SP em 01.08.2919

Esse artigo contou com a participação especial de Wilson Mateos.

Obrigado, Instagram

Como demonstram dez entre dez demógrafos, a emigração transnacional ilegal é uma questão marginal. Inclusive nos Estados Unidos que, há 10 anos, têm um saldo de migrações ilegais negativo. Eles também são unânimes em derrubar todas as teses segundo as quais pessoas mais pobres e menos instruídas são mais propensas a deixarem seus próprios países. É de fato o inverso. Da mesma forma, ninguém cobiça a riqueza além-muro, mas é justamente porque o povo aquém-muro resolve exportar seu modo de produção, aproveitando uma mão de obra mais barata, que os Estados Unidos atraem essas mesmas pessoas para dentro de suas bem guardadas fronteiras. Qualquer tese xenófoba possui pouca base científica e sempre irá se justificar por argumentos viscerais de senso comum que mascaram a verdade para construir manipulações ideológicas.

Essas dilacerantes pressões que nos atraem e repelem ao sabor de nossas inseguranças são o sinal dos tempos em que vivemos.

Robert Putnam, um importante cientista político e demógrafo, classificou os relacionamentos humanos em dois tipos: os bonding, que basicamente dizem respeito ao capital social próximo (família e amigos), e os bridging, os quais são consequência do capital social distante (redes de relacionamento decorrentes de esferas profissionais, educacionais etc.).

Os relacionamentos bonding são, portanto, aqueles de primeiro grau, enquanto os bridging referem-se àqueles de segundo, terceiro, quarto grau. De acordo com Putnam, os relacionamentos do primeiro tipo são eficientes no sentido de dar   conforto emocional para grandes movimentos (emigrar, por exemplo), mas ineficientes para ajudar essas mesmas pessoas a adaptarem-se e integrarem-se.

Em outras palavras, quanto mais próxima for a pessoa, por mais bem relacionada e intencionada que ela seja, menor probabilidade ela terá de te ajudar na vida profissional. Amigos e família dão abrigo, colo e ouvido, mas são razoavelmente incompetentes para te conectar justamente porque te conhecem demais. Em compensação, aquele amigo de um amigo, aquele conhecido de um colega, aquela pessoa com quem você trocou um schmooze qualquer sobre uma coisa aleatória e superficial, na porta de um restaurante ou festa, esse, sim, – exatamente porque não te conhece direito – pode ser útil.

Mas o que Putnam não conhecia ainda era o influencing, o mais inútil e perverso  dos tipos de relacionamento. Ele é composto basicamente de seus seguidores e daqueles que você segue, aquela horda disforme de pessoas para quem você se exibe e que se exibem para você. O influencing que dá aquele tesão passageiro vindo de dezenas ou milhares de elogios; o influencing que pode também pingar uns dinheiros de quem acha que você é alguém com enorme capacidade de inspirar pessoas a serem como você diz ser; o influencing que te faz gozar quando engaja e se afundar quando nem fede nem cheira; o influencing que, de verdade, não serve para dar colo nem para dar job; o influencing que serve mesmo para dar ansiedade, solidão, inveja e muita ilusão.

Da mesma maneira que é fácil enganar-se com a tese de que o capital humano (sua instrução) gera capital social (relacionamentos), e que o capital social próximo – bonding (família e amigos) – atrai capital social distante – bridging (relações profissionais, por exemplo) –, é fácil cair no conto de que você pode relacionar-se utilmente com quem você segue e influenciar profundamente quem baba por você.  Diferentemente dos relacionamentos do tipo bonding e bridging, que aumentam sua eficiência quanto maiores forem, os de tipo influencing são o contrário.

Talvez, o influencing não passe de um modismo ou de um truque.

Tem gente, como Saskia Sassen, que considera que tudo é parte de um enorme e avassalador esquema invisível, urdido consciente ou inconscientemente por influências conservadoras, misóginas e autoritárias. Outros, cujos nomes são mais obscuros do que os próprios fenômenos, acreditam em teorias conspiratórias progressistas.

No fundo, tanto faz quem fez, se fez e por que fez. O que importa mesmo é que esse monte de seguidores que você tem e esse monte de pessoas que você segue fazem mal à saúde – e aos negócios. Pare de contar. Já.

Artigo originalmente no Meio & Mensagem de 29 de Julho de 2019

Liberdados

Qualquer “novidade revolucionária” começa com a indiferença dos observadores, evolui para o escárnio, depois é combatida como se levasse ao desastre e, finalmente, quando não tem mais jeito, todo mundo, inclusive seus detratores iniciais, a considera óbvia.

Foi assim com a internet. A irrelevância virou piada e, em seguida, combate raivoso. Hoje é como se todos já soubessem da inquestionável mudança que estava por vir.

Dependendo do grau de abertura do crítico, esses quatro estágios podem estar ativos concomitantemente. Ainda tem gente que acha que a internet é uma mídia como as outras: ou ineficiente, ou destruidora. Ainda tem gente que se arrepia com aplicativos de encontros, desconfia de bancos online, acha inseguro usar meios de transporte compartilhados, tem medo de comprar pela internet ou não acredita que o homem pisou na Lua.

Mas em tempos em que inovar é carimbo de relevância (não foi sempre assim), é atestado de caduquice não temperar suas falas com aquele Globlish pragmático da nova economia. Até os mais conservadores iconoclastas das tecnologias digitais regurgitam sem filtro as mesmas cartilhas do profissional antenado. Um exemplo disso é a máxima segundo a qual o trabalho de comunicação passa necessariamente pelo uso e análise de uma enorme quantidade de dados.

Aqui também tem de tudo: “é uma bobagem” (um estágio que já passou), “não é nenhuma novidade” (muita gente ainda insiste nisso), “seu uso é um cabresto de ideias” (afirmações pouco explicitadas publicamente) ou “isso é normal” (ainda estamos longe desse último).

Entretanto, algumas nuances são necessárias, principalmente para o campo dos que não veem a novidade ou para aqueles que a consideram um perigo.

Quando falamos de dados, não estamos falando de pesquisas. A propaganda sempre usou muitas pesquisas. Mas são coisas distintas. Pesquisas são estatísticas; dados são censos. Censos não extrapolam nem filtram: retratam. A diferença entre pesquisas e dados é uma questão de fé metodológica.

Mas o que verdadeiramente difere do jeito antigo (pesquisas) para o jeito novo (análise de dados) – se é que eles possam se substituir – é o risco.

Se, ao ter acesso a segmentos de públicos-alvo e testar com eles diferentes formatos e mensagens e a partir desses testes apurar mais testes – e tudo isso for rápido, fácil e barato –; então, o risco de dar escala ao melhor estímulo para populações maiores e/ou perseguir algum tipo de segmentação ou megassegmentação é muito pequeno ou, no mínimo, calculável. Portanto, testar é muito menos arriscado do que pesquisar. Testar é provavelmente também mais eficiente do que pesquisar, o que não era possível quando a internet não era uma mídia viável (abrangente ou com penetração universal). E isso diminui consideravelmente o risco de qualquer estratégia ou decisão criativa.

No entanto, a mudança é menor do que parece quando complicamos a equação: ter mais dados ajuda ou atrapalha a criatividade?

Criatividade independe totalmente dessa conversa.

Criatividade tem mais a ver com amuletos do que com muletas. Criatividade tem mais a ver com mistérios do que com receitas.

Com ou sem pesquisas, com ou sem dados, achar que seremos mais ou menos criativos se formos mais ou menos dependentes destes ou daquelas é confundir criatividade com aritmética. Criatividade tem a ver com uma introspecção sensível – a capacidade de metabolizar os estímulos por meio da nossa sensibilidade. Criatividade tem pouco a ver com inteligência. Criatividade não depende de pesquisas e dados.

Quem se sente diminuído pelas pesquisas ou pelo cerco das plataformas com suas seduções data-driven está perdendo a melhor parte da festa: pesquisa é uma plataforma de lançamento para a criatividade, e Big Data é seu melhor playground.

Publicado originalmente no Clube de Criação de SP em 01.07.2919

O negocio da propaganda: nem lacra nem lucra

No princípio era o caos e as energias circulavam livremente pelo universo. Então, fez-se o verbo e a Terra e o homem, e – encurtando a história – a televisão, o comercial de 30 segundos, o banner e todos os milhares de formatos publicitários da Internet. Então o caos voltou. E Deus, se tudo criou, criou primeiro a forma e o formato, porque sem eles, não há nada. Só bagunça, confusão e um dinheirinho suado.

O que proporcionou a extraordinária prosperidade das agências de propaganda, nos últimos 50 anos, foi a utilização de poucas formas e formatos que permitiram escala na criação de conteúdos publicitários. Fazer propaganda é – ou era – repetir padrões embrulhados em simulacros de customização ao gosto do cliente e de seus objetivos. A forma clássica é – ou era – o storytelling. E o formato são – ou eram – aqueles poucos enquadrados nas tabelas das mídias tradicionais.

Nunca foi simples fazer o trabalho de um publicitário, exigia conhecimento, sensibilidade, algum esforço e sorte. Mas ainda assim, existia um jeito, mais ou menos conhecido e previsível: o começo cativante, a apresentação dos personagens, a interação dramática, o clímax, a resolução com a marca, o final feliz. Tudo em 30 segundos em média. E assim foi, com variantes diversas e que proporcionam originalidade e charme. Mas assim como em toda a história da literatura, existem poucas histórias, na propaganda, existem poucas formas de contá-las. Essas poucas formas, em seus reduzidos formatos é que permitiram a criação de processos, metodologias e linhas de montagem que otimizam a mão de obra e outros recursos produtivos (o que podemos chamar também, para amenizar o prosaico da comparação, linhas de criação). Assim como em todo e qualquer negócio que permite escala num sistema de produção capitalista, o negócio da propaganda permite criar excedente e rentabilidade proporcional à capacidade dos gestores de ganhar mais escala, produzindo mais com menos recursos. Não, a propaganda, apesar do charme de seus trejeitos, não é artesanal e muito menos um processo artístico. É um negócio capitalista como qualquer outro.

Ou era até surgir o tohu-bohu provocado pela chegada da mídia na Internet que, na sua busca apressada por rentabilizar seu próprio lado da moeda (como ganhar dinheiro vendendo “coisas” publicitárias), explodiu a pedra angular do negócio do lado das agências, o formato e, por conseguinte, a forma. A narrativa clássica, o storytelling que calejou tantos dedos talentosos, tem dificuldades de encantar e convencer consumidores quando a mídia é guiada por cálculos e dados e quando existem infinitos e tão efêmeros formatos. Em plataformas em permanente mutação, também é difícil antecipar o formato mais eficiente, e assim, encontrar a forma de carregar uma mensagem publicitária.

Do lado das agências – mas também dos anunciantes – o desafio parece ser de cativar talentos e processos com capacidade de adaptação suficiente para navegar pelo cardápio de opções.

Isso subentende que o profissional de atendimento que, já faz tempo, saiu de sua cadeira de relacionamento atencioso e perspicaz com o cliente para o posto de orquestrador de briefings tenha que saber adaptar-se. Com tantas incertezas, com tanto trabalho especulativo, ele vira um gestor, cliente a cliente, job a job, equilibrando recursos, equacionando as rentabilidades e, acima de tudo, cuidando da saúde dos negócios da agência.

Isso também pode significar que um profissional de estratégia talentoso para antecipar tendências e com eficientes intuições, tenha que lidar com muito mais incertezas e que ele tenha que antecipar colossais movimentos subterrâneos. Que ele deva aprender, quem sabe, a piratear, espionar e hackear comportamentos ao invés de só observá-los.

E que um profissional de criação, que sabe contar boas histórias em trinta segundos, tenha também que aprender a contá-las em sete, ou sem imagem, ou sem texto, ou hiper-personalizadas, ou disfarçadas em algoritmos, ou desconstruídas em função de inteligências inumanas. Que ele tenha que aprender, quem sabe, que as histórias não serão mais contadas mas construídas por indução artificial.

Enquanto os formatos publicitários não amadurecerem (se é que vão!), permitindo assim    produção em escala, a saída é ser maleável, desestruturado, aberto, solto e com ginga para lidar com a bagunça. E não adianta espernear: dedo no pulso do cliente, belos insights e lindas histórias já não mais lacram nem lucram.

Publicado originalmente no Meio&Mensagem de 19/03/2019