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Classe média ou remediada?

Quando viajamos para países abundantes é fácil conseguir encaixar-se em alguma classe social por puro empirismo comparativo: “esse aqui é parecido comigo, logo sua classe deve ser a minha”. Ainda há uma sensação nítida de fronteiras delimitadas e abertas entre os diferentes níveis sociais.

A imensa maioria dos brasileiros que viaja para o lado rico do mundo se reconhece na classe média mas quando voltamos para cá, encontramo-nos na classe mais favorecida.

Superficialmente, parece lógico: a definição de classe se dá de forma diferente país a país porque é uma questão de poder de consumo. Rico em Uganda é classe média nos Estados Unidos, pobre nos Estados Unidos é classe média em El Salvador e pobre no Brasil é pobre em qualquer lugar do mundo.

Mas a definição de classe social deveria ser mais complexa e não levar em consideração apenas diferenças de poder de compra.

Para Max Weber, ela se dá em função de 1) oportunidades econômicas 2) status, identidade e orientação cultural 3) poder e capacidade de exercer influência individual ou coletiva sobre as políticas.

E aí complica mas também também explica melhor porque somos da Classe A aqui e seríamos da classe média lá. E não é só uma questão de renda.

Mas é difícil estabelecer políticas de mobilidade social considerando essa abordagem teoricamente mais correta porque status e poder não são quantificáveis. Também é arriscado entender que a vida das pessoas melhora quando elas consomem mais.

Ainda assim, precisamos de um balizador que possa orientar a movimentação ascendente da população.

Em interessante artigo na Quarterly Americas, Luis Felipe López-Calva, economista chefe sobre pobreza do Banco Mundial propõe outro critério. Mais simples, mais intuitivo, mais mensurável também.

Resumidamente, ele demonstra que se considerarmos que a classe pobre da base da pirâmide pode ser definida por status nutricional (tem dificuldade de colocar comida na mesa) o critério que melhor definiria a classe média seria a sua segurança de não voltar a ser da classe mais pobre. Essa vulnerabilidade relativa é que deveria classificar as pessoas da classe média.

Empiricamente é fácil constatar que esse critério é coerente. Quem pertence à classe média num país rico sabe que dificilmente passará fome, mesmo que suas condições se deteriorem, porque possui uma segurança educacional, cultural, de relacionamentos, de crédito, de patrimônio, etc. que lhe dão estabilidade e segurança. Mesmo que o país entre em recessão, mesmo que haja uma guerra ou catástrofe natural.

Se esse critério parece inteligente, também coloca suspeitas sobre o discurso ufanista da recente explosão da classe média no Brasil. O que vem acontecendo no país é sim o crescimento do poder aquisitivo. Mais ter mais consumo não significa ter mais classe média porque não existe estabilidade. É tudo muito recente, é verdade, mas mesmo assim, as políticas públicas e privadas não são dirigidas para dar segurança às pessoas que emergiram quase que acidentalmente da pobreza.

Dona Maria do Socorro, mãe solteira, tem renda familiar de R$ 1.800,00 e 3 filhos. Seus filhos estão empregados e ganham o salário mínimo mas pararam de estudar. “fico insistindo para eles voltarem para a faculdade, estudarem, mas eles me dizem que não precisam de mais estudo porque afinal estão empregados”. Esse é o drama do pleno emprego e principalmente da inversão de valores que vem se operando no país concomitantemente com seu suposto bom momento. Não há mais correlação entre estudo e sucesso profissional – os exemplos são óbvios: de jogador de futebol a presidente da república – e existe apenas um valor de vida: a capacidade de consumir mais. Basta assistir a qualquer novela, conversar com qualquer pessoa, passear em qualquer shopping center para constatar essas mudanças de paradigma na sociedade brasileira.

Mas é evidente que o pleno emprego é um fenômeno temporário, uma bolha. Amanhã, precisaremos (na verdade hoje, agora e imediatamente) de pessoas mais qualificadas e instruídas. E nem precisa ter tremedeira econômica no mundo. É uma questão de lógica: a população aumenta mais do que a capacidade do país de prover infraestrutura para uma vida saudável, pacífica, segura.

É também óbvio que essa exacerbação do consumo como bússola de mobilidade social é uma cortina de fumaça e um círculo vicioso. Quanto mais se consome, mais se quer consumir e quanto mais se quer consumir, mais se precisa de dinheiro e quanto mais se precisa de dinheiro, mais a gente se endivida. De novo, é ululante.

Não temos uma classe média no Brasil, ainda. E esse “ainda” depende de não fazer a política da auto-enganação. É assumir que ter uma classe média é uma meta e não um fato. Mas é principalmente revisitar as políticas de consolidação do inegável – e merecido – esforço que o país vem fazendo nos últimos anos. É não achar que as soluções do passado ainda são boas. E como sugere o autor do artigo, criar políticas que consigam dar segurança e estabilidade para a classe remediada (e não média) brasileira.

Mas também fazer a nossa parte e encontrar argumentos que ajudem a Dona Maria do Socorro a fazer seus filhos voltarem a estudar. Fazer a nossa parte e parar de enaltecer uma cultura de massa alienadora.

A propaganda e as empreguetes

Uma coisa é fazer um produto barato, outra coisa é fazer um produto vagabundo. Uma coisa é construir uma marca democrática, outra coisa é construir uma marca segregada. Uma coisa é montar um plano de mídia inteligente, outra coisa é montar um plano de mídia preconceituoso.

Tem sido um axioma incontornável começar qualquer raciocínio mercadológico a partir de sua adequação para uma classe social: “se o produto tem qualidade, ele é para poucos, logo vou falar para quem entende” ou “se o produto é vagabundo, a marca tem que falar com o povão na mídia massivamente burra”.

Não é preciso citar o sucesso das marcas (da Coca Cola ao Google) que foram capazes de transcender esse raciocínio estúpido, atingindo plateias que se unem pelos seus valores e não pelo seu bolso.

Mas para derrubar essa deformação profissional, esse calo intelectual, é preciso antes defrontar-se com outro comum preceito (preconceito): a propaganda precisa ser aspiracional.

Temos a mania de achar que todo mundo tem os mesmos sonhos, ambições e desejos que nós mesmos. O nosso entendimento dos consumidores tem sido demasiadamente construído à nossa imagem e semelhança. Isso explica tanta comunicação cheia de personagens com a nossa cara, gente bonita, rica, jovem, alegre, ouvindo bossa nova, fazendo e acontecendo como se o mundo estivesse à nossa disposição, esperando o toque de Midas. Tanta comunicação que achamos cosmopolita e antenada, refletindo tendências copiada dos arautos da modernidade internacional. Tanta comunicação com cenas da vida de um jovem londrino bem nascido, com voice-over de clichês de auto-ajuda, moralista, com malabarismos semânticos pretensamente inteligentes. Tanta propaganda dando aula e tão pouca propaganda convidando para o boteco.

A propaganda não precisa ser aspiracional para ser boa e eficiente. Basta que seja sincera e verdadeira. A propaganda não precisa organizar a frustração dos consumidores e compensar a nossa, basta que ela crie empatia entre as marcas e os valores das pessoas. Basta que seja cheia de charmes.

Especialistas em classe C e o preconceito mascarado

A especialização da propaganda foi uma tendência nos anos 90 e, seguindo uma espécie de modismo de sobrevivência, uma miríade de agências surgiu oferecendo expertises específicas para mídias e públicos. Um publicitário deve ser generalista por definição, ele tem que ter ouvidos, sensibilidade e criatividade suficientes para evoluir em todos os ambientes. Especialistas são a nossa antítese e um caroço duro de roer nas estratégias de comunicação das marcas.

Especialistas se justificam sempre através da classificação. Ao criar castas de consumidores, se outorgam uma segregação das estratégias de comunicação. E toda classificação esconde perigosos dogmas e preconceitos.

Vejamos a especialização mais fragorosa dos últimos anos: a da classe C. Apesar de não escancarar nenhum juízo moral, ela costuma disfarçar alguns preceitos que justificam suas teorias.

Vale alertar que nenhum dos chamados especialistas irá se reconhecer aqui, mas talvez valha fazer um exame crítico da próxima vez em que formos seduzidos pelo discurso “solucionático”: “a gente sabe falar com essa classe”.

O que se esconde atrás das técnicas “especializadas” de abordagem da classe C é que: ela é financeiramente despreparada; que nela as mulheres são inferiores; que seus integrantes são feiosos e gordos; que moram de aluguel e sonham mudar-se para bairros nobres; que não viajam nem podem sonhar com o lazer; que só se deixam influenciar pelo preço dos produtos e nenhum outro argumento os seduz; que são desplugados e que são ignorantes.

Pois bem, alguns contraexemplos:

– Só 27% da classe C compra a prestação contra 41% das classes A e B.
– 32% das mulheres da classe C são provedoras do lar contra 25% das classes A e B.
– 77% da classe C concorda em pagar um pouco mais por produtos de qualidade de higiene pessoal.
– 64% das famílias de classe C são proprietárias do imóvel onde vivem.
– 77% da classe C considera que viagens e lazer são um luxo que merecem.
– A penetração, na classe C, de marcas de produtos de higiene, biscoitos, chocolates, sorvetes e outros geralmente considerados dirigidos às classes mais favorecidas é a mesma nas classes A e B.
– 84% da classe C tem celular, 47% tem computador e 51% tem acesso à Internet.
– 31% da população de estudantes universitários no Brasil tem renda familiar entre 1 e 5 salários mínimos.

Será que ainda faz algum sentido pensar em classes sociais na hora de criar boa comunicação? No mais das vezes, o aconselhamento especializado consegue inspirar a pior propaganda, no limite do insulto preconceituoso.

A Internet ainda é coisa de rico

Todos os dias, pipocam pesquisas sobre a Internet no Brasil. Em parte, síndrome de primo pobre que precisa esbanjar; em parte, complexo de filho do meio, entre o xodozinho da mamãe e o filho pródigo do papai.

É evidente que temos particularidades, que somos mais pujantes do que parecemos, que precisamos de muito esforço para enxergar através da nuvem de preconceitos mal assumidos que banham o país. No entanto é importante não perdermos a lucidez por trás da pílula dourada para gringo ver.

E toda pesquisa sobre Internet no Brasil se utiliza do discurso favela-chic para iniciar suas presumidas quebras de paradigmas: a classe C constitui a massa de pessoas interneticamente incluídas. Também pudera. O Brasil é classe BC. Só falamos em classe AB porque não tem como juntar a A com nada já que ela é tão pequena que sumiria das nossas pesquisas. Criamos essa quimera de que existe uma classe AB que é diferente da classe C. No fundo existe uma classe BC, colossal, que é diferente da A. E a A não interessa a nenhum segmento econômico relevante.

Pois se é a classe C que interessa, é natural que a Internet só possa existir se ela puder atingi-la. Nem se trata mais de um chiste no preconceito da elite porque essa tal classe é hipercool. Nem gringo paraquedista se impressiona mais com a imagem das favelas que cercam o condomínio de alto luxo.

Mas a verdade que carecemos enfrentar hoje, vencido o deslumbre, é que os maiores pontos de acesso à Internet no país são fora de casa, porque é lá que a tal da classe C pode, consegue, tem grana, para acessar. E não se poderá falar de democratização de acesso à Internet enquanto não conseguirmos vencer os pífios e estagnados 25% de acesso domiciliar.

O acesso fora de casa tem particularidades importantes, e uma das maiores é o tempo tarifado. Pessoas que acessam a Internet fora de casa têm menos tempo ou o tempo delas custa (caro). Quem já viu o comportamento típico de uma pessoa que acessa a Internet numa lan-house entende: muitas janelas simultâneas e foco dividido. Ler, nem pensar, ver vídeos de mais de 10 minutos, nem pensar, pesquisar a fundo, nem pensar. Já que o tempo custa, melhor fazer o que instintivamente importa, ou seja, xavecar nas redes.

E mais, se correlacionarmos por exemplo a compra on-line com o local de acesso, iremos imediatamente verificar que as pessoas não compram na Internet (ou muito pouco) fora de casa, por razões óbvias (tempo de comparação, receio da falta de segurança dos meios de pagamentos etc.).

É mais do que hora de pararmos com as excitações precoces: o Brasil é surpreendente mas estamos longe de ser um país digitalmente maduro. Muito longe.

Eu quero ser classe C

– Estou em crise
– Por quê?
– Me sinto deslocado
– Como assim?
– Cada vez que faço um comentário sobre um filme, uma notícia, um produto, qualquer coisa, me respondem sempre: “ah, mas isso não é para você”.
– É para quem?
– É para a classe C, me dizem. A classe C pra cá, a classe C pra lá, a classe C entende, a classe C precisa, a classe C consome, a classe C come, bebe, dorme com a sua própria classe C. Estou cheio. Quero virar classe C!

O Brasil viveu uma ilusão de modernidade. Para alguns. Poucos. E o Brasil vivia também uma desilusão de progresso. Para outros. Muitos.

O dorminhoco era criativo e se acomodava assim. Do lado de cá, a gente lia os jornais e a Veja. Um dia seremos, um dia chegaremos, um dia Stefan Zweig! Do lado de lá, sei lá! Não importava: aumentava-se o bolo para que comam mais. Essa era a tese. Dividir o bolo? Inviável!

E sabe-se lá por que milagre ou maldição milhões de pessoas, anônimos da silva, qual invasão de náufragos esfomeados, mostraram a cabecinha.

– Meu Deus, quem são eles? O que querem? O que querem, me pegar?
– Relaxa, a Veja te protege.

A História acabou com Hiroshima, deu um soluço improvável em 11 de setembro e soçobrou definitivamente na quebra do Lehman Brothers. Só a Veja ainda acredita em revolucionário.

– Meu Deus, essas pessoas! São muitas, muita gente quer dizer muitos consumidores.
– Muitos consumidores quer dizer muitas vendas.
– Muitas vendas quer dizer muitos lucros.

E assim fez-se.

A massa invadiu e, da noite para o dia, como sempre, viramos capitalismo e economia de mercado. Aos trancos, barrancos e trapalhadas. Com décadas de atraso a gente vai ter que aprender, vai dar trabalho, mas quem sabe um dia a Piauí vira a Veja de outrora. Insha’Allah!

O emergir do consumidor

É fato, no progresso econômico e, portanto, no conforto do sistema, a emergência de uma população ontem apartada. Muito se relaciona o ingresso de milhões de pessoas no mercado consumidor à rebarba da bonança econômica no qual o Brasil surfou e a certas políticas públicas – de assistencialismo para alguns, de justiça social para outros. O fato é que tais pessoas estão aí, e esse novo mercado interno pode significar um lampejo de esperança para um mundo atolado em recessão e desespero. Um novo mercado significa um novo Brasil para os milhões de sobreviventes de séculos de abandono.

Mário mora na periferia do Rio. Ele tem pouco mais de 20 anos e ganha trezentos e poucos reais com um emprego no supermercado. Mas uma coisa faz do garoto um cara diferente de seus pais, imigrantes nordestinos. Mário faz um bico vendendo DVDs piratas que ele mesmo confecciona. Dá pra tirar uns quinhentos por mês, dependendo da temporada de lançamentos. Mário também não dispensa o celular, o computador, o pen-drive pendurado no pescoço e está negociando um home theater para sua mãe (negociando, porque vai um pouco de dinheiro guardado, uma moto encostada e um pequeno empréstimo pessoal que ele conseguiu aprovar numa financeira). Mário faz sucesso e não deixa barato: capricha no visual, nas roupas da moda, perfume e produtos de beleza. Sabe tudo o que pega e o que rola.

Essa é a diferença: o desejo de consumo.

Então seria a tal da nova economia uma das novidades desse novo Brasil? Sempre houve informalidade no Brasil. Todo mundo sempre fez bico. A cauda longa é velha nossa conhecida. Só não tinha nome bonito nem frequentava dez entre cada dez congressos para bonitos executivos.

Mas vamos conversar com o Mário. O Mário tem internet faz tempo e também faz tempo que a Internet para Mário não é só uma grana a mais. Mário vai nos blogs, frequenta comunidades, se liga nas novidades. Sabe mais de tendências do que a maioria dos bacanas que aplaudem a cauda longa.

Informação universalizada, democraticamente distribuída não quer dizer apenas mais instrução e mais consciência. Não quer dizer apenas mais oportunidades econômicas. Também quer dizer mais desejo.

E o desejo é o reforço positivo indispensável para emergir da sobrevivência.

A classe C é a classe dos pobres coitados

Classe C é o que costumamos chamar de pobres. Por que será que temos tanto receio em chamar pobre de pobre?

Portanto, não vamos nos enganar: vamos falar em linguagem para pobre, gosto de pobre, argumentos para pobre, garotos propaganda que pobre gosta, música de pobre, entendimento de pobre, pesquisa sobre pobres, estratégias para fisgar os pobres.

Não é uma questão de semântica, é uma questão de preconceito classista.  Chamar pobre de classe C mascara a real intenção de classificar as pessoas pelo seu dinheiro.

A intenção não é discorrer sobre luta de classes nem sobre ética cristã. Só parece interessante raciocinar sobre o tipo de comunicação que decorre de um “parti pris” financeiro.

Se avaliamos as pessoas pela grana, a propaganda deve, por consequência, falar quanto custa e como se paga. Propaganda de pobre deve falar “Custa pouco e você pode pagar”. Senão, o pobre não vai comprar. Põe logo um cara que pobre gosta, gritando quanto custa aquele produto que o coitado quer tanto. Não enrola e repete as coisas várias vezes pro pobre se convencer.

Na propaganda é assim. Pobre só vale pelo seu dinheiro. E como ele tem pouco dinheiro, tem que fazer muita propaganda para muitos pobres comprarem.

Simples e não precisa inventar moda.

E fora da propaganda como é?

Se o cara não tem grana, não quer dizer que ele é burro e surdo. Se o cara tem recursos limitados, não quer dizer que ele é feio e fede. Se o cara é humilde, não quer dizer que ele tem gosto simplório e só aprecia porcaria. Se o cara é um financeiramente desavantajado, não quer dizer que ele gosta de comunicação vagabunda.

A propaganda será muito mais eficiente quando ela for capaz de tocar, de provocar sentimentos, emoções, quando ela falar com o coração e não, com a cabeça. Essa é uma afirmação lugar-comum, um clichê que dez em cada dez profissional de comunicação repete como um mantra de emancipação criativa.

Mas é difícil porque as pessoas tem valor pela sua grana, mesmo que ela seja pouca. E é difícil porque no Brasil tem muito mais pobre do que rico. É difícil porque quem faz propaganda para a classe C é a classe A.

A menos que a gente assuma o preconceito ou lute contra ele.

A menos que, sempre que aparecer no briefing “Classe C”, a gente troque por “Pobre” e desista de fazer propaganda boa.

A menos que, sempre que aparecer no briefing “Classe C”, a gente devolva com um palavrão bem feio.

O ClasseCeísmo

Quando Henry Ford começou a produzir seus carros em linha de montagem, ele dizia que seu objetivo era de que cada um de seus operários fosse capaz de comprá-los.

Mas o industrial também teria dito que se poderia escolher qualquer cor de carro, desde que fosse a preta.

Essas pequenas anedotas poderiam ilustrar o atual frisson que a celebrada base da pirâmide vem provocando ao redor do mundo, em particular em um país com mais de 66% das famílias vivendo com até três salários mínimos, o nosso por exemplo.

A não ser à luz fria de pesquisas, é inegável a nossa ignorância a respeito dos nossos queridos abandonados desabonados.

E, por conta da distância que separa nosso dourado óvni dos pobres mortais, a gente usa toda a nossa capacidade de abstração e experimentação para traçar os contornos comportamentais da última fronteira comercial que nos resta penetrar: a classe C.

É assim que surgem os especialistas: dissecadores de impulsos de todos aqueles que ainda não têm a chance de consumir aquilo que deveriam para ascenderem ao status de cidadãos.

As campanhas políticas são uma referência quase inevitável. Afinal de contas, não dá para se eleger só com ricos eleitores, nem para vereador de municípios pequenos. Basta analisar os recursos técnicos de que se valem os candidatos, ao produzirem suas plataformas publicitárias para aprender os truques: palavras simples, coloquiais e gíria, repetição à exaustão, abuso de superlativos, modelos do povo, sotaques exagerados e por aí vai. Quanto à sintaxe das frases e dos textos (textos? Só se for para repetir a gritaria), ela tem que ser franciscana: sujeito-verbo-predicado, poucos adjetivos, voz passiva nem pensar, tempos complexos ainda menos.

Dizem os especialistas que a classe C tem deficiência cognitiva. E o resultado é essa propaganda-decoreba para retardados. A Classe C só gosta daquilo que pode ter. E o resultado é essa propaganda-baciada por 9,90.

O que será que estamos aprendendo com essas ciências novas? Com essas atenciosas investigações? Será que não estamos simplesmente reproduzindo a propaganda medieval dos mascates?

Talvez não seja assim tão simples. Mas será que as regras têm que ser tão primárias?

O que significa dizer que a propaganda varejista (varejeira?) de sempre é boa para atingir a classe C? Na pior das hipóteses significa que não temos absolutamente nada a aprender, porque essa é a propaganda que sempre se fez para os pobres infelizes que queremos como consumidores de nossas marcas.

Quantas pesquisas serão necessárias para entender que cada vez que usamos um filtro de classes (sociais), estamos sendo oportunistas, imediatistas e preconceituosos?

Propaganda deve falar para o coração e não para o bolso.

Quando Duveen, grande marchand, imprimiu um livro único com obras-de-arte na esperança de convencer o homem mais rico dos Estados Unidos a adquirir uma grande coleção, Ford teria respondido: “Para quê, se já tenho o livro?”

Pobre é diferente da gente, sabia?

O que acontece com o jovem de periferia? Como ele é? O que ele pensa? Em que ele se espelha? O que ele propaga? O que ele consome, curte?

Que me perdoem o recheio de preconceitos e a utópica paródia do bom selvagem, mas farei um relato experimental.

Na periferia, a violência é uma questão de interpretação, de olhar, de preconceito portanto. Pobre não rouba pobre. Matam gente? Matam né, claro. Mas o cara traiu o traficante. Merecia morrer. O traficante é o protetor e provedor. Cara de palavra, de moral. Traiu, tem que morrer. Normal.

As leis do asfalto não dizem respeito ao morro. No morro tem palavra, no asfalto, advogado.

Na periferia, a diversão é diversão. É curtição, carpe-diem. Hoje é hoje e amanhã é amanhã. Se acabar a grana, as dívidas, o trampo, é coisa para amanhã. Agora quero me divertir, pegar a mulher que me quiser e dormir bêbado com a batida do funk ninando meu sono realizado.

No asfalto, a diversão de hoje é o proveito de amanhã. No morro tem gozo.

Na periferia, o cara é meu broder porque conheci ele na rua, no trampo, na internet. A gente levou um papo e bateu. Virou broder. Se ele tem grana, legal porque ele vai pagar a cerveja pra mim às vezes. Se não tem, eu pago. Na boa. Depois ele paga, se der.

Aqui, é toma lá, dá cá. No asfalto tudo tem preço. No morro, tudo tem valor.

Na periferia, o cara curte as marcas, consome, valoriza o que é bom e paga por isso. A moeda é o escambo. Te dou isso que você quer e você me dá isso que eu quero. Grana eu não tenho mesmo, mas tenho coisas. Você também.

A gente devora imagem e depois cospe. Eles têm fome, a gente fastio.

Na periferia é igual aqui. A gente não curte muito as coisas que a mídia mostra pra gente. A gente filtra tudo e nem fala. Lá pensam que a mídia fala o que rola aqui e aqui a gente acha que ela fala o que rola lá. Deve ter quem goste e assiste. É por isso que é assim há tanto tempo. Mas sei lá. Deixa quieto.

Lá é igual aqui. O jovem de lá está tão informado quanto o daqui.

E daí a gente percebe que o preconceito social tem mão única no Brasil. Até porque, quem faz pesquisa no Brasil é o asfalto. O asfalto quer saber mais do morro porque quer mais do morro.

E daí, o que acontece é que a pesquisa sai assim, cheia de preconceito.

O que acontece é que a gente fica com essa visão do bom selvagem, purinho de coração e alma.

Igualzinho a esse artigo aqui. Igualzinho ao distinto leitor.

Um país de miseráveis.

O Brasil é um país maravilhoso. Generoso. Quantas vezes não ouvimos isso, não é mesmo? Pois eu acho que o Brasil é um país miserável e mesquinho.

Sempre será miserável um país em que a vida tem menos valor do que um carro, um relógio, um tíquete de restaurante. Sempre será mesquinho um país conduzido por uma elite entrincheirada, cínica e arrogante.

O Brasil é um país miserável e mesquinho. Mas os brasileiros não o são. Os brasileiros são o que são. Um povo, com pessoas de carne e osso, desejos e sonhos, ambições e contradições.

O engraçado é que fomos educados a acreditar no Brasil. Fomos domados para Crer.

Como carolas-pé-de-padre. Como cavalos.

Mas a crença pode se sustentar em duas bases antagônicas. A primeira é o critério da fé, portanto irracional. A segunda é a objetividade, portanto racional.

Política não deveria ser profissão de fé. Mas racionalidade também não costuma ser o critério típico daqueles que nos governam há tanto tempo.

Não faço a menor idéia de quem fará ou não um bom governo. Quem tiver esta certeza votará com a consciência limpa desde que seja uma escolha racional e livre. Sem crenças nem chicote. Qualquer que seja o candidato.

Mas como acredito que o Brasil oficial dá de ombros para seu povo, não tenho opção a não ser desconfiar de qualquer modelo de governo que sugira continuidade. Mesmo que seja de forma envergonhada, arrependida ou disfarçada.

Há muito tempo que me tornei adulto e que parei de Crer. Quanto ao cabresto tento afrouxá-lo sempre que posso. Sempre que tenho coragem e chance para fazê-lo. Como agora, no sufrágio que se aproxima.

Há muito tempo que só acredito na força da dialética. Racional, fria.

Só acredito que este país, no qual eu quero viver, não pode se dar ao luxo
de não experimentar a alternância das idéias, dos objetivos, do caráter, das biografias. Mesmo que a gente se arrependa depois.