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Os índios somos nós

Ontem, Raoni, líderes de várias nações indígenas e ambientalistas foram entregar, em Brasília, um abaixo- assinado contra a hidrelétrica de Belo Monte. Raoni foi recebido por algum preposto de subnada e a manchete de um jornal em seu portal dizia “Índio não quer usina”.

Foram 500 mil assinaturas, arregimentadas na internet, em redes sociais. O resultado, impressionante considerando a rapidez da mobilização, mal sensibilizou o ministro das Minas e Energias que respondeu que a construção estava prestes a começar.

O fato ilustra o descompasso de uma instituição que permanece outorgando-se uma missão de representatividade popular, há muito perdida: o Estado.

Quando meio milhão de pessoas se manifestam deliberadamente, o ministro, de cínica pantomima, devolve com a chantagem típica do populismo de gabinete: “é Belo Monte ou usinas termoelétricas poluidoras”.

Ao nobre líder de uma luta que dura 30 anos, só resta rasgar a petição. À população que assinou conscientemente o pedido, só resta rasgar seus títulos de cidadão.

Pagamos impostos eletronicamente, mas ainda estamos muito longe de qualquer suspeita de democracia participativa.

Em um mundo cada vez mais conectado, em que populações inteiras se reúnem em redes autossuficientes e que elegem seus líderes e ideologias, o Estado, até em autoproclamadas democracias como a nossa, permanece míope ou fantoche de interesses imediatistas.

Ministro Lobão, Presidenta Dilma, o meio-apagão-meia-boca de São Paulo não é mais importante que o pedido dessas pessoas que ontem, pacificamente, portavam a voz de milhões.

As redes sociais e a democracia

Redes Sociais: duas entre cada dez palavras pronunciadas por qualquer bem pensante hoje em dia, em papos de “Abalar Bangu”. Mais um daqueles inúmeros fenômenos que surgem para acrescentar alguns charts às palestras dos gurus Best Sellers. Mais um tema para excitar os especuladores, os caçadores de talentos e os vendilhões de empresas.

Tudo nas novas plataformas de informação são reedições corrigidas e ampliadas. Os luditas e blasés adoram dizer isso. Portanto, para eles, redes sociais são espécies de “Rotary(s) Clubes” digitais.

Esse tipo de desmistificação é sempre um divertido argumento para brochar os excessivamente excitados mas é quase sempre um álibi intelectual para uma inépcia de entendimento das mudanças de comportamento que estão por detrás dessas “velhas novidades”.

Mas o que me interessa mais nos clubinhos virtuais é uma espécie de panacéia democrática que por ali grassa. Sem querer intelectualizar demais o papo, já é lugar comum dizer que a molecada tem um interesse muito passageiro, para não dizer inexistente, por política. A não ser em momentos de euforia ideológica, como a atualmente em curso no ringue das eleições norte-americanas, ela tem um desprezo absoluto por qualquer lógica majoritária.

É que de fato, essa coisa de submeter-se a qualquer decisão da “maioria”, é frustrante em tempos de liberdade de expressão absoluta e universal, de cauda longa, de morte do direito autoral e etc.

Em nossa democracia, é muito baixa a possibilidade de decidir e intervir. A única delas é o voto, pouco para um exército acostumado a clicar, a escolher tudo a toda hora.

É essa falência do “majoritário” que motiva e apaixona as redes sociais em todas as suas manifestações.

No limite, é como se estivéssemos encubando uma nova ordem mundial em que os humanos se agrupassem em torno de idéias compartilhadas, interesses ou polemicas comuns, gostos e simpatias antes de geografias, línguas e qualquer outro tipo de aglutinação física.

No limite, as redes sociais configuram os novos “Estados” que trocam o majoritário pela unanimidade. E não há “exclusividade” nem “limite” de “nacionalidades”. Pode-se pertencer ao quantos “países” quisermos, com múltiplas “identidades” até e “desertá-los” quando eles não mais interessarem ou outros mais atraentes surgirem.

Antes de tratar-se de uma utopia, a experiência da nova ordem e sua possibilidade virtual, vai corroendo todos os organismos e reinventando as relações sociais irremediavelmente.

A propaganda e o sufrágio do povo

Pergunta: O que é um trilobita?

(Segundos de espera.)

Resposta: “Trilobites are extinct arthropods that form the class Trilobita, blalablá”.

Para que serve saber, em tempos de acesso universal e democrático à internet? Para que serve armazenar o saber em tempos de Wikipedia?

Ainda que cautelosos ludistas desconfiem das definições democraticamente construídas, antes o saber bocejava na ponta dos pés das bibliotecas. Hoje, fustiga na ponta dos dedos, na ponta da língua.

É que a tese é simples: além de orgânicas, definições são o referendo do infinito coletivo. A mentira não resiste muito tempo ao sufrágio de milhões. A manipulação, tampouco.

A propaganda manipula. E manipulará cada vez menos.

As enciclopédias elaboradas por doutos especialistas falharam irremediavelmente nas suas missões de divulgação do conhecimento e atualização.

A propaganda, criada por sensíveis profissionais, pode falhar dramaticamente na sua missão de sedução e convencimento.

A propaganda de meias verdades ou mentiras superlativas, excessivamente explícita, dramaticamente primária, gritando, cantando e martelando incessantemente com palavras de ordem, crenças laboratoriais e repetição massificada, tem os dias contados.

Essa é a velha propaganda, uma propaganda que insiste em manipular, da forma mais básica, um consumidor cada vez mais arredio, disperso, crítico e com capacidade própria de exponenciar sua opinião.

Se ontem a gente tinha que crer a priori por falta de possibilidade de expressão, hoje a gente desconfia a priori, porque a gente tem o poder de denunciar publicamente e sem intermediários. E isso derruba reputações, como uma bola de neve pequeninha no cume da montanha aniquila uma aldeia no vale.

O prazo de validade da propaganda é proporcional à velocidade de popularização das opiniões. Ou seja, muito curto. Se a mensagem agradar, sua eficiência é retumbante. Se desagradar, seu fracasso é desastroso.

Mas a propaganda tem mais animadores rumos, apesar dos tropeços, das inseguranças e da caretice.

Propaganda deve ser conteúdo, entretenimento, manifestação cultural ou pura informação. Sempre que ela for percebida de uma forma ou de outra, ela será apreciada na medida de sua qualidade, sem o risco do opróbrio.

E sempre que ela raciocina pelo parâmetro do mais tapado, ignorante e passivo dos consumidores, vira piada e vexame.

Propaganda: o trato democrático

Muito se fala sobre os desvios “maléficos” da propaganda. Alguns lançam mão de argumentos demagógicos; outros, nem tanto. Mas quaisquer que sejam eles, a simples evocação do tema desperta acaloradas discussões que terminam sempre soçobrando nos poderes públicos e nas instituições representativas da sociedade.

A equação é sempre, na base, muito simples e – por que não dizer? – simplista. Se a propaganda tem por missão informar, estimular e despertar o consumo, ela é maléfica, quando este consumo pode ter conseqüências no comportamento das pessoas.

Portanto, propaganda de mamadeira é ruim, porque estimula o consumo deste produto que pode prejudicar a amamentação materna. A propaganda de bebida alcoólica é ruim, porque estimula o consumo deste produto que, por uma associação aparentemente estatística, impulsiona a violência. A propaganda de cigarro é ruim, porque estimula o consumo deste produto que, por um argumento falacioso, onera os gastos públicos com saúde.

Esses são alguns dos argumentos. Mas existem muitos outros. O caso é que a bola-de-neve cresce com tamanha velocidade, que em pouco tempo ouviremos dizer que propaganda de carro é ruim, porque provoca acidentes de trânsito; propaganda de sabonete é ruim para a pele; propaganda de camisinha é ruim, porque desestimula o investimento em pesquisa de cura de doenças sexualmente transmissíveis. Propaganda de livro é ruim para a vista; de aparelhos de som, para os ouvidos; de esteiras ergométricas, para os joelhos.

Mas, cinismos à parte, pouco importam os argumentos, porque eles sempre haverão de pressupor uma determinada visão da missão do Estado e dos órgãos que representam a sociedade. Nesse caso, a discussão fica para os juristas.

A questão que ora queremos levantar não é – nem nunca foi – o papel do Estado em discutir e regulamentar essas questões. O que interessa aqui é refletir sobre as proibições de propaganda que estão na pauta do dia. Associar a propaganda à violência, no caso da bebida alcoólica, por exemplo, é perigoso e errado. Existem outras formas muito mais eficientes de se quebrar a cadeia “bebida alcoólica X violência”. O Ministro da Secretaria de Direitos Humanos Nilmário Miranda deu a letra em uma recente entrevista: “Na periferia, o grande lazer é o boteco, a cachaça, onde a maioria das mortes ocorre de sexta-feira à noite a domingo à tarde. Juntando cachaça com armas e a falta de opção e lazer e outras atividades comunitárias, por exemplo, tem-se a receita da violência. Diadema, em São Paulo, tinha um dos maiores índices de morte por 100 mil habitantes do mundo. Bastou uma lei seca fechando os botecos à meia-noite de sexta a domingo e o número de mortes caiu pela metade.” (Revista IstoÉ nº 1754, de 14/05/03)

O que muitos esquecem ou não sabem, no entanto, é que a propaganda é, para todos os efeitos, uma espécie de “trato democrático”. Assim como numa democracia existem três poderes instituídos e devidamente independentes, podemos dizer que existem dois outros “poderes” não menos fortes e democráticos. Falo evidentemente da Imprensa e do Poder Econômico.

Desde que o sistema capitalista amadureceu e se consolidou como a única alternativa prática para a sustentação de um regime democrático, uma espécie de “trato democrático” estabeleceu-se entre eles. Cabe à imprensa informar e cabe ao poder econômico gerar riqueza. E entre os dois, o trato foi o seguinte: “Fique na sua, que fico na minha”. Mas como fazer para que um não interfira no outro? Como resolver a enorme tentação que consiste em o poder econômico influenciar a imprensa ou, melhor dizendo, a imprensa trabalhar a serviço do poder econômico?

O trato se chama “propaganda” e funciona através de uma separação tácita, clara e transparente entre os dois “conteúdos”. Uma separação entre o que chamamos de “conteúdo jornalístico” e o “conteúdo publicitário”. Para ser mais simples, chamemos essa separação de “plim-plim”. Quando o “plim-plim” entra, o público sabe que, daí para frente, ele é consumidor. Quando o “plim-plim” encerra o bloco, o público sabe que, daí para frente, ele é telespectador. Ou será que alguém ainda tem dúvidas de que as pessoas, todas elas, das mais simples às mais sofisticadas, sabem que existe essa diferença?

Mas para azeitar ainda mais a mecânica, o “trato” vai mais longe. A imprensa é tanto mais independente quanto maior for a sua capacidade financeira de sê-lo. E quem financia essa independência? A propaganda, claro. Assim, o poder econômico paga a imprensa para, separando seus conteúdos, veicular os seus, em meio aos dela.

Isso para não falar que esses dois poderes se dão tão bem, que eles ainda inventaram um “Código de Auto-Regulamentação”, que coroa essa relação de convivência pacífica e independente. O CONAR é constitúido por representantes dos órgaos de comunicação, dos anunciantes e das agências de propaganda e delibera sobre qualquer denúnica, de qualquer natureza e enviada por qualquer pessoa ou instituição que se considere lesada por um conteúdo publicitário. As decisões do CONAR são inapeláveis e de uma competência ímpar. O conteúdo publicitário julgado inapropriado pelo CONAR é imediatamente retirado do ar.

É inacreditável como isso funciona. Tomara Deus que o poder público tivesse a velocidade e a eficiência do Conar. Tomara que ainda funcione por muito tempo. Tomara que o poder público democraticamente constituído olhe um pouco para o que já existe e funciona em vez de querer interferir sem sugerir alternativas. Tomara que eles reflitam antes sobre as conseqüências correlatas e graves que uma interferência excessivamente “reguladora” pode trazer.

Caso contrário, existem alternativas, claro.

Existe a alternativa de o público pagar pela informação, ou a de o Estado financiar os veículos de comunicação. Mas também podemos imaginar uma sociedade sem consumo. Uma sociedade comunitária. Uma comunidade de silvícolas auto-suficientes.

Tudo é possível.

É possível que nossos doutos representantes resolvam interferir numa azeitada relação que está no cerne mesmo da nossa sociedade capitalista e democrática.

Democracia terminal.

É impossível falar de outra coisa. Somos bombardeados diariamente pela mais tentacular das campanhas políticas dos últimos tempos. Uma campanha no entanto morna, cheia de clichês que disfarçam a mais absoluta falta de vergonha.

Morna porque os discursos políticos são recheados de fatos, planos de ação, citações de feitos, promessas burocraticas. Morna porque meia dúzia é a mesma coisa que 6.

Clichês porque os candidatos destilam exatamente o que o eleitor, incauto e ingênuo, quer ouvir. A lição do líder carismático seguida à risca. Os clichês inflamados mobilizam contingentes acéfalos.

Democracia não significa eleição nem sufrágio universal. Democracia custa caro. E seu preço é inversamente proporcional à consciência política do eleitor. Quanto menor a educação política do cidadão, mais caro ele irá pagar por suas escolhas.

A propaganda eleitoral no Brasil acredita piamente que o brasileiro vota por impulso.

A propaganda política brasileira reza o terço da mentira deslavada, do chute, do populismo.

Os candidatos, absortos por essa máquina diabólica, por esse vício do sistema democrático brasileiro chamado “propaganda eleitoral gratuita”, aposentaram definitivamente seus ideais, isto é, quando os tinham.

Não quero saber quantas prisões o Senhor Candidato vai construir. Nem quanto vai ser o salário mínimo, muito menos o que fazer com a dívida externa, os juros, o dólar, as alíquotas de imposto. Eu sou lá economista, jurista, financista? Quero saber o compromisso do Senhor Candidato com a fratura social, com a distribuição de riqueza, com o fim dos privilégios, dos cartéis, da corrupção. Não é um inventário de promessas numéricas que irá me convencer mas as idéias e a coerência da biografia do homem e do partido ao qual pertence. Estou pedindo muito?

Mas será a propaganda eleitoral gratuita adequada para um debate de idéias, de biografias? Não. Propaganda eleitoral gratuita só serve para um bombardeio massacrante de mentiras.

O eleitor é vítima. Vítima de uma escolha que acontece no susto, no imediatismo, por egoismo. Esses são os verdadeiros valores dos políticos candidatos.

A propaganda eleitoral gratuita não é só um atentado à inteligência do Brasileiro, é um câncer letal na consciência política de todos nós.