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Mais Um, Baêa por Gustavo Soares

https://www.youtube.com/watch?v=RnzDAPcYzmE

Viram esse vídeo?
Os alemães se concentram numa cidadezinha da Bahia, Santa Cruz de Cabrália.
Por não terem sentido muita firmeza no governo brasileiro anos atrás, decidiram construir eles mesmos seu centro de treinamento.
Arrogância? Preconceito? Não, pragmatismo. Os caras não quiseram aborrecimento, pouparam a gente de mais um vexame.

Mas esse não é o ponto.
O ponto é a cidade que escolheram, Cabrália. É pertinho de Porto Seguro, e foi onde os portugas estacionaram as primeiras caravelas em 1500.
Eu já estive lá, fotografando no local exato onde fincaram a primeira cruz, diante de índios festeiros, que se fantasiaram e se paramentaram para impressionar aqueles visitantes esquisitos, e de índias loucas para dar para aqueles homens barbudos e fedorentos. Sem entender patavina, índios e índias se ajoelharam imitando os portugueses e aceitaram rezar junto, mesmo sem conhecer o deus em questão. Me parece auspicioso ver os alemães cantando o hino do Baêa nesse mesmo solo, 2014 anos depois.

Há alguns anos eu fiz um livro sobre a presença germânica no Brasil, e nas minhas pesquisas ficou mais que evidente o quanto alemães amam o Brasil, ainda que as razões nunca tenham ficado aparentes nem mesmo para eles. São inúmeros os exemplos: o navegador chefe da expedição de Cabral era alemão. Brasil, que era o nome da madeira, pode ter vindo do vocábulo alemão “brazen”, que quer dizer brasa, fogo, vermelho. E o único lugar no mundo onde o Fusca teve nome oficial foi aqui – no resto do mundo era só VW – e o nome nasceu porque os brazucas ouviam os alemães dizendo Volks com sotaque (algo como fuLcas).

Os alemães do vídeo são dois dos principais jogadores de um dos melhores times do planeta. E parecem dois turistas em pleno Carnaval, pulando com os locais numa rua sem asfalto em frente a uma birosca. Isso é Brasil, purinho. É atrás disso que o mundo vem: de ser convidado pelos nativos a pular e cantar algo incompreensível, nesse país louco, fascinante e estranho, que já tem 2014 anos e continua na fantasia de todo estrangeiro. Na capa da Folha de hoje tem outros dois jogadores, holandeses, se jogando no mar de Ipanema durante um treinamento. É dessa liberdade para fazer bagunça e sermos todos inconsequentes é que os gringos vieram atrás. Porque aqui eles podem desobedecer um pouco as regras de lá. Não precisam de um telão com a letra do hino do Bahia pra cantar junto. Até porque a letra não diz muito mesmo: “Mais um Bahia. Mais um título de glória. Mais um, mais um Bahia. É assim que se resume a tua história”.

Nós, os índios hipsters, nos ressentimos de sentir vontade de ajoelhar e rezar junto com os gringos. Rejeitamos as cantorias e as fantasias. Não queremos ser índios, mas somos, só que em vez da cruz ajoelhamos para os trens-bala japoneses, para os aeroportos reluzentes dos americanos, para o padrão Fifa das calçadas e metrôs em que vive a Europa.

A Copa não pode servir como a expurgação das frustrações com a nossa letargia, com a nossa tendência para a procrastinação, com a nossa incapacidade de lembrar que políticos eleitos são um espelho que nos reflete como sociedade. A Copa é um evento de 30 dias que deve ser de festa, não de imolação pública. Sob pena de perdermos essa identidade que é tão-somente nossa. Temos é que aproveitar para fazermos as pazes com essa identidade. O jeito brasileiro, mesmo que seja o jeitinho, que é nosso maior apelo, nosso trunfo.

Vai ter Copa sim. Só que a se continuar o conflito psicanalítico sobre a nossa incompetência, a Copa vai ser dos alemães, holandeses e todos os outros estrangeiros que estão aqui para aproveitar a vida. Abrir mão da alegria, da festa, não vai nos tornar melhores. Ainda menos nos próximos 30 e poucos dias.

Gustavo Soares

O país na bolha

A frustração é um sentimento que decorre da relação entre expectativa gerada e possibilidade de realização.

É como custo X benefício: para melhorar a relação, você pode reduzir o custo com o mesmo benefício, aumentar o benefício com o mesmo custo ou simultaneamente reduzir o custo e aumentar o benefício.

Para reduzir a frustração, você pode diminuir sua expectativa, aumentar a possibilidade de realização ou ambas as coisas.

Exemplificando.

No Brasil, vivemos numa bolha de expectativas eternas. Queremos andar de bicicleta nas cidades, consumir produtos orgânicos, ter uma vida mais sustentável. Queremos também consumir marcas internacionais e conhecer o mundo. Queremos probidade pública e transparência.

Mas no Brasil, as vias públicas são esburacadas, ainda temos gente que não come direito e estamos azulejando a Amazônia. Compramos Goyard em 20 prestações e nossos aeroportos são à imagem e semelhança do site da TAM. Nossa democracia eternamente em construção balança dialeticamente entre a prepotência de uma direita com veleidades sociais e uma esquerda populista regada à estímulos desenvolvimentistas ultrapassados.

Em suma, nossas expectativas são altas e nossas possibilidades de realização atravancadas.

Só existe um jeito de ser feliz e não sonhar com o impossível idílio de picar a mula: baixar as nossas expectativas. Ou pelo menos, calibrá-las às nossas – brasileiras – reais capacidades de realização.

Furar a bolha.

Graciliano Ramos foi um dos maiores escritores de sua época. Morreu mais pobre do que nasceu. Em sua única viagem internacional, foi à antiga União Soviética e aproveitou para conhecer algumas capitais europeias. Ficou maravilhado com tudo que viu mas disse que nada daquilo era para ele, que ainda preferia o Brasil, apesar do atraso, porque aqui tem calor em todas as declinações possíveis.

Não importa a idade que você tenha, somos de outra época

O pai de um amigo, sujeito muito respeitável, gastava 15 minutos engraxando seus sapatos italianos todos os dias. Ele achava essa tarefa muito degradante para uma de suas empregadas domésticas.

A filha de Lord Grantham casou com o motorista. O pai aceitou mas continua tratando o genro como se fosse seu empregado.

Uma babá muito competente trabalha para uma glamorosa editora de moda. Seu facebook tem as mesmas referências que a patroa.

No filme Grande Illusion de Jean Renoir, Erich von Stroheim interpreta um nobre oficial que dirige o campo em que está preso um também oficial nobre francês. O filme é de 1937 e se passa durante a primeira guerra mundial. O comandante do campo trata os franceses com decoro ético admirável mas diz ao seu preso de sangue azul: “nós somos os últimos sobreviventes de uma polidez moribunda”.

O mundo muda todos os dias há milhões de anos mas existem momentos, marcos, grandes inflexões. São os pulsos que marcam o espírito do tempo.

A relação que sempre tivemos com nossos empregados, desde a Casa Grande e a Senzala, é uma bagunça que mistura trabalho com afeto. Essa é a primeira constatação. A segunda é que o empregado doméstico ou, por extensão, o empregado “subqualificado”, não gera lucro para o patrão. Por isso, por conta da promiscuidade da relação – família? empregado? – e porque não se pode propriamente falar em exploração de mão de obra – na acepção da expressão marxista – convivemos com duas realidades distintas, no Brasil.

Imaginemos uma empresa supermoderna, agressiva, expansiva, com sistemas de remuneração avançados, numa atividade de ponta. Agora, vamos simular uma situação: no mesmo dia, duas pessoas são demitidas da empresa. O analista formado em boas escolas, ligado nas paradas mais modernas e a copeira carinhosa que todo mundo adora. Dois tipos de comentários vão aparecer na empresa quando a notícia se espalhar: 1) “aquele rapaz, que pena que saiu, mas são coisas da vida” 2) “a Cidinha, não é possível gente, que sacanagem!”

Por que? Porque o país está vivendo simultaneamente em dois regimes: capitalismo e servilismo. Porque vivemos simultaneamente, ainda, numa sociedade racional de um lado e patriarcal de outro.

Mas no dia em que a doméstica se negar a lavar suas cuecas, no dia em que a recepcionista fizer cara feia se tiver que servir café, no dia em que você tiver que desentupir o banheiro, no dia que você tiver que servir café para os clientes, o mundo mudou.

Quando sabemos identificar essas bússolas, quando somos capazes de reconhece-las entre as infinitas mudanças diárias, quando encontramos o primeiro cabelo branco e a primeira ruga de nossa época, é hora de transformar-se ou assumir a caduquice.

O Brasil ensaiado de dar dó

O Brasil hip é pobre de dá dó. Não só porque é molenga e comedido mas porque é abortivo de qualquer autenticidade e energia.

O enfrentamento entre o Brasil de cartão postal e o Brasil da Oscar Freire é o maior obstáculo à nossa identidade. De um lado, um país bananeiro, de outro um arremedo de Dubai; de um lado o gigante adormecido, de outro o anão plastificado; de um lado as bundas, do outro a falta delas.

Não tem charme nem graça esse Brasil que rebola com discrição e elegância. Nem para nós, sejamos francos: não curtimos o minimalismo, o meticuloso, o calculado, o lentamente masturbado. Curtimos o fogo, o sanguíneo, o reflexo, o precocemente parido.

Então essa participação xoxa do Brasil na festa de encerramento dos jogos olímpicos de Londres é simbólico dessa identidade em cima do muro. O desafino das Bachianas, as mulatas de neon, os índios de aparelhagem, o gari globeleza, o malandro do Leblon, o negão pós Oiticica: aquarela do Brasil aguada. De Brasil ali, de Brasil de verdade ali, talvez só mesmo sua majestade, nosso rei Pelé.

Se ainda temos complexos de pobres periféricos, se não somos capazes de assumir nossa mestiçagem, nossa promiscuidade cultural, nossa intelectualidade malandra, por que não desgrudamos do expressionismo circense da novela?

A avenida de nosso Brasil

Nosso über Brasil do futuro é um sonho incerto. Mas como somos povo de fé inquebrantável, ainda navegamos com ginga, driblando as marés novelísticamente.

No entanto, talvez já possamos aprender com os calos incipientes: não percamos a inocência e a humildade. Nascemos ontem e cabulamos a escola.

O sinal perverso vem dos valores invertidos de uma prosperidade recente. A afluência não é fruto do esforço mas do desejo: compro porque quero e não porque posso.

Em tempos de um presumido pleno emprego, em tempos em que o dinheiro é o valor supremo, estudar não garante emprego, nem dinheiro.

Somos uma nação de ignorantes com televisão de 50 polegadas, uma nação de caipiras experts em tendências, uma nação de iletrados com desenvoltura tecnológica, uma nação de festeiros.

Já viu a novela?

Grude gringo

Você já deve ter ouvido que o Brasil é a bola da vez um milhão de vezes e, embora isso possa ser animador, o  grude gringo preocupa.

Eles estão suspirando no nosso cangote, com olhão de inveja na nossa vitalidade, vampirizando nossa energia e trucando com seus molambos de poder.

Prometem, douram a pílula, distribuem abraços e beijos, e com metralhadoras, distribuem saraivadas de elogios “brasileiro é tão bonzinho, criativo, engraçado, descontraído, carinhoso!”

Tem uns que se arrepiam com o interesse cafajeste: abrem a casa, pousam sexy na Hola e arrepiam-se com a misantropia dessa nata do B.

Mas nosso sangue não é purinho, cambada! Derreter-se nesses bailes de elogios é para debutante.

O que esses guys não sabem é que aprendemos tropeçando, levando rasteira, upa neguinho na estrada.

Nesse momento de transfusão de recursos in-extremis, toda malandragem será perdoada.

 

Demo de produto em comercial é de se rir

Identidade é uma escolha ou uma herança? Há quem acredite em herança, quase genética, atávica. Mas a hipótese é conservadora e contradiz a principal força motriz do desenvolvimento humano: a miscigenação, a promiscuidade cultural e a barafunda de influências que nos impulsionam adiante. A identidade herdada é uma prisão que arrasta muita gente para o divã.

A identidade escolhida, no entanto, não significa que não possamos relacionar as afinidades culturais de um povo. Desde Caminha, tentamos apropriar para o brasileiro um caráter, um gosto mínimo denominador comum. Em tempos de entusiasmo econômico, essa busca se acentua. Afinal, o que nos une, para além da geografia, da língua e do passaporte? Para entusiastas, é a criatividade; para derrotistas, a passividade.

Quando perguntados sobre qual seria a característica mais apreciada de uma propaganda, uma pesquisa apontou, de longe, que era o humor. Lá na rabeira, aparecem os clichês típicos da propaganda de baixa qualidade: uso de celebridades, jingles e músicas famosas, etc.

Apesar do Luciano Huck virar capa de revista (da Veja, claro) pelo seu bom-mocismo sem graça, apesar da promiscuidade de sua imagem, é triste aceitar que ele personalize nosso mínimo denominador aspiracional.

Prefiro achar que o Gerônimo Santana (“viado cidadão”) é melhor do que o Luan Santana (“meteoro da paixão”). Melhor Chacrinha do que Huck. Muito mais gozado, efêmero, debochado.

Talvez sejamos mais brasileiros quando rimos de nós mesmos, quando não nos levamos a sério.

Existe alguma coisa mais enfadonha do que uma demo de produto, em um comercial, que tenha a pretensão de explicar tecnicamente as propriedades benéficas de um produto? Até quando continuaremos acreditando que o brasileiro é como o alemão e gosta de provas para consumir?

O convencimento pela seriedade é um caminho anacrônico em um país que se debulha no carnaval, faz samba com a miséria, ri da desgraça e gargalha até com o preconceito. A demo de produto clássica é gringa, chata e burra, principalmente em uma linguagem – a propaganda – que há muito virou assunto de bar.

Um Novo Brasil e uma Nova América

Restaurante em Nova York. Na mesa ao lado, a mesma face de moedas de latitudes opostas conversam.

O primeiro é brasileiro, novinho-rico.

Não confundir com o novo-rico, esbanjador descontrolado, nem com o novo-riquinho, filho deste. O novinho-rico acabou de ganhar algum dinheiro, ainda dá um duro danado e já projeta seu status futuro em todas as falas.

Nosso espécime vomita manchetes da revista Exame, pontua banalidades econômicos e na falta de pontos de exclamação, abusa dos gestuais para suprir seu vernáculo primitivo. Por isso sua.

Do outro lado, o sujeito é americano, benzinho-nascido.

Não confundir com o bem-nascido, discreto mas empinado, nem com o bem-nascidinho, seu neto. O benzinho-nascido tem a grana necessária para o clube de golfe e as férias no Colorado, mas não suficiente para viver de pijama.

O Yankee é treinado para ouvir sem dar atenção, aquiescer sem concordar, franzir o cenho sem enrugar. Por isso finge.

O primeiro, de moleton comprado em outlet de New Jersey, quer o status presumido do segundo.

O segundo, de gravata amarela e lenço bem dobrado no bolso, quer a grana suposta do primeiro.

Apesar de completamente diferentes são idênticos na essência: ignorantes, preconceituosos, provavelmente machistas, certamente de direita.

O primeiro é o novo Brasil, trabalhador arrivista. O segundo é a nova América do Norte, esnobe interesseira.

Brasileiro: DNA Creative Commons

Não se pode levar muito a sério as generalizações que rotulam países, culturas e povos. Mas é um papo que enche a boca de muitas conversas. “O francês é mal-humorado; o português, literal; o italiano, conquistador; o americano, adolescente; o argentino, cabeludo; o mexicano, bigodudo; o indiano, fedido; o australiano, caipira; o japonês, tarado; o chinês, dissimulado; o russo, extravagante”, e por aí vai. É aquela conversinha mole que arrota “Sou viajado, tá?”.

O brasileiro seria, nessas qualificações precoces, alegre, se o viajante veio no carnaval; simpático, se ele se perdeu na Avenida Paulista; feliz, se ele se esticou nas areias; luxuriante, se ele comeu feijoada; gritalhão, se ele assistiu ao big brother local; caipira, se ele foi ao shopping; arrivista, se ele se derreteu na Oscar Freire. Sorridente ou desdentado, natural ou botocudo, sexy ou britânico, esperto ou disciplinado, o brasileiro pode ser tudo isso. O francês, também. O queniano, idem.

Mas se não deveríamos cometer tais derrapadas no atual milênio de extinção saudosa dos regionalismos, o brasileiro é o mais improvável dos povos e possui a mais impossível das identidades. A tolerância imposta pela miscigenação incontrolável nos deu essa zona poderosa.

Não tem nada mais falso e bobo do que um brasileiro que se esforça em ser americano, inglês ou argentino. Fazer como os americanos, os ingleses ou os argentinos. Pensar como os americanos, ingleses ou argentinos. Não tem nada mais provinciano.

Se o Brasil exporta sandália de dedo, avião a jato, dentistas e boleiros, ele tem para exportar a malemolência com o formalismo, a falta de vergonha, o aconchego cultural. Nosso DNA mestiço no sangue e mestiço no gosto. Nossa natureza copyleft. Nossa cultura mashup.