Sainte-Foy de Conques: fé, ouro e paixão

“Pierre, esconda-se, corra, eles estão chegando!”

Tremendo e soluçando, é dentro do baú de carvalho que o pequeno encontra refúgio, entre salames e restos de um fausto puído. Aqueles instantes gravaram-se com navalha na memória: a mãe sob tortura, sob a risada ébria, as línguas estrangeiras, o banquete de sangue.

O século era invadido de perversas heresias, sedentos conquistadores, vadiagem de bárbaras tribos. A proteção dos elmos e escudos, das muralhas e esconderijos espanta os ladrões e corruptos. Mas quem segura os sarracenos?

Pierre retira-se do mundo, mudo. Vagueia por anos, de aldeia em aldeia e da linhagem que abandonou, da família que sumiu sob a crueldade dos homens; ele conserva o pequeno missal da mãe, o crucifixo de batismo e uma fé selvagem em Cristo.

Pierre se faz eremita nos vales do Aveyron na primeira metade do século VIII. Ele se dá a Deus e nasce assim Dadon, o santo homem.

É numa pequena e verdejante depressão que ele chamaria de Conques (do latim conca, concha) edifica sua primeira capela. A fé e a dedicação consequente elevam rapidamente o pequeno santuário à consideração dos reis carolíngios que a cobrem de riqueza. Dadon legou sua fé; o poder lega o ouro.

No entanto, Conques ainda tem baixa cotação no pedigree sacro: falta-lhe
um osso, um crânio, um cabelo, um caco de cruz, uma ferrugem, uma relíquia de santo.

Aronis era um miserável. Para escapar da fome, ele se faz monge, como tantos outros homens de igreja. No mosteiro beneditino de Agen, encontra abrigo e pequenas obrigações.

Certo dia, o irmão encarregado da faxina dos tesouros adoece, e Aronis é incumbido de lustrar as imagens. Ao entrar na pequena capela escura, uma centelha de luz reverbera no mármore polido do altar. Aronis sente seu olhar guiado, sua pelas têmporas, palpita desordenadamente sob o manto. Em um nicho lateral, uma dama dourada, oferece-lhe delicada flor. O monge cai de joelhos e contempla em adoração a Santa em sua alcova.

Não houve no Ocidente medieval mais bela e pura história de amor. Uma paixão, como todas, impossível. Um monge casto e uma santa. Um homem rude e uma estátua dourada. Um coração oco e um relicário. Aronis e a memória da pequena Foy, de 12 anos, decapitada por ordem de Diocleciano.

Por dez anos, o monge devotou à Foy um incontrolável amor.

E se paixão é doença de coração, se não mata, engorda.

Um belo dia, o doido surrupiou a estátua do convento e picou a mula sem deixar vestígios. O safado foi parar em Conques e vendeu seu amor ao corrupto abade, que colocou a cidade na mais santa de todas as santas rotas, o caminho de Santiago de Compostela (Via Podiensis).

Aronis morreu por ali, anos depois, gordo e mal-amado. Foy irradia ainda hoje, e para sempre, o mais puro sorriso de compaixão.

Essa história é meia verdade, como todas as paixões.

Minha devoção à Sainte-Foy

Tenho pelo menos três inabaláveis motivos para crer na linda santinha, com suas delicadas mãos segurando minúsculos vasos de flores.

1998, copa do mundo em terra estrangeira. Vai começar o jogo, o primeiro do Brasil. Chegada a Conques, aldeia perdida no meio do nada. Turista brasileiro ali é mais raro do que Havaianas nos pés dos monges beneditinos que ainda vagueiam pela rua estreita que leva à igreja. “Será possível que não tem um único bar aberto com televisão ligada?” Finalmente, um café com televisão. Ligada. Numa porcaria de um programa de auditório. “Madame, s’il vous plait, La Coupe du Monde de football!!” Finalmente, dois canarinhos grudados na televisão. “Shuuuut” diz a velha senhora varrendo a porta para um casal de turistas alemães, em respeito à nossa concentração. Brasil 2 X 1 Escócia. Primeiro milagre de Sainte-Foy.

2000, mais uma visita a Conques. Sem motivo. Só para rever aquele “écrin de verdure” (desculpem, mas, em português, “estojo de verdura” é medonho). Dormimos no único hotel da cidade. A igreja abre até muito tarde para receber os peregrinos, mas que tal assistir a uma missa? A próxima é às cinco e pouco da manhã. As matinas! Com os monges! Lá vamos nós. Entramos na pequena capela atrasados. Seis monges e uma velha que, educadamente, nos empresta um missal. “É pra cantar alguma coisa! E agora, o que estão cantando?”. Folheio o livro, sem muita fé. E não é que ele se abre na página certa? Arrebatados, entoamos o cântico. Segundo milagre de Sainte-Foy.

2006, Conques de novo, a caminho da Provence. É tarde e estou cansado. Vamos fazer uma parada no hotelzinho da cidade. À noite, tem pouco ou nada para fazer em Conques. Vamos ligar para a Lígia e saber como está. Ainda no hospital, a pequena Júlia em seu ventre, desenganada. Drama sem palavras. “Estou em Conques, vou fazer uma promessa amanhã”. Por procuração, claro, uma vez que minha religiosidade se perdeu em algum prazer proibido. Cem velas para Sainte-Foy se minha afiliada conseguir vencer seu prematuro sofrimento. Júlia tem hoje três anos é linda e forte. Uma vencedora antes de ser gente. Terceiro milagre de Sainte-Foy.

Serviços

Para ir a Conques, é simples. Basta colocar no GPS do carro. Se não estiver de carro, tente o caminho de Santiago, a pé. Não tem muito o que indicar em Conques. Está tudo lá, à mão, sem stress, sem guia tagarela, sem galleries Lafayette e sem japonês.

Hotel só tem um razoável, o “Le Sainte Foy”. Mas se quiser um pouco mais de luxo, ali do ladinho, tem o mais confortável “Le Moulin de Cambelong”.

Comer, não tem opção. A sugestão é sempre a mesma quando você se perde na “France profonde”: uma salada qualquer, um sanduíche de camembert ou um steak-frittes.

O que ver também não tem segredos: a basílica romana (no fim da rua) e o museu com o tesouro (incluindo a belíssima Sainte Foix). Fora isso, se deixe levar pela rua, saia da aldeia, volte, saia de novo. Compre um sorvete e sente num banco olhando o tempo passar. Você nem vai perceber, mas de repente anoiteceu e você já está com saudade.

Perto de Conques existem outras etapas imperdíveis:

– Rocamadour com sua aldeia, santuário e castelo trepados no precipício.
– Albi e sua catedral fortaleza com as mais flamejantes pinturas remanescentes de um tempo em que as igrejas eram coloridas.
– Cordes sur Ciel e o silêncio dos cátaros sacrificados.
– Martel e seu mercado de flores.
– La Roque-Gageac e seu castelo debruçado no rio.
– Sarlat la Canéda e a memória de um grande poeta, La Boëtie.
– Domme e sua terraço sobre a Dordogne.

Publicado na revista Mag

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