Posicionamento de marca: essência ou detalhe

Já inventaram de tudo para servir de modelo ao entendimento de uma marca. E dá-lhe, construções abstratas, antropomorfas, biológicas, arquetípicas, espirituais. O marketing, como todas as artes capitalistas, é profícuo em apropriar-se de outras áreas do conhecimento, sem muitos pudores, para elaborar aproximações compreensíveis, logo, superficiais. Funcionam todas como uma forma pseudointelectualizada de busca de sentido através de nobres metáforas.

Qualquer Avatar, para ser entendido pela massa ignara, fala por parábolas. É o que o marketing faz quando inventa uma personalidade, valores, DNAs e outras maluquices para uma marca. E a palavra vira evangelho a ser seguido, sem discussões, dogmaticamente.

Ironias à parte, Deus seja louvado; e sua palavra, idem. Sem o evangelho da marca, o empirismo e a barbárie dos achismos dominariam as decisões.

No entanto, todos os evangelhos, todos os modelos de marketing, qualquer que seja a religião, se equivalem.

A essência das análises é procurar precisamente a essência de uma marca. Tem até um modelo velhaco que dá conta de um DNA com uma alma no centro. De revirar o estômago até das ervilhas do padre Mendel.

Essência é um conceito abstrato. Sua lógica está impressa num raciocínio hierarquizante, supondo que o mundo e todas as suas coisas são compostas de partes que se completam de forma dominante e dominada. E a essência, no centro, é o comandante de todas as partes.

Expressar a essência de uma marca é a quimera das teorias de posicionamento. É a partir dessa definição que se irradiam as manifestações da marca, inclusive na comunicação. É essa essência – quintessência – que irá guiar-nos na tentativa de emocionar o consumidor.

Um raciocínio simples, no entanto, prova a inocência e a caduquice desse pensamento.

As pessoas, as marcas, são ecologias complexas, compostas de partes que se complementam e se engendram de forma funcional e aleatória. Não há hierarquia. Nem comando.

Se não se ama, de uma pessoa, uma essência, mas caretas, covas, resmungos, gestos, quem dirá que se possa amar uma marca e ainda por cima pretender encontrar-lhe uma essência!

Uma marca não tem essência, porque a essência não está nela, mas nas pessoas que a apreciam. Elas são infinitas, portanto impossíveis de sintetizar. A não ser que se recorra à lógica do mínimo denominador comum, necessariamente simplificador e banal.

Não seria também por isso, do ponto de vista estritamente de posicionamento de comunicação, que tantas marcas possuem “essências” idênticas e comunicações igualmente pasteurizadas?

Não se compra uma coisa pela sua funcionalidade, mas por uma constelação de motivos, funcionais e emocionais, caoticamente agrupados. Tampouco, não se prefere uma marca pela coisa essencial que ela representa, mas por uma miríade de fatores racionais e emocionais, impossíveis de se conjugar.

Mas supondo que seja possível amar, de amor, uma coisa ou uma marca, por que será que é preciso amar, de amor, a sua essência e não seus detalhes, ou um detalhe que talvez seja ele, sim, um denominador comum de paixão entre nossos consumidores?

Será que, em vez de comunicar de uma marca uma essência ficcional, não poderíamos comunicar caretas, covas, resmungos e gestos? E se a propaganda pudesse falar de suas pequenas superfícies deliciosas ao invés do âmago utópico?

Eddie: Senti sua falta. É verdade. Senti sua falta como nada antes me faltou a vida inteira. Eu não parava de pensar em você, o tempo todo, dirigindo. De te ver. Por vezes, só uma parte de ti.
May: Que parte?
Eddie: Seu pescoço.
May: Meu pescoço?

Eddie: É.
May: Faltava-lhe meu pescoço?

Sam Shepard no filme Fool for Love (1985)

Publicado originalmente no Meio e Mensagem de 16/10/2010

8 thoughts on “Posicionamento de marca: essência ou detalhe

  1. Perfeito! Essa mania que temos de querer dar vida pra coisas que são de nossa autoria acaba nesse blá blá blá marketês… Essência de marca é o cacete!

  2. Caraca bom velhinho mocinho, essa foi boa. Sam Shepard… Nós amamos vc, e nem sei qual é sua essencia, nem interessa, nem vc sabe, nem vc deveria saber. Filosofia moderna a serviço dos amigos e do sabão. Sorte do sabão e dos amigos.

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