Fedeu

Para Edu

Primeiro foi uma ventania, forte. Os sopros vinham pela direita, pela esquerda, de cima para baixo, de baixo para cima. Um céu asmático castigava o jardim. As árvores em transe bailavam em cima do telhado. Depois veio a chuva, suicidando as nuvens lá no alto. Pingos apressados rebolavam nas folhas mais altas e despencavam caóticos no gramado. E quando tudo estava molhado e bagunçado, um enorme estrondo rasgou o espaço.

Corri para o terraço e lá estava: no meio da noite escura, de ponta a ponta, uma fenda arreganhava as tripas do céu.

Logo a chuva parou de cair e o vento sossegou. De frente para mim, do rasgão que se extendia até onde a vista alcança, uma luz amarelada transpirava para fora. Um cheiro acre enchia a atmosfera.

No início eu não enxerguei direito. Só percebia formas se movimentando através da fresta. Mas aos poucos minha vista se firmou e consegui distinguir o interior do buraco. Eram tubos sanfonados de todos os calibres que se entrelaçavam sem ordem. Os maiores pulsavam como um aspirador em grande atividade.

Eu estava um pouco assustado, mas respirei fundo e caminhei em direção à abertura que tocava o chão. À medida que me aproximava, o rumor abafado que ouvia transformou-se em uma pequena voz borbulhante. Era impossível ainda distinguir se era humana. Cheguei mais perto e encostei o ouvido numa das mangueiras. Tinha uma pessoa lá dentro.

– Hey, quem está aí?
– Vai buscar a fita isolante, rápido!
– Como assim?
– A fita isolante, esta vazando, corre!

Me afastei um pouco e percebi que de fato, um caldo viscoso escorria ao longo da tubulação.

– Quem é você?
– Não é hora para fazer perguntas, maluco, vá buscar o que pedi!

Não discuti muito e apesar de achar a idéia estranha, corri para a garagem apanhar meu kit de encanador. Voltei ofegante e comecei rapidamente a envolver o tubo com a fita.

– Isso, bom trabalho.
– Obrigado.
– Você quem é? O que está fazendo aí?
– Ué, estou na minha casa. Mas eu é que pergunto! Quem é você?
– Espera um pouco.

Eu não havia percebido uma pequena escotilha parafusada em uma das saliências. Ela se abriu para dentro. Um olho azul apareceu por detrás, e a portinha se fechou rapidamente.

– Alô? Você ainda está aí?
– Estou sim, mas quem é você? Que lugar é esse?
– Eu sou o Marcos, aqui é a minha casa.
– Sua casa? Como assim sua casa?
– Minha casa, ora. Moro aqui.
– Mas espera um pouco. O que está acontecendo aqui?
– E eu sei? Esse rasgão abriu-se no céu e pronto.
– Rasgão? Que rasgão? Rasgão no céu, Meu Deus!
– Chamou?

De susto, cai de bunda no chão e fiquei ouvindo o diálogo que se seguiu.

– Meu Deus, acho que temos problemas com a película isolante da camada terráquea.
– Interessante.
– Um vivo flagrou o incidente, Senhor.
– É?
– Sim, e agora o que fazemos?
– Sei lá, decide você. Eu estou com preguiça e não me chame mais no meio do jantar. Adeus, digo, Amim.

Nesse momento, a escotilha abriu-se novamente.

– Vivo, você sabe o que aconteceu aqui?
– Não faço a menor idéia.
– Quer saber?
– Quero.
– Mas promete uma coisa.
– Pode falar.
– Você não conta para ninguém.
– Tá bom, o que foi?
– Hoje era dia de festa aqui.
– Aqui aonde?
– Aqui no céu, caramba, mas você é burro mesmo. Não percebeu que eu estou no céu?
– Quer dizer, percebi sim.
– Não entendeu que eu morri?
– Morreu?
– Bom, deixa para lá.
– Mas o que aconteceu?
– Pois então. Esse buraco no céu é inédito, não me lembro que tenha acontecido antes.
– Mas e agora?
– Agora nada, vamos dar um jeito nisso, não se preocupe, não vai ser fácil mas já já a gente conserta.
– Tá bom. Quer ajuda?
– Não obrigado. Você já fez o que pode.
– Mas como isso aconteceu?
– Isso o quê?
– Esse rasgão?
– Ah, o rasgão.
– Isso. Conta.
– Você promete não contar para ninguém?
– Prometo, já falei.
– Jura por ele?
– Ele quem?
– Ele, ora!
– Tá bom, juro. Por Deus.
– Aproxima o ouvido que eu não quero que ele ouça.
– Pronto, pode falar.
– Então. Ele peidou.
– Quem?
– Deus, Deus peidou e rasgou as calças do céu.
– Acontece.

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