Vivemos em um mundo assolado pelo Mundo. O fluxo incontido e espetacular de notícias que seguimos com a mesma paixão que nos faz verter lágrimas na despedida de uma mãe no leito de seu filho, escapa na próxima diversão emocionante, no próximo desastre ou polêmica. Um filme, uma novela, um acidente natural, um crime estarrecedor, a atitude incompreensível de uma celebridade.
Ainda que soubessemos tirar proveito emocional a tantas catástrofes, ou racional a tamanhos furos, preferimos os julgamentos maniqueístas: “like” ou “share”: agrado ou pan-difusão no Facebook. E para os formadores de opinião do Twitter, cabe um microsarcasmo ou pérola de sabedoria em 140 caractéres.
A moda é um sopro de expressão artística. Tendências explodem em geração espontânea e perecem na próxima, cada vez mais próxima, coleção. O sempre mais novo, mais obscuro, mais insuspeito criador desabrocha e esvanece ao sabor das primeiras filas inquisidoras dos desfiles. Alimentando-se ao extremo do culto às personalidades, nesse mundo com poucos meio tons, em que só há certo e errado, todo delito de opinião é passageiro.
John Galliano era um monstro de criatividade, inatacável. Ao sabor de sua loucura prestigiada, deslizou ao insultar pessoas com propósitos antisemitas. Mas já está perdoado – até por quem ofendeu – e temporariamente esquecido da mídia. Já já, retorna em alguma griffe menos sensível e menos hipócrita.
Como julgar, no entanto, o acontecimento? Será que a desculpa da inconsciência provocada pelo porre é suficiente? Ou o porre, ao contrário, desnuda convicções profundas, mascaradas pela civilidade e pelos interesses mais práticos? Devemos tolerar um nazista, e xenófobo, até no mais comum dos mortais? Na França, em que a maioria das tensões sociais nascem de posições extremadas a respeito da imigração? Na Europa, que ainda digere com dificuldade seu passado antisemita? Em um Mundo onde milhões morrem porque outros não toleram sua cor, sua religião, sua tradição? Talvez devessemos recusar-nos a apertar a mão desse Juan Carlos Antonio Galliano-Guillén, apontá-lo o dedo e rir-se de seus trejeitos.
Mas, acima de tudo, é inocente a obra das perfídias do seu criador? De que serve saber que Celine ou Wagner eram convictos de que os judeus eram ratos nojentos? De que nos adianta aprender que Coco Chanel foi acusada de colaboracionista por ter deitado com um oficial nazista? De que interessa a biografia de um artista, de um “grande” homem? Talvez não muito mais do que vê-los normais, como nós, e enternecer-nos com suas derrapadas.
Talvez apenas nos interesse o personagem criador, esse tal de John Galliano, cuja obra nunca foi de falar, mas de desenhar, mesclar influências e encher de vida e inspiração as passarelas.
Talvez devessemos apenas questionar e relativizar o endeusamento das personalidades que crescem e proliferam muito além de suas próprias obras – quando há obra. A mídia das biografias vazias, artificiais, posadas é um marketing vulgar. A vida de John Galliano é tão irrelevante como a nossa.
“Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”
Fernando Pessoa em Poema em linha reta
Artigo originalmente publicado em FFW em 25/03/2011