Storytelling farewell

Contar histórias estrutura a existência dos seres humanos desde que descobriram que ela era trágica e sem sentido. Contar histórias é a única salvaguarda que temos contra a aleatoriedade da vida. Mas a forma como são contadas caracteriza as épocas em que vivemos.

Quando a catedral de Paris ardeu em chamas, além da invasão de posts nas redes sociais com lembranças de viagem profundamente comovidas, o baú da história foi vasculhado em busca de significados que ainda não tinham sido explorados por aquele desenho animado da Disney. Muitos lembraram, então, do livro de Victor Hugo.

Vale dizer que, até o século XIX, a catedral estava bem abandonada, suja e triste. Ninguém dava muita bola para aquele monumento caquético e, considerado por muitas pessoas instruídas e de bom gosto, como cafona.

O romance de Victor Hugo reviveu e projetou a glória do velho templo. Foi graças a esse livro também que, anos depois, um arquiteto poderoso e excêntrico, Viollet-le-Duc, resolveu restaurar a catedral e acrescentar-lhe uma vaidosa fantasia: a famosa torrezinha, desenhada por ele. Foi essa excrescência gótica que desabou no incêndio, levantando a consternação de milhões de celebridades anônimas, atônitas pela perda irreparável de um patrimônio imemorial da humanidade.

Um dos capítulos do romance chama-se “Isto matará aquilo”. A narrativa se passa no século XV, quando nascia o livro impresso (não à toa, a Bíblia foi o primeiro deles), iniciando a popularização do maior veículo de transformação social e cultural da humanidade. Até aquele momento, eram as igrejas que educavam as pessoas, contando-lhes histórias da Bíblia, dos santos, dos reis. Era naquelas esculturas, naqueles vitrais e naqueles símbolos que os iletrados aprendiam o sentido da vida – ou, pelo menos, o sentido que outros queriam dar às suas miseráveis e incompreensíveis existências. Mas os livros mataram as narrativas de pedra e vidro. Graças a eles, outras formas de contar nasceram – com palavras – imortalizadas na escrita.

Depois, veio o cinema, que matou um pouco o livro. Em seguida, a televisão, que o matou mais um pouco. Então, vieram os formatos digitais: as redes sociais, que jogam todos os dias sua pá de cal no livro.

Isto aqui – a internet – matou aquilo – o livro.

Com os livros, mergulhávamos nos desenvolvimentos narrativos, nas vidas intrincadas dos personagens, nas descrições de sentimentos e contextos. Um livro não podia ser penetrado a qualquer momento. Seria incompreensível. Era preciso deitar-se com a história e dividir intimamente todos os seus meandros para sair transformado. Nenhum resumo ou resenha dá conta das quase um milhão e trezentas mil palavras de Em busca do tempo perdido de Proust ou das quinhentas mil de Guerra e paz de Tolstói.

Mas isso, a internet matou.

No nosso século, vivemos envoltos em excesso de estímulos, convites, solicitações, interações. A internet não liberta, gruda em suas infinitas teias. E onde há excesso, há falta de foco, atenção, aprofundamento e tempo. Sem tempo, tudo o que exige concentração incomoda, atrapalha.

Também essa forma de contar histórias, com narrativas complexas, intrincadas e vagarosas – Thomas Mann leva dezenas de páginas para descrever os sete minutos necessários para medir a temperatura do herói de A montanha mágica – não sensibiliza mais ninguém. O culto das aparências e da espontaneidade – irracional, límbica, visceral – seduz mais do que a timidez de Hans Castorp, que passa trezentas páginas para dizer “oi” à moça por quem se interessou no sanatório. Um minuto em qualquer aplicativo de encontros arranca paixões e entregas tórridas.

No nosso tempo de agora, a nova forma de contar histórias é a interjeição, o emoticon, o meme totalizante. No tempo de hoje, a gente exclama e se gosta imediatamente, sem crítica, sem filtro, e ama fácil. Odeia fácil também. A gente conta histórias em poucos caracteres e parco vocabulário. A gente substantiva pouco, privilegia o transitivo direto e capricha na adjetivação superlativa. A gente gosta de contar a nossa história, de preferência em imagens evocativas com captions entusiastas.

Na internet que matou o livro, muita gente virou autor. Praticamente todo mundo. As histórias não morreram; pelo contrário, difundiram-se, espalharam-se: a história do estacionamento lotado, do buffet infantil barulhento, da fila do show, do carrinho que “me atropelou sem dó na saída do supermercado”. Tudo vira história – as boas, as ruins e, principalmente, as apreciativas. Todo mundo tem algo para contar sobre o governo, a bolsa de valores, a eleição do presidente que adora contar histórias em 140 caracteres. Todo mundo escreve e todo mundo responde com outra história. Milhares, milhões de histórias rápidas passam todos os dias sob os nossos olhos. Histórias curtas, lapidares, diretas.

Proust dizia que sua obra era uma catedral porque era construída, tinha estrutura e conteúdo. Uma história edificada com planta e estilo. Uma história com tempo. Era a esse jeito de contar que dávamos o nome de storytelling. Um templo.

A internet matou o storytelling.

Publicado originalmente no Clube de Criação de SP em 04.06.2919

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