O admirável “novo normal”

Com o confinamento forçado, descobrimos que a sociabilidade não é uma alternativa de vida, e sim um imperativo de sobrevivência e que as aparências — filtros fugazes — não alimentam: viciam. Descobrimos também que as coisas não falam, não cheiram, não abraçam nem beijam. Encontramo-nos meditativos, essenciais e cheios de mente.

A expressão “novo normal” surgiu pela primeira vez na crise de 2008. É difícil dizer o que aconteceu de “novo” depois disso, para além de intenções e promessas. Desde o começo da pandemia, o termo voltou, virou um trending topic e tem substituído muitas sessões de terapia. O “novo normal” é o que está justificando nossas frustrações, fraquezas e preguiças. Nesse “novo normal”, seremos mais saudáveis, mais solidários e mais conscientes. Nesse “novo normal”, haverá menos egoísmo e menos vaidade.

Nesse admirável novo, consumiremos menos também.

Se os quatro quintos da humanidade que consomem mais do que precisam doassem um quinto do que têm para o quinto que consome menos do que precisa, ninguém morreria de fome na Terra.

Ou se um quinto do quinto do quinto do quinto daqueles que consomem mais do que precisam doassem um quinto do quinto do quinto do quinto do que têm, cinco quintos dos humanos — todos eles — teriam mais do que precisam para viver. Cinco quintos dos humanos viveriam com tudo que faz nossas complexas existências serem mais felizes do que somente aquilo que mata a fome para viver.

Isso porque, quando muito, um quinto de tudo o que consumimos serve para matar essa tal fome para viver. Os outros quatro quintos servem para matar a fome de viver.

Com o perdão da ironia, prometem-nos que, no admirável “novo normal”, todos aqueles quatro quintos da humanidade que consomem mais do que precisam para viver estarão satisfeitos com um quinto, e, assim, o quinto que consome menos do que precisa poderá viver dignamente.

Mas se fôssemos para o divã sem mentir, se fôssemos conscientes de nossas fraquezas, talvez admitíssemos quão adoráveis elas são. Fraquezas consumidas para ocupar pelo menos quatro quintos de nossas vidas com deliciosas coisas inúteis e atividades dispensáveis. Deliciosas porque dispensáveis.

A fome de viver são os reais e palpáveis prazeres. Vis prazeres. Alguns vergonhosos, outros ingênuos, mas todos quase sempre supérfluos. Olhe a seu redor, abra o armário, desça no porão, revisite sua agenda de antes e relembre seus projetos. Viu de quantos adoráveis prazeres inúteis é feita sua vida?

Essa dualidade entre necessidade e desejo, entre sobreviver e viver, entre precisar e querer é o ringue de todos os dias de qualquer trabalho de comunicação. Num canto, a emoção; no outro, a razão. Num canto, a motivação; no outro, a função. E quando surgiram métodos mais rápidos, mensuráveis, baratos e automáticos de produzir e influenciar a compra, quando apareceu a propaganda siamesa da busca na internet — a propaganda que associa Michelangelo a pizzaria —, a diferença ficou mais clara. E, apesar de toda a saliva gasta, ainda não criaram um festival de criatividade para os anúncios da Pizzaria Michelangelo di Napoli.

A propaganda é a arte dos quatro quintos inúteis prazeres. Ela entende de preencher de sentido os quatro quintos prazeres que alimentam a fome de viver.

E o quinto restante é trabalho para o algoritmo. A fórmula que calcula sua propensão racional a comprar e que recheia a internet de propaganda feia entende mais do quinto útil. Deixe com eles. Se você é publicitário, cuide dos quatro quintos inúteis. Não é pouco, não.

Quando tudo voltar ao normal — o “novo” —, é pouco provável que a gente esvazie as gavetas de fome de viver.

As frugais promessas do “novo-normal” ficarão no divã. De “novo-normal” o inferno está cheio.

Publicado originalmente na edição de 07/07/2020 do Meio&Mensagem

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