Falando com ninguém

Muita gente está vivendo a experiência de trabalho a distância pela primeira vez. Mudou ou não mudou? O que mudou, se mudou? O que não mudou, se pouco mudou?

Há mudanças que revelam mais do que modificam.

Antes da COVID-19 (AC), se alguém chegasse vestindo um boneco de Olinda, você diria um “oi” gozador ou passaria reto dando risada.

Depois da COVID-19 (DC), por que prestigiar quem entra sem câmera numa reunião remota?

 

AC, se alguém ligasse para você e não falasse nada do outro lado da linha, você desligaria.

DC, por que se preocupar com mudos invisíveis?

 

AC, quando alguém levantava correndo acometido por uma dor estomacal súbita, você não iniciava uma conversa com a pessoa.

DC, por que conversar com quem sumiu da conversa ou nem se mostrou?

 

AC, você já foi ao escritório de ressaca, sentindo-se péssimo, feio e malvestido. Nem por isso você se vestiu de boneco de Olinda pra disfarçar.

DC, por que as pessoas que ainda não tomaram banho, não se pentearam ou não se olharam no espelho desligam as câmeras dizendo: “ninguém merece me ver assim”?

 

AC, se alguém chegasse vestido de forma contrária aos seus padrões de qualidade, você respeitaria os critérios dessa pessoa e não deixaria o seu julgamento invadir a apreciação.

DC, por que o seu olhar crítico para o ambiente onde as pessoas se encontram mudaria o valor do que dizem?

 

AC, quando alguém era interrompido por uma gritaria interminável ou um barulho de furadeira, você encerrava a reunião.

DC, por que uma criança com fome ao lado do seu interlocutor remoto merece toda a calma e compreensão do mundo?

 

AC, quando alguém não saía do celular numa reunião, você repreendia essa pessoa educadamente, parava a sua explanação ou a fuzilava com olhar.

DC, por que você tem que achar normal as pessoas desviarem o olhar da câmera para responder uma mensagem?

 

AC, se alguém era interrompido numa reunião para resolver um problema, a pessoa em questão podia fazer um muxoxo educado significando “agora não, por favor”.

DC, por que você deve aceitar a desculpa “eu estava resolvendo uma pendência” quando alguém para de prestar atenção ao que está sendo dito para responder uma mensagem?

 

AC, você escolhia uma sala de reunião em função do número de pessoas.

DC, por que as salas têm que ser infinitas?

 

AC, muitos assuntos se resolviam em papos informais, num encontro, numa ligação, num tempo que não tinha sido previamente marcado.

DC, por que tudo precisa de uma reunião, e as agendas viraram um Tetris apavorante?

 

AC, quando alguém tinha uma conversa paralela numa sala ou mandava um bilhetinho, você achava chato, infantil, vulgar e desrespeitoso.

DC, por que você deveria achar natural quando claramente se percebe que a pessoa está de conversinha paralela? E por que você faz a mesma coisa instintivamente?

 

AC, se os pets podiam frequentar os escritórios, as pessoas pediam desculpas quando eles interrompiam uma reunião latindo desesperadamente.

DC, por que a gente tem que achar fofo tudo o que aparece na tela do computador mesmo quando é remelento e mimado?

 

AC, as pessoas mostravam os filhos no cafezinho, e era um prazer fazer bilu-bilu com uma foto.

DC, por que, de repente, as crianças têm que interagir com a gente nas reuniões remotas?

 

AC, você não podia ostentar felicidade e tinha um recato educado em relação aos seus problemas.

DC, por que você tem que fingir que se compadece com a sorte do próximo e disfarça quando está transbordando de alegria?

 

E por aí vai.

Será que as coisas mudaram mesmo ou tudo não passa de um pretexto para sermos o que somos, ou seja, mal-educados, preconceituosos, grosseiros e egoístas?

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