O engajamento tóxico

Se aparecer uma postagem na sua rede social favorita dizendo que as vacinas são eficientes contra determinada doença em 90% dos casos, você acredita tranquilamente. Mas, se meia dúzia de scroll abaixo, outro post afirmar que as vacinas podem causar infertilidade ou impotência, qual será sua reação? (Repare que a segunda postagem é menos exata – e isso não é sem importância.) É quase inevitável que você clique no link, se houver um, e/ou procure mais informações em alguma ferramenta de busca. Até aqui, tudo aparentemente indolor, a não ser pelo fato de que, em algum lugar, esse comportamento está sendo armazenado (ou vigiado). Na verdade, sabendo ou – mais provável – não sabendo, você acaba de acionar uma engrenagem bem pensada.

Acontece que, naquele lugar em que o seu comportamento de clicar ou buscar mais informações sobre a notícia que lhe deixou com curiosidade (preocupação ou pavor), uma máquina vai interpretar que você tem interesse em “vacinas que provocam infertilidade” ou simplesmente “fertilidade ameaçada”. Esse lugar, plataforma ou rede social, vai, portanto, atender a esse interesse e lhe propor, mais vezes, conteúdos relacionados a esses temas por um motivo prosaicamente econômico: a empresa que gerencia tais dados é remunerada por aquilo que o jargão chama de “engajamento”, ou seja, o interesse que provoca uma ação (clicar, comentar, compartilhar). Quanto mais “engajamento”, mais receita publicitária que remunera tanto a plataforma – “mera” intermediária (ou pelo menos, é a argumentação que esta usa para isentar-se de sua responsabilidade jurídica sobre a legalidade do conteúdo) – quanto o produtor do conteúdo (aquela pessoa ou empresa que criou um conteúdo sobre “vacinas com risco de esterilizar”).

Continuando o raciocínio, é muito fácil entender, então, que quanto mais engajamento um conteúdo tiver, mais dinheiro vai receber; quanto mais dinheiro receber, maior será o interesse em criar conteúdos engajadores. E, como os conteúdos mais engajadores são aqueles que tocam nossos medos e culpas, a própria lógica de remuneração das plataformas impulsiona a criação de conteúdos que acionam essa engrenagem. Não é ideológico, é simplesmente econômico.

Tem mais: existe outra lógica por trás desse thriller. Todo conteúdo é sempre cuidadosamente classificado pelos próprios criadores para que as máquinas – animais burros, mas capazes de aprender – possam interpretá-lo. Pois bem, se o conteúdo for bem classificado, por exemplo, na rubrica “infertilidade” ou “impotência”, o engajamento não somente garante mais dinheiro como ainda por cima assegura capacidade preditiva. Em outras palavras, quanto maior o engajamento, mais fácil será antecipar o que as pessoas “querem” ver e, assim, retroalimentar o sistema.

Resumo da ópera: por que existe interesse político em desacreditar a vacina (para ficar apenas nesse exemplo)? Simples: porque isso engaja mais. E, se engaja mais, é oportunismo “ideológico” e, indiretamente, “econômico” criar, divulgar e remunerar conteúdos sobre o tema.

A referência à vacina é ilustrativa (podemos falar de qualquer outro assunto – não necessariamente fake), e, embora seja um caso patente de desinformação, o estrago na opinião de milhões aconteceu. E o estrago na decisão política de muitos, por pouco, não ocorreu.

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