A coerência e a consistência fazem parte do códex sagrado da boa convivência social. Posicionar-se firme, inabalável, intransigente e com onipresença é a qualidade dos grandes, dos fortes e dos dominantes. A gente passa a vida tentando encontrar modelos arquetípicos, astrológicos, psicológicos ou “coachlógicos” que nos ajudem a nos encaixar, a nos posicionar. A gente molda nossa imagem à semelhança desses rótulos classificatórios. E, assim, evoluímos, fingindo-nos personagens de uma realidade exemplar.
É assim com as marcas também: elas precisam ter um posicionamento e disciplinar, com rigor, seu estrito cumprimento. Dizem por aí que uma marca tem até valores, personalidade e DNA. Deve ter manias também, vícios, pulsões, taras e abissais incoerências.
Gente? Como a gente? Que, certos dias, nem sabe se vai conseguir sair da cama? Que, após os torpores do despertar deixarem de rodopiar, já começa a se embriagar com as vontades, os desejos e as dúvidas?
Como dizia Agnaldo, marca é gente à procura de gente?
Digamos que a gente aceite essa distopia.
Pois bem. O que fazem os publicitários? Encarceram a gente em uma jornada bonitinha, com as regras de um game, limpa como um metaverso, quadrada como o queixo do personagem que pesquisaram que somos. E, então, é só colocar aquela outra gente, as marcas, no caminho dessa gente, a gente. Nesse mundo das planilhas e dos keynotes, essas gentes se entendem.
O problema é que, nessa ficção que é a vida de verdade, nunca acordamos iguais a como estávamos na véspera. Nunca. Nunca somos o personagem da véspera – nem na véspera. Nem sequer sabemos o que somos na véspera de amanhã.
Vamos também aceitar agora que o mundo muda mais do que mudava antes, que as coisas estão aceleradas, que antes era tudo mais parado, estático, sólido e inamovível per saecula seculorum. Vamos aceitar que as esfinges do passado morreram esfinges, e que, hoje, levantamos esfinges e deitamos belas adormecidas. E, entre um momento e outro, é uma corrida maluca, um after-hours, um parcours acidentado. Que um bilhão de coisas – pensamentos e impulsos, desesperos e desejos, conteúdos e propagandas – nos atropelam, em uma multitude de formatos e meios. E, nesse tohu-bohu imprevisível, a gente toma decisões de vida, de morte e de compras.
A gente é diferente a cada minuto que passa. E tudo que passa, passa diferente a cada instante. Como Alice e a Rainha de Copas, que correm sem parar, mas não saem do lugar, já que o mundo também corre sem parar.
Parece que essa ditadura do posicionamento pétreo – que, do alto de seus muitos anos, nos aprisiona – já era.
Por que isso faz sentido? Porque os públicos, há muito, alforriaram-se das jornadas de planilha. Porque os consumos de meios são de lua, anárquicos, imprevisíveis e complexos. E, principalmente, porque não importa mais falar de consumo de meios, mas, sim, de como estes estão sendo consumidos. Porque adianta pouco, cada vez menos, impactar um público que não está prestando atenção.
A atenção de um consumidor não se cativa mais com um posicionamento palha de aço, passe-partout, poção mágica. Isso funciona mal e, principalmente, gasta muito mal.
A atenção se conquista adaptando formato e mensagem à atenção, e não ao impacto. Quem manda é a atenção, e não mais a intenção da marca.
Este é um manifesto pela liberdade de criar “desposicionamentos” móveis, correntes, mutantes, camaleônicos, incoerentes, inconsistentes e livres, como a gente.