Amanhecer

Fui dormir com a cabeça girando como dínamo. Não sei como consegui dormir. Faróis acendiam – E se eu…– e apagavam-se assustados –Ah, não. Isso agora, não.

Os sonhos foram perturbados também, porém disso não lembro. Sorte minha.

Ao acordar, ainda sonolento, fui até o banheiro e, enquanto girava a escova na boca, lá vinha o dínamo novamente. Para frente, para trás, para o lado, de cima para baixo, de baixo para cima, nos cantos, no topo, na base. Quando a gengiva sangrou, dei um basta no suplício, olhei-me no espelho e desabafei: “Com essa cara, você vai longe, meu amigo.“

Abri o chuveiro. Eu, pelado num campo de tiro selvagem. As idéias começaram novamente a me metralhar sem dó: “Primeiro isso, depois aquilo, mas talvez aquilo outro antes, quem sabe”.  Lavei o rosto: “É só mais um dia, calma, como outro qualquer”.

Fechei a torneira e apanhei a toalha: “Não precisa ficar assim arrepiado, você vai conseguir”. Mas novamente era tanta coisa para resolver, fazer, agir, pensar.

“Vamos lá, coragem”.

Armei-me para a guerra.: “Essa camiseta? Melhor não. Aquele dia, lembra?, deu aquele azar. Essa daqui quem sabe? A calça combina ou não combina? Mais ou menos. Outra, vai. Também não. Mais uma. Saio, ou como algo antes? Não estou esquecendo nada? Vai ter trânsito? Está frio ou calor? Gasolina, tem gasolina no carro? Mudo de itinerário? Regar a orquídea que está morrendo? Vai chover? O que era mesmo que eu tinha planejado para a noite? Qual era mesmo aquela idéia? Que bagunça na mesa da cozinha. Arrumo ou não arrumo? Não seria melhor chegar mais cedo? O almoço. Vou almoçar hoje? E essa porta que não fecha direito? Preciso comprar comida para hoje ou janto fora? O que é isso? Vou trabalhar com essa mancha na calça? O cachorro, a ração do cachorro, ainda tem? Vai ser um bom dia ou um mau dia? Vou receber alguma boa notícia? Alguma grana inesperada?”

Era muito cedo ainda, mas o liquidificador de decisões me triturava o cérebro que já me escorria, pastoso, pelas orelhas e nariz.

Coloquei a mão na maçaneta, respirei fundo e abri a porta, gritando “Ao ataque!”

Armado até os dentes, dei um passo para frente, enterrando o sapato num enorme e fedido cocô de cachorro.

Quero ser um cachorro e cagar sem pensar.

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