Arumã, o aprendiz

Abaixo da cintura do mundo, tinha uma pequena aldeia igual a milhares de outras. Casinhas simples, ruas sujas, varridas por uma terra vermelha e uma grande moldura verde que isolava o lugar, que o protegia do contágio.

Ninguém sabia ao certo quando surgira aquele aglomerado de pessoas. Era provavelmente muito antigo como atestavam as rugas fundas que furavam o muros de pedra de uma ruína anônima. Mais velho ainda do que os fósseis que tropeçavam nos campos secos.

Não havia luz elétrica nem saneamento nem asfalto. Só o sol de dia, a lua de noite e os misteriosos miasmas da selva.

O povo daquela aldeia era composto de homens, mulheres de variadas idades e ocupações. Inclusive o venerando ancião, Arumã. Asim como sua cidade natal, o homem não tinha idade definida, mas era mais velho que tudo o que, de memória, os habitantes eram capazes de enumerar. Mais velho que o grande baobá da encruzilhada. E, já que Arumã não caçava nem cultivava mais, não cozinhava nem paria, não subia nas árvores, nem mesmo observava as meninas tomarem banho no rio, ele era o conselheiro, o mago, a autoridade suprema em casos de litígios domésticos, comunitários ou divinos.

Uma dia, Arumã estava na soleira de sua casa, enquanto várias jovens amassavam seu cabelo e passavam os dedos em forma de pente na sua longa barba. De olhos semicerrados, o velho divagava sob o efeitos dos deliciosos afagos. A rua estava quase vazia, apenas alguns homens que cochilavam entre as raízes de uma árvore. Estava muito calor, não chovia fazia muitos dias e o ar  empoeirado distorcia o horizonte.

De repente, Arumã despertou de sua letargia, pôs-se de pé e levantou os braços para o alto latindo como um cão, uivando como um lobo, palrando como um papagaio, gritando como uma carpideira. As aias assustadas, ajoelharam-se beijando o solo. Os preguiçosos que dormiam por ali correram para socorrer o velho de sua histeria repentina.

Arumã correu, então, para o centro da rua e pôs se a chamar, um após o outro, pelo nome, os habitantes da cidade. A chamada demorou um pouco, mas, finalmente, todos apareceram à sua volta.

Ninguém jamais havia visto Arumã tão enfático, desperto e assustado. A população da pequena aldeia esperou muito tempo, até que, finalmente, ele começou a falar.

“Velho, velho, velho. Eu vi. Eu vi com esses olhos, ouvi com essas orelhas e senti com esse peito. Eu me lembro. Me lembro da floresta, da sombra do baobá crescendo na encruzilhada, do grande muro branco. Eu sabia. Eu deitei mais de mil vezes com a floresta. Infantei esta placenta que nos protege. Do mundo velho, cansado, preguiçoso. Dessa coceira que se espalha além.

Mas agora estou velho, velho, velho e vou morrer. Desabar no pó. Deslizar para o outro lado, e vocês vão ter que aprender. Aprender. Aprender.

Aprender que tudo o que se vê, não passa de uma revoada de coruja na madugada. Aprender que tudo que se ouve é pouco mais que uma estrela tremelicando na tempestade. Tudo que se sente some na lama. Aprender que o que se leva da vida, dessa vida de gente, de cão, de papagaio e baobá é um soco na chuva, um chute no vento, uma dança sem par.

Aprender finalmente o que aprendi agora, depois de ter feito tanto, lutado tanto e vivido tanto. Aprender que o que vemos, ouvimos e sentimos não é de verdade. Tudo isso a nosso redor, vocês, a floresta, o mundo lá longe rugindo preguiçoso como um leão não passam de uma neblina colorida.

Então, minha gente, já que é assim, já que vou morrer e já que tudo é uma grande macacada, vamos gozar até não mais poder.”

E foi assim, feliz, no meio de um batuque de festa, que Arumã morreu. Como um pingo que cai, como uma risada que ecooa na floresta.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Connect with Facebook