Cadê Deus?

“É. Deus dará. Deus perdoa. Deus ajuda. Deus tem poder. Deus está aqui e ali. Nas linhas tortas, na curva, na esquina. Deus isso, Deus aquilo. Deus faz e acontece.”

Assim pensava Ambrósio, pernas soltas no batente, a cabeça inclinada, afogado na cachaça.

Ele bebera demais da conta. Foi vindo, foi sem querer. E agora as vistas turvas flutuavam.

Era noite. Era clara a noite.

Deus era muita coisa. E Ambrósio vivia com ele. Às vezes, ele vinha fortão e lhe mostrava o dedo: “Não faça, não chore, não, não, não”. Outras, era um leão que lhe dizia “Você pode, você deve, você consegue”. Ou, ainda, meladão: “Boa sorte, boas horas, bom, você é bom”.

Mas, quase sempre, Deus só olhava. Ficava ali, por ali mesmo e observava com os braços cruzados. Era nesses momentos que Ambrósio fazia de tudo para chamar a sua atenção. Nessa horas, Ambrósio bebia.

Deus não ligava, não fazia nada, apesar de todas as bobagens. Por isso, Ambrósio bebia.

Naquela noite, mais uma vez, Deus estava lá, bunda com bunda.

Mas era tarde demais. Muito tarde da noite. E Deus teve que ouvir Ambrósio.

“Sabe, você fica aí, está sempre aí, mas eu queria te ouvir, já que você é tão tudo isso que falam. Você é preguiçoso, isso sim. Fica perdendo tempo com bobagens, com a chuva, com o sol, com as nuvens. Comigo. Mas olha lá, olha só. Tem gente sofrendo, tem gente fazendo coisas horríveis com outras gentes. Você não vê? Por que não faz nada? Eu não te entendo. Nem quero. Nem posso. Enquanto isso, eu bebo. Só consigo beber de ver tanta merda. É tudo o que posso fazer. Beber para não ver. Se você é tudo isso, sai dessa preguiça aí. Vai lá, ajuda quem precisa. Não deixa que coloquem palavras na sua boca. Não deixa não. Ficam falando coisas. Dizem que você é fortão, leão, meladão, mas é tudo mentira. Vai lá e arrebenta. Não deixa isso acontecer. Porque enquanto isso, tem gente que chora, que nem morrer pode. Tem gente que nem sorrir consegue mais. E porque não sorri, nem sofrer sofre. Como eu. Por isso é que bebo. Porque você fica aí me olhando e eu nem sofro nem nada. Nem sei.”

Era tarde da noite, e Ambrósio falou tudo. Aquele monte de nada e Deus ouviu, bebeu um trago e ficou ali, olhando o bêbado, só.

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