Daqueles dias

Acordei certo de que tudo ia dar certo.

Não estava atrasado como de costume, o dia era luminoso, não topei com o dedinho do pé no criado-mudo e não faltava papel higiênico nem pasta de dentes no banheiro.

Não caiu uma única gota gelada na pele, quando abri o chuveiro, não precisei ir todo molhado até o armário, para apanhar sabonete, tampouco senti dificuldade em ensaboar as costas, nem caiu xampu nos olhos.

A lâmina do barbeador era nova em folha, não me cortei e meu rosto ficou lisinho como bunda de nenê. Não havia sinais de olheiras, nem descobri nenhuma ruga nova na pele do rosto. Até me achei bacana no espelho.

Foi fácil escolher a camisa preferida e a calça nova que estavam impecavelmente passadas e sem nenhuma mancha secreta que só vemos depois de não poder mais trocar e aturamos o dia inteiro.

Fui até a cozinha preparar algo para comer. Até fome senti. Não quebrei xícara, não derramei leite na pia, o lixo não estava cheio, havia até suco de maracujá na geladeira. Milagre.

Não precisei voltar várias vezes `a casa para procurar a chave do carro, a carteira, o livro, nem fiquei em dúvida um único momento sobre a minha aparência, me obrigando a mirar-me novamente no espelho.

Abri a porta da casa e não enfiei a cara numa teia de aranha, não bati a porta do carro na coluna arrancando mais um pouco de tinta, aquele chato daquele apresentador da minha rádio favorita estava de férias e não latiu suas obviedades no meu ouvido.

Não precisei fazer várias manobras para sair, não tomei susto nenhum, porque ninguém passava na calçada ameaçando sua pele com meu descontrole de direção matinal. Até o primeiro farol da minha rua estava verde e, mesmo passando rápido para não perder essa chance, não raspei a barriga do carro na valeta.

Ninguém me fechou no trânsito, não havia guarda na esquina, quando estacionei na faixa de pedestres, não havia pedinte na rua me obrigando a recusar a oferta da bênção divina em troca de alguns tostões.

Cheguei rápido ao trabalho, sem solavancos, sem atropelos, quase sorrindo, quando tocou aquela minha canção favorita, de quando eu era adolescente e estava com o coração anestesiado por uma conquista amorosa perdida nas dobras da memória. Achei a minha vaga favorita desocupada, estacionei com um único torniquete de braço, e a música terminou exatamente na hora que desliguei o carro.

Desci do carro e fui trabalhar, certo de que o dia seria o mais certo dos dias.

Mas não foi, porque era segunda-feira, dia da padroeira do país, feriado nacional.

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