Fúlvio e o pinho

Todos estes anos, de manhã, de tarde, de noite, na chuva ou no sol, na felicidade ou na preguiça, ardendo de frebre ou dormindo como um justo, Fúlvio tem vivido.

Quando abria os olhos, sacudindo a poeira dos sonhos, lá estava o mundo nem sempre igual, nem sempre diferente, como antes e como seria depois. Ele também estava lá, um pouco mais vivo. Como seu guia lá fora, um pinheiro banal que ele plantara um dia. A rotina de olhar para o verde corajoso, pela janela dava a Fúlvio a necessária força para permanecer náufrago na vida.

Mas o que esse homem comum sentia antes de afogar-se na noite, antes de dormir, era uma certa náusea. Numa pausa de conformado desespero, turvava-se-lhe o futuro. Fúlvio debatia-se então e agarrava-se nas bóias do passado. E à medida que os anos passavam, elas se esfacelavam em mil pedaços esparsos.

O pinho crescia, passava já do telhado, com vivacidade renovada. Fúlvio desperto era um com ele, até quando seu vulto na janela se dissipava à noite.

Uma noite, Fúlvio sonhou com um mar poluído de objetos desinfetados pela maré. Tinha de tudo: baldaquins, sanitários, gargantilhas, marquises, escapulários, rostos, fígados e apêndices, pagodes despedaçados, pavimentos espelhados, praças aflitas e praias virgens, ciclopes mudos, marfins ocos, caudas de fogo, olhos marejados, suspiros eternos, meteoros cinselados, dores de prazer e muitos outros dejetos do passado.

Uma noite, na última noite, Fúlvio viu passar o pinho que fora um com ele.

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