Baile das Índias Orientais

To little Gary

No canto da esquerda, entre Balzac e Perrault, ele vivia, aprumado, mantendo a guarda sob o capacete vermelho, mãos na espingarda. É que ali, logo atrás do pequeno relicário de madeira, dormia seu tesouro encantado num cofre dourado. Marechal sempre controlara, anos a fio, sua curiosidade. Mas a disciplina de quartel não permitia tamanha indiscrição e o cofre permanecia selado. Ainda naquele pequeno espaço, onde acotovelavam-se outras histórias, residiam uma bala de vidro, um delgado caçador africano e a luneta de ópera.

No extremo oposto, apoiada em pesados volumes, Paloma soluçava.

E logo acima, três cavaleiros Jedi duelavam. Abaixo, um buda sereno contava as pétalas da flor de lótus que acolhia suas nádegas. Mas no edifício também residiam outros tantos hóspedes, esquecidos, solitários e estáticos. Lembranças, amuletos, e retratos, bibelôs quebrados, brinquedos enferrujados. Objetos tristes entre livros cerrados.

Uma noite. Era noite sim. Talvez fosse um ária famosa de Haydn que despertou. Fez-se também uma luz que, flutuando nas fantasias, espalhou a excepcional nova. À noroeste a agitação crescia. Um clima de arrumação reinava.

Uma fada comandava: “Poltronas enfileiradas, piano afinado, mesa posta, lustres brilhando de mil fogos do Olimpo. Vamos logo com isso, os convidados vão chegar”.

No centro, bem no centro, a velha preparava o baile.

Aos poucos, os vizinhos debruçaram-se pelas prateleiras. O que a velha estava aprontando?

Reclusa em sua fantasia de porcelana, a fada convidava para o baile da Companhia das Índias Orientais, com pompa e fartura. O salão era redondo, ornado de arabescos azuis e mil detalhes floridos em relevo dourado.

Marechal saiu de sua vigília, Paloma secou as lágrimas com o punho de pena. E com grande esforço, venceram os obstáculos da natureza rígida dos objetos. Arrastando-se por entre páginas amareladas e memórias náufragas, hipnotizou-lhes o encantamento.

Logo se viram, ao entrar no baile. Paloma, tímida, sob uma guirlanda azul; Marechal, imóvel, sob outras tais.

Sorriram, piscaram, enrubesceram. Aproximaram-se, cochicharam impronunciáveis resmungos, tocaram-se. E rodopiaram sem fim.

Amaram-se, uma noite para sempre, na grande estante errática da sala.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Connect with Facebook