A estrada

Já viajávamos fazia muito tempo, no meio da floresta. A estrada era uma reta só que se estendia solitária e sem fim, quebradiça, traiçoeira, cabotina, velhaca. Quando chegava a noite, aninhávamo-nos num canto protegido, ao pé de uma árvore, agarrados, para enfrentar os gritos da escuridão. E, no dia seguinte, novamente a estrada desenrolava-se a nossa frente, confundindo seu horizonte ocre com o sol. A prosa sofria, mas o motor tagarelava numa monodia grave. Por vezes, um animal atravessava a pista ardente, para aconchegar-se novamente na sombra úmida do matagal. E mais estrada, estrada deserta, a estrada amaldiçoada.

Foi, então, que enlouquecemos. Ou talvez tenha sido real. Nunca saberemos, e pouco importa.

Atravessamos uma enorme clareira de pedra. A vegetação sobrevivia nas frestas das rochas, enrugando-lhes as encostas. O céu já ia escuro, e decidimos pousar sobre uma  pequena elevação plana. Estava frio. Juntamos alguns gravetos e ateamos fogo. Ficamos ali, observando as chamas débeis, lambendo nossas mãos cansadas.

E eles surgiram. Silenciosamente. Pelo menos ninguém se dera conta de nada. Mas quando levantei o rosto, eles estavam lá, à nossa volta, cercando-nos em roda. Ficamos paralisados, como se tivéssemos perdido os movimentos por um tempo que me pareceu interminável.

Num determinado momento, um deles desprendeu-se do círculo e caminhou em nossa direção. Quando ele estava a menos de um metro de nós, jogou um pano sobre a pequena fogueira, e não vimos mais nada. A próxima memória foi de eu ser agarrado pelos braços e pernas e levado com o rosto para cima, sob o céu escuro, fartamente estrelado.

Não me lembro de mais nada depois disso. Minto. Lembro-me sim, mas, ainda hoje, na soleira do grande esquecimento, do grande asilo, arrepio-me todo. Nunca descobri quem eram aquelas pessoas, que lugar era aquele. Mas, lembro-me, do preâmbulo da morte.

Uma grande festa, uma dança frenética, uma orgia. Uma bebida amarga e minha cabeça em rodopio, num torniquete de sensações. Meu corpo inteiro projetado para o alto, girando em meio a uma gigantesca mandala colorida. De todos os lados, o solo da floresta pulsava lentamente, ritmato pelo meu coração. Evoluí por ali, sem noção do tempo, do corpo.

Foi um indizível contato com as mais profundas de todas as emoções: a emoção de derramar-se languidamente pelos barrancos sem fronteiras do universo.

A estrada, a estrada de novo. Nua, crua, monótona, seguiu depois disso. E ainda segue na minha frente. Por quanto tempo?

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