A guerra de todos os dias

Uma aranha diminuta descia do teto, de rapel. Hábil e silenciosa ela se fixou na frente dos meus olhos. Ela estava de capacete e colete de segugança. Da sua cintura, pendiam martelos e ganchos de escalada. Depois de me observar por alguns instantes, resolveu continuar a desenrolar sua corda de seda até a mesa. Bebeu um gole do cantil de alúminio e jogou-se do alto da mesa. No meio do caminho, um pára-quedas rosa e branco abriu-se, amortecendo sua queda. No chão, puxou um canivete suíço e cortou as amarras. Saiu, então, em disparada, de testa abaixada. Na divisa entre duas pedras lisas do piso, um jipe sem capota esperava. Ela pulou na caçamba e o carro arrancou, fazendo muita fumaça. Ela foi seguindo pelo rejunte do piso, dobrou à esquerda e depois à direita. Fez sinais com os faróis e entrou numa frestra.

Fui atrás.

Sem me perguntar como é que eu poderia entrar naquele diminuto túnel, me infiltrei rapidamente. A aranha estava com pressa. Corri bastante, mas, quando percebi que não conseguiria alcançá-la, uma moto barulhenta adentrava o túnel. Saltei na garupa do grilo padeiro que estava atrasado para suas entregas. Segurei na sua cintura e em pouco tempo estávamos à altura do jipe. Agradeci ao grilo, ele me sorriu e pulei no banco do carro. A aranha se assustou um pouco, mas logo que percebi seus distintivos nos ombros, bati continência e ela sorriu. Pelos meus cálculos, devia ser uma aranha coronel, provavelmente da divisão de fuzileiros navais pára-quedistas.

A conversa estava boa. Ofereci-lhe um cigarro, ela agradeceu e, quando chegamos no final do túnel, avistamos um imenso tropel de besouros atravessando lentamente a estrada. Perguntei-lhe onde ela ia assim com tanta diligência. Ela deu uma sonora gargalhada e respondeu que iria aonde eu bem entendia. Eu lhe disse, então, que eu não tinha destino definido, que ficara curioso com sua pressa e por isso a seguira. Ela riu novamente agitando seus braços. Os besouros já terminavam de atravessar a estrada, um peão montado num cascudo tocou seu berrante, e o jipe acelerou novamente.

A essa altura, já tínhamos ficado bons amigos. Ela me ofereceu algo para beber. Havia muita poeira, e minha garganta agradeceu o frescor daquele aguardente com gosto de menta. Lá pelo meio-dia, estacionamos o carro numa moita de trevos que se infiltrava entre duas placas de cimento. Descemos, esticamos uma toalha verde e branca no chão e, deitados de lado, comemos pés de mosca empanados, olho de mosquito em calda e asa de barata com farofa de antena de formiga.

Conversamos, contamos piadas, zombamos de uma fileira de cupins-escravos que carregavam uma guimba de cigarro, jogamos badmington e pôquer. No meio da tarde, fomos até a bica que despencava uma água cristalina do telhado, tiramos a roupa e brincamos de nos molhar. Cochilamos ao sol e partimos no final da tarde, enquanto a luz dos lampiões da rua tingia o asfalto de roxo.

Foi um dia que cabulamos com prazer. Eu, escritor sem história para contar, e ela, aranha fuzileira naval pára-quedista, sem guerra para lutar.

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