A propaganda é conversa fiada

Quando os pioneiros sonham com um novo mundo, a fantasia é uma mistura de desejo e delírio. Não existe projeto sem essa química. O desejo encontra satisfação no delírio e por isso o novo sai das cabeças para as mãos.

A Internet prometeu muito. Prometeu dar voz a todos, prometeu compartilhar conhecimento, prometeu desburocratizar o mundo, prometeu que os pequenos seriam ouvidos. Desejávamos isso, e o que parecia delírio, aconteceu ou está acontecendo.

Também acreditávamos que a Mídia e sua costela – a Propaganda –  iriam deslocar-se de estruturas verticais e autoritárias, para outras ecologias em redes complexas e auto-sustentadas. Que os grandes grupos de mídia, controladores da mensagem e da difusão, iriam implodir de dentro e que os grandes grupos de propaganda, criadores dos formatos e das narrativas iriam desmembrar-se. E que tudo isso ia acontecer porque essas estruturas foram criadas em outro contexto de sociedade e que elas são vítimas de seu sucesso.

Embora isto ainda não tenha acontecido, dá sinais claros de progresso.

A transformação da mídia é a mais aparente. Não faz (mais) sentido que aquele que cria a mensagem ou o conteúdo seja também o único ou exclusivo detentor da difusão porque essa relação é promíscua em um contexto aberto e de acesso universal à informação, entretenimento e conhecimento. Essa concentração de poder – conteúdo e distribuição – é inaceitável.

Por outro lado, a doença dos grandes grupos de propaganda é menos visível porque eles operam nos bastidores e, afinal de contas, são submissos obligés dos protagonistas da mídia.

A indústria da propaganda já entendeu que suas estruturas não se justificam economicamente e por isso, consolidam e integram as operações numa velocidade que beira o desespero por um lado, e por outro, multiplicam os serviços para catar as migalhas das verbas que administravam e que hoje foram automatizadas, incorporadas ou assumidas pelo contratante ou por parceiros mais especializados e ágeis. Mas isso é apenas um reflexo de afogado: agarra-te ao primeiro toco.

A transformação é mais profunda e transcende as estruturas.

É a própria ideia de que é possível convencer, aliciar e viciar com mensagens superficiais, propagadas em massa ou segmentadas, a passivos consumidores ávidos por estímulos emocionais que deem sentido a suas existências medíocres, que deixou de funcionar.

Essa hipocrisia festiva está custando caro demais a quem paga a conta, o próprio consumidor.

Essa cortina de fumaça para as mentiras que ela acoberta, retroalimenta e encoraja, está desmascarada.

Em quem você confia mais para te influenciar, recomendar ou aconselhar? Uma mensagem divertida ou emocionante, bem produzida e sexy feita para tocar os mais profundos instintos de milhões de dóceis ovelhas ou as mensagens que você trocou com aquele amigo que você admira, curte ou acredita?

Antigamente, a questão era econômica: como não era possível individualizar, era necessário padronizar, encontrar suportes (mídia) e formatos (propaganda) que permitissem transmitir mensagens “mínimo denominador comum” ao o máximo de pessoas, de forma economicamente viável. Tinha-se que inventar a mídia de massa, tinha-se que inventar a propaganda, tinha-se que inventar o consumo de massa.

No entanto, da mesma forma que a mensagem de massa ainda convence, a mensagem individualizada e difundida peer to peer através das mais variadas redes ganha um poder de influência inquestionável e exponencial. E talvez mesmo não haja substituição e sim complementaridade, mas em outras bases.

É evidente que ainda estamos vivendo uma espécie de desajuste diante de uma mudança tão profunda.

Segue havendo uma espécie de controle concentrado de poder na mão dos poucos novos parceiros do butim deixado pela mídia pré-aposentada. Mas a força que desenvolvem imana exclusivamente do sufrágio livre dos usuários, numa competição transparente de competências e não é baseada em favoritismos e interesses opacos, como foi com a mídia de massa. Isto por si só já representa uma enorme diferença.

Por outro lado, nas chamadas novas mídias, observa-se uma dinâmica nova de aprisionamento das opiniões em função das próprias dinâmicas de elaboração das redes de cada indivíduo – só convido e aceito aqueles que me são simpáticos ou parecidos – e isso estreita de forma provinciana os debates.

Mas nenhuma dessas questões fundamentais interfere na dinâmica da transformação radical da mídia e da propaganda em curso. É cristalino que a mídia de massa e seu fiel consorte, o negócio das agências de propaganda de massa, estão se debatendo em agonia.

Antes tinha que propagar o mínimo o que não dava para conversar o máximo. A mídia de massa faz terraplenagem, saneamento, infraestrutura. Trabalho pesado e sujo. Mas quem garante a sintonia fina, o foco, a sedução é a conversa interpessoal.

Porque é exatamente isso que a Internet está fazendo com a gente, tirando-nos dos rebanhos em que ruminamos por tanto tempo e ressuscitando-nos como indivíduos libertos e onívoros.

One thought on “A propaganda é conversa fiada

  1. Perdoe-me a discordância e o pessimismo, caro amigo e colega… não nego a revolução que as mídias digitais representam, longe disso (fui me especializar no tema, lato sensu e tudo, acredita?), mas acho que elas só estão nos colocando para ruminar em rebanhos diferentes, talvez mais barulhentos. Anos atrás fui a uma palestra do Gil Giardelli na ESPM, em que ele dizia, otimista pra caramba, que as redes sociais iam “espalhar a bondade”. O auditório me pareceu algo escandalizado diante da minha descrença, na hora das interações lá com a plateia. Um bom tempo – e muitos comentários de haters em blogs e sites de notícias depois – acho que eu estava certo e ele no delírio. Ou seja, a cara feia da humanidade, e a bonita também (mas bem menos), refletem-se caudalosamente pelas mídias digitais, e o que poderia ser discurso individualizado torna-se reverberação – em massa! – das mesmas vulgaridades e preconceitos de alguns caudilhos e muitos acéfalos.

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