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O português dos modernos

Não é fácil acompanhar a velocidade de inovação dos gadgets que nos servem de esqueleto existencial. Essas novidades ocupam o centro do desejo contemporâneo.  Moda, tecnologia, decoração, viagem, etc, e para justifucar tantas presumidas mudanças de comportamento, atitudes, valores, precisamos inventar também termos.

Qualquer pesquisa ou publicação que quer impressionar, precisa cunhar palavras novas, seja abusando dos prefixos (o que está na boca de todos os bem aventurados profetas da modernidade é “trans”), seja germanificando o português, com a juxtaposição de várias palavras (até porque usar palavras mais precisas em outras línguas ficou fora de moda).

Parece que todo o esforço e busca pela simplicidade, minimalista e econômica, é saudosista e o pecado mortal é tentar encontrar paralelismos com o passado. Não, tudo é inequivocamente COMPLEXO e NOVO.

Todo mundo quer se “adaptar” às transformações como se essas mesmas “transformações” fossem independentes. Como se as “mudanças” fossem paridas por geração espontânea, pré-programadas e sempre acelerando. Temos que correr atrás, sempre em débito com a nova-novíssima-nova palavra.

Mas o novo sempre foi fator de uma necessidade genuina e humana. Nunca de uma projeção. Menos ainda de uma compensação.

Queremos fazer bonito, mas na maioria das vezes é ridículo.

O primo de Marília estava certo: “comprei uma bota nova, lindona, pra fazer bonito na sua festa. Mas acabei colocando essa que é essa que eu aguento, né?”

E se os festivais permitissem fantasmas?

Num filme de Méliès, um carro desgovernado desce uma ladeira, em direção a uma casa. O carro acelera cada vez mais e adentra a residência, derrubando as paredes para o espanto de uma família na sala. Na seqüência seguinte, o mesmo fato é filmado de dentro da sala onde a família conversa, quando repentinamente as paredes são derrubadas pelo automóvel.

Era assim que esse precursor contou a história. Dois pontos de vista justapostos, com o tempo revivido duas vezes. A linguagem cinematográfica evoluiu para preservar de alguma forma a passagem do tempo, e a cena hoje seria contada com alternância dos dois pontos de vista.

A cena de Méliès parece esquisita, ou na melhor das hipóteses, uma narrativa, assim contada, poderia ser vista como uma moderníssima revolução de algum cineasta pirado afim de criar frissons cerebrais. Mas para as pessoas que assistiram a estréia do filme, o filme não parecia bizarro, nem moderno, apenas justo e compreensível.

As pessoas não eram mais ou menos burras ou instruídas. Foi a linguagem que evoluiu, as pessoas nem tanto.

A propaganda não tem muito espaço para discussões de linguagem. Experiências de narrativas não são muito bem vindas porque incorrem em riscos de falta de compreensão. E tudo o que a propaganda não pode se permitir é não ser entendida pela maioria. Talvez por isso, a linguagem publicitária está sempre pegando carona no vácuo dos sucessos inquestionáveis de todas as outras formas de comunicação, em particular o cinema e a literatura.

Talvez por isso também, a propaganda sofra de paralisia experimental. A termo, isso aprofunda o hiato entre a linguagem da rua e a publicitária. Não é necessariamente porque os clientes anunciantes são conservadores, ou os criativos simplórios, que a propaganda não evolui na velocidade do cinema por exemplo. É também e principalmente por falta de espaço de experimentação livre, sem compromissos comerciais.

E se os festivais fossem esse momento? E se os mal fadados fantasmas cumprissem exatamente esse papel?

Um concurso que premia aquilo que está na rua é, no limite, desnecessário, se considerarmos que seu sucesso já foi avalizado por aquilo para o que ele foi contratado: ajudar a vender. Não seria mais legítimo e principalmente útil se os festivais que tanto massageiam os egos, fossem deliberadamente abertos à experimentação de linguagem, sem hipocrisia?

Talvez assim, um dia, a propaganda pare de chover tanto no molhado e evolua. Talvez, um dia, aqueles que querem experimentar fiquem menos frustrados e legitimamente recompensados.