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Porque uma ideia é uma ideia

À maneira dos tímidos, ele entrou lentamente, com as mãos nos bolsos e o olhar varrendo o carpete. O encontro reuniu em volta da mesa muitos potentados que gesticulavam e conversavam com animação antes de iniciarem os trabalhos. Ele estava cansado, mal tinha conseguido dormir na véspera. A reunião começou. Focado, ele ouviu, mais uma vez, a construção cuidadosa do raciocínio.

Como sempre acontece, a história tem início com um plano aberto, descortinando uma enorme paisagem. E, aos poucos, o olhar focaliza as formas, os gestos, os humores. Começa descritiva e detalhada. Muitas informações. Organizadas. Minuciosas. Ele sabia todas. Todas aquelas coisas. Todos aqueles inventários.

Em todas as histórias, também há muitos caminhos. Eles se perdem no início e se organizam no final. A história, como todas, tem inúmeros obstáculos, intempéries, acidentes. Ele conhecia todas aquelas etapas. Todas as alternativas. Os desdobramentos. Tudo.

Uma história é feita de picadas na floresta escura dos dados. Toda história tem um final. E o final era dele. Só dele.

Ele se levantou, olhou para a plateia que segurava o fôlego. Com cerimônia, projetou na parede uma enorme planilha, cheia de quadrados – em cada quadrado, mais quadrados. Muitos quadradinhos. Muitos. Nem cabiam na parede. Precisava de mais parede. E ele foi contando um por um.

“If this, then that; if this, then that; if this, then that.” “Se isto, então aquilo” por mais de uma hora.

Durante uma hora, ele disciplinadamente preencheu todos os quadradinhos, um por um. Se for assim, assado. Se fulano, assim. Se beltrano, assado. Primeiro assim, depois assado. Depois de assado, assim de novo. Assim e assado. Assado e assim. Fulano, beltrano e sicrano. Se nem fulano, nem beltrano; então, nem assim, nem assado. E se nem assim, nem assado. Outro assim, outro assado, outro fulano, outro beltrano, outro sicrano.

Ninguém dormiu na reunião. Todo mundo prestou atenção. Todos os dignatários estavam satisfeitos.

Foi então que, do fundão do seu torpor pós-coito, lá no fundo, bem no fundo, uma ideia despertou – singela, inocente, pura. Uma ideia que, como todas as ideias, nasce de muito pouco: uma fresta na parede, um ventinho que arrepia a nuca.

Como todas as ideias, ela era tímida e, com as mãos nos bolsos, entrou lentamente: “E se… e se, em cada quadradinho, cada um desses quadradinhos, em todos os ‘assim ou assado’, a gente colocasse uma fórmula?”. A ideia continuou, com o olhar varrendo o carpete: “E se, por detrás de cada fulano, de cada beltrano e também dos sicranos, a gente colocasse um robozinho?”. E, para arrematar, em uma única proposição, acrescentou: “E se a gente nem precisasse de ninguém para fazer esse briefing?”.

Todo mundo olhou para ele fixamente. E todos, de clientes a chefes, ficaram extasiados.  Aclamaram-no com o sonoro aplauso dos justos.

Para ele e outros criativos, aquela ideia foi o fim da picada.

Coluna originalmente publicada no Clube de Criação de SP em 05/09/2019

Storytelling farewell

Contar histórias estrutura a existência dos seres humanos desde que descobriram que ela era trágica e sem sentido. Contar histórias é a única salvaguarda que temos contra a aleatoriedade da vida. Mas a forma como são contadas caracteriza as épocas em que vivemos.

Quando a catedral de Paris ardeu em chamas, além da invasão de posts nas redes sociais com lembranças de viagem profundamente comovidas, o baú da história foi vasculhado em busca de significados que ainda não tinham sido explorados por aquele desenho animado da Disney. Muitos lembraram, então, do livro de Victor Hugo.

Vale dizer que, até o século XIX, a catedral estava bem abandonada, suja e triste. Ninguém dava muita bola para aquele monumento caquético e, considerado por muitas pessoas instruídas e de bom gosto, como cafona.

O romance de Victor Hugo reviveu e projetou a glória do velho templo. Foi graças a esse livro também que, anos depois, um arquiteto poderoso e excêntrico, Viollet-le-Duc, resolveu restaurar a catedral e acrescentar-lhe uma vaidosa fantasia: a famosa torrezinha, desenhada por ele. Foi essa excrescência gótica que desabou no incêndio, levantando a consternação de milhões de celebridades anônimas, atônitas pela perda irreparável de um patrimônio imemorial da humanidade.

Um dos capítulos do romance chama-se “Isto matará aquilo”. A narrativa se passa no século XV, quando nascia o livro impresso (não à toa, a Bíblia foi o primeiro deles), iniciando a popularização do maior veículo de transformação social e cultural da humanidade. Até aquele momento, eram as igrejas que educavam as pessoas, contando-lhes histórias da Bíblia, dos santos, dos reis. Era naquelas esculturas, naqueles vitrais e naqueles símbolos que os iletrados aprendiam o sentido da vida – ou, pelo menos, o sentido que outros queriam dar às suas miseráveis e incompreensíveis existências. Mas os livros mataram as narrativas de pedra e vidro. Graças a eles, outras formas de contar nasceram – com palavras – imortalizadas na escrita.

Depois, veio o cinema, que matou um pouco o livro. Em seguida, a televisão, que o matou mais um pouco. Então, vieram os formatos digitais: as redes sociais, que jogam todos os dias sua pá de cal no livro.

Isto aqui – a internet – matou aquilo – o livro.

Com os livros, mergulhávamos nos desenvolvimentos narrativos, nas vidas intrincadas dos personagens, nas descrições de sentimentos e contextos. Um livro não podia ser penetrado a qualquer momento. Seria incompreensível. Era preciso deitar-se com a história e dividir intimamente todos os seus meandros para sair transformado. Nenhum resumo ou resenha dá conta das quase um milhão e trezentas mil palavras de Em busca do tempo perdido de Proust ou das quinhentas mil de Guerra e paz de Tolstói.

Mas isso, a internet matou.

No nosso século, vivemos envoltos em excesso de estímulos, convites, solicitações, interações. A internet não liberta, gruda em suas infinitas teias. E onde há excesso, há falta de foco, atenção, aprofundamento e tempo. Sem tempo, tudo o que exige concentração incomoda, atrapalha.

Também essa forma de contar histórias, com narrativas complexas, intrincadas e vagarosas – Thomas Mann leva dezenas de páginas para descrever os sete minutos necessários para medir a temperatura do herói de A montanha mágica – não sensibiliza mais ninguém. O culto das aparências e da espontaneidade – irracional, límbica, visceral – seduz mais do que a timidez de Hans Castorp, que passa trezentas páginas para dizer “oi” à moça por quem se interessou no sanatório. Um minuto em qualquer aplicativo de encontros arranca paixões e entregas tórridas.

No nosso tempo de agora, a nova forma de contar histórias é a interjeição, o emoticon, o meme totalizante. No tempo de hoje, a gente exclama e se gosta imediatamente, sem crítica, sem filtro, e ama fácil. Odeia fácil também. A gente conta histórias em poucos caracteres e parco vocabulário. A gente substantiva pouco, privilegia o transitivo direto e capricha na adjetivação superlativa. A gente gosta de contar a nossa história, de preferência em imagens evocativas com captions entusiastas.

Na internet que matou o livro, muita gente virou autor. Praticamente todo mundo. As histórias não morreram; pelo contrário, difundiram-se, espalharam-se: a história do estacionamento lotado, do buffet infantil barulhento, da fila do show, do carrinho que “me atropelou sem dó na saída do supermercado”. Tudo vira história – as boas, as ruins e, principalmente, as apreciativas. Todo mundo tem algo para contar sobre o governo, a bolsa de valores, a eleição do presidente que adora contar histórias em 140 caracteres. Todo mundo escreve e todo mundo responde com outra história. Milhares, milhões de histórias rápidas passam todos os dias sob os nossos olhos. Histórias curtas, lapidares, diretas.

Proust dizia que sua obra era uma catedral porque era construída, tinha estrutura e conteúdo. Uma história edificada com planta e estilo. Uma história com tempo. Era a esse jeito de contar que dávamos o nome de storytelling. Um templo.

A internet matou o storytelling.

Publicado originalmente no Clube de Criação de SP em 04.06.2919

O peixe que viramos

O Carassius Auratus é um peixe muito querido por milhões de pessoas ao redor do mundo. Ele é conhecido por sua atividade, apetite, exibicionismo e curiosidade enormes. Por muitos desses aspectos, ele é parecido com os seres humanos vivos no século 21. Mas sem dúvida, sua característica mais surpreendente é seu tempo de atenção que é, em média, de 8 segundos. Pesquisadores conscienciosos fizeram constatações semelhantes com uma amostra representativa da população de milennials e concluiu que além de coincidirem na maioria das qualidades do peixe, a atenção dessa geração é melhor e alcança uma média de 9 segundos.

Ainda não fizeram a mesma pesquisa com a população de usuários assíduos de redes sociais, mas é provável que ela mimetize o comportamento da geração Y. E não se engane: costumamos mentir sobre nossa mundanidade digital porque é de bom tom afirmar com altivez “dou só uma espiada de vez em quando” quando na verdade a gente não resiste a uma tremidinha do celular para dar uma olhadinha. Geração Y somos todos nós e nossos filhos e pais, de 7 a 77 anos.

É difícil descobrir o que vem primeiro, se é a falta de capacidade de concentração que formata a maneira como as pessoas consomem conteúdos hoje ou se é a maneira como as pessoas o fazem que dita a solicitação de concentração. É difícil dizer se é porque as pessoas têm pouca capacidade de se concentrarem que as plataformas distribuem conteúdos cada vez mais resumidos e simples ou se é porque as plataformas foram feitas para distribuir conteúdos telegráficos que as pessoas estão virando peixes vermelhos flutuando em seus bocais quentinhos.

É verdade que o ser humano foi programado para economizar o máximo de energia, seja ela física, seja ela mental. Mexer-se e pensar são duas atividades antinaturais por definição. Portanto, qualquer estímulo ao ócio, à preguiça ou a procrastinação será sempre preferido. É um reflexo.

Mas talvez por isso mesmo as atividades mais lucrativas e promissoras da humanidade são aquelas que incentivam a economia de energia. É por isso que queremos máquinas que emagreçam, geringonças que nos carreguem, telas que nos anestesiem, e inteligências que se substituam à nossa. Os negócios mais bem-sucedidos são aqueles que tentam transformar seus usuários em pufes.

Não é à toa que as plataformas online construíram uma boa parte do seu modelo econômico ganhando dinheiro sobre nossa atenção. Funciona assim: quanto menos atenção as pessoas dispensam para um conteúdo, mais conteúdos serão consumidos e quanto mais conteúdos serão consumidos, mais dinheiro se ganha vendendo conteúdo. É claro que a palavra “conteúdo” é inadequada na mesma proporção que a palavra “consumidos” é perfeita. Metaforicamente falando, é como se o ketchup estivesse para a comida como as redes sociais estão para o conteúdo: é bom mas é uma porcaria.

Lembram da história do ratinho de Skinner? Numa das experiências, alguns ratinhos eram colocados em uma gaiola e, a intervalos fixos, a comida era distribuída mediante uma ação dos animais. Com o tempo, os bichinhos aprendiam que bastava apertar a alavanca quando a hora chegava. O resto do tempo, eles ficavam ocupados em outras atividades. Numa outra gaiola, o sistema era o mesmo, mas a comida não era distribuída a intervalos regulares, mas aleatórios. Os ratinhos, coitados, perceberam isso muito rapidamente e passavam o dia apertando a alavanca distribuidora de comida. Skinner não conta, mas é provável que os coitados tenham enlouquecido.

Os criadores das plataformas estudaram Skinner e sacaram que 1. podiam vender a atenção dos usuários aos anunciantes 2. quanto menores os formatos, quanto mais superficiais, mais anúncios se podia vender e, principalmente, 3. quanto mais aleatória for a distribuição dos conteúdos (pagos e não pagos) mais a gente vai querer scrollar loucamente e consumi-los sem mastigar. E quanto mais engolidos eles forem consumidos, mais peixe a gente vira.

Publicado originalmente no Meio & Mensagem, edição de 13/05/2019

Diversidade não é um fim

Falar de diversidade, em tempos de tantas fissuras sociais, delicadezas identitárias e mentiras é arriscar-se a interpretações apaixonadas e muitas vezes compreensíveis. As sensibilidades estão aguçadas porque dependem das experiências individuais, muitas vezes dolorosas. Mas excetuando-se os argumentos reducionistas e outros lugares de fala, esse conceito vem sendo entendido de forma superficial e fácil.

Muitos entendem que a diversidade é um fim em si. Para além da legitimidade do pleito, no entanto, muitas derivas sectárias, segregacionistas e totalitárias decorrem da crença de que representatividade e igualdade são o objetivo derradeiro de todo engajamento. A menos que essa luta seja uma estratégia, é evidente que contentar-se com a proporcionalidade de mulheres, negros, gays, imigrantes e etc. em todas as esferas de poder é uma ambição muito pequena e perigosa porque pode aumentar as tensões ao invés de dissipá-las, institucionalizar as diferenças ao invés de integrá-las, eternizar as soberbas grupais, de minorias e maiorias. É claro que todo defensor da diversidade concorda com isso mas é patente que as agendas ocultas ou inconscientes são de supervalorização dos atributos, qualidades, desígnios dos grupos em comparação com os demais. E as atitudes, os slogans e as manifestações públicas são muitas vezes traiçoeiras porque escancaram uma intolerância apaixonada e nervosa.

Mas a diversidade talvez não seja um fim, mas um meio para objetivos maiores. Ou talvez a diversidade seja O único meio. É aceitando que as pessoas são diferentes e que quanto mais misturados formos, melhores seremos. É saber que a representatividade dos grupos é desejável e necessária para o debate sereno e não para uma defesa intolerante e inflexível do ponto de vista identitário. Se entendermos que a proporcionalidade de mulheres na vida pública não é um fim mas um meio para que elas – e os homens – esqueçam que são de sexos distintos quando legislarem; se entendermos que a igualdade de salários entre negros e brancos é necessária para que a gente esqueça a raça no ambiente do trabalho – e na rua; se entendermos que o casamento para todos é um meio para que a gente se lembre que preferência sexual não tem nada a ver com direito civil – nem deveres demográficos; se entendermos que abrir as fronteiras e acolher imigrantes não é só uma questão de solidariedade nem de justiça compensatória ou de curiosidade exótica mas a única saída para a paz no mundo – e no nosso quintal, talvez a gente entenda finalmente que a diferença entre homens e mulheres, negros e brancos, gays e heteros, imigrantes e nacionais é muito mais cultural do que genética – ou divina.

Yuppies, Hipsters e depois?

Eles estudavam o mínimo necessário, começavam a trabalhar muito cedo e viam no dinheiro um objetivo em si, custasse para isso a imbecilidade de declarar seu sucesso – financeiro – na aparência e nas conversas. Sua capacidade de trabalho era espantosa porque quanto mais cedo obtivessem sucesso, mais cedo entrariam no ciclo milagroso da multiplicação espontânea de rendimentos sem muito esforço. Eles eram barulhentos e espalhafatosos, classificavam pessoas em vencedores e perdedores, sem matizes, e gastavam com largueza perdulária. Como disse um célebre profissional da Publicidade, que como as empresas do Sistema Financeiro era uma das mecas dessa turma, “se você não tem um Rolex aos 50 anos, fracassou”. Esses caras eram alegres e generosos e acreditavam que a humanidade estava entrando em um ciclo feliz de evolução. Eles eram otimistas e ótima companhia.

Claro, os Yuppies não morreram e é espantoso ver como uma galera ama estampar seus looks que custam muitos dols por aí, exatamente como faziam os quarentões de hoje, 20 anos atrás. Mas é assim mesmo, o ridículo não tem idade.

Logo depois dos Yuppies, veio uma outra turma, ocupada demais com sua aparência para se preocupar em estudar ou ganhar dinheiro. Você ainda cruza com eles por aí, escondendo com nonchalance estudada as marcas que valorizam justamente por serem discretas e confidenciais. Eles são bonitos (magros lânguidos ou gordos tônicos), comem as coisas certas (quinoa ou avocato), fazem esportes rebatizados (um Yôga masculinizado com um basso profundo circunflexo no “o” para vibrar os chacras baixos) e tomam substâncias new age recauchutadas. Eles acham que o planeta está em estado avançado de putrefação, que os sistemas políticos são decadentes e que só uma volta às origens semi-rupestres pode nos salvar do desaparecimento.

É fácil descrever essa turma porque eles ainda pululam em todos os lugares mas esses  Hipsters, apesar de enfeitarem o mundo, estão desmilinguindo porque viciaram no Netflix e no Facebook, essas obras malignas de submissão e controle.

Eis que agora surge uma outra galera. Uma galera com cérebros hipertrofiados, verdadeiros onívoros culturais, que comem tomate patrimonial e milho Azteca, e que, acima de tudo, valorizam a educação em moto perpétuo, para eles e principalmente seus filhos biológicos, semi-biológicos, adotivos, semi-adotivos, sintéticos, semi-sintéticos, animais e semi-animais. Eles são progressistas convictos, eticamente arrogantes e desprezam com sorriso angelical quem tem currículo sem grife. Essas pessoas se interessam por uma nova política, cheia de debates com disputas filosóficas, não suportam a palavra fronteira com exceção de suas casas protegidas do mundo tóxico por altos muros verdes e só não torcem pra Islândia porque tem muito homem e loiro e lindo em campo.

Essas pessoas não se contentariam com nicknames publicitários – eles não suportam propaganda de sacadinhas adolescentes – e se auto batizaram de Classe Aspiracional. Eles são a nova classe de seres superiores e já já, você vai pagar uma fortuna para algum instituto de pesquisa super cool lhe defender uma abordagem disruptiva para domesticá-los.

Da trade-mark para true-mark

Quando um fazendeiro passa em revista seu rebanho, ele costuma assinalar aqueles animais que se destacam com um sinal. Ele marca os lotes para que os preços sejam compatíveis com a qualidade atestada. Aquele sinal cuja sofisticação será proporcional à capacidade do produtor de atribuir valor aos animais escolhidos (genética, por exemplo) é uma trade-mark.

Com o desenvolvimento do capitalismo, o valor de uma trade-mark é definido por uma receita ou fórmula. Duas trade-marks com a mesma receita possuem, em tese, o mesmo preço.

Mas neste mundo capitalista primitivo, no entanto, a racionalidade é só aparente porque é a antecedência de quem pensou antes, viu antes, pegou antes, patenteou antes que define o valor.

Uma trade-mark é uma marca esperta.

Quando uma pessoa de marketing reúne seu time e suas agências de pesquisa, comunicação e branding, a preocupação que origina todas as discussões é a atribuição de um valor emocional à marca que está sendo debatida. Para isso, identifica-se uma oportunidade de mercado, idealiza-se um público, pesquisa-se uma mensagem. O trabalho resultante, que muitas vezes humaniza o produto com uma história inventada, é uma love-mark.

O capitalismo atual fez com que duas marcas com qualidades comparáveis possam ter preços completamente diferentes (com ou sem patente). Nesse estágio, inclusive, a diferença pode ser tão abstrata que os consumidores ficam perplexos e podem até abrir mão da recompensa emocional.

Neste mundo capitalista medieval que premia a narrativa, enriquece quem discursa melhor.

Uma love-mark é uma marca fabuladora.

Mas se uma trade-mark tem seu preço definido pelo critério da antecedência da fórmula e não pela comparação entre as ofertas; e uma love-mark tem um preço definido por critérios transcendentes que escapam a qualquer comparação lógica, o consumidor é uma massa fácil de manobrar, o que iremos confrontar a esses capitalismos cansados?

Em tempos de ferramentas tecnológicas evoluídas de comparação de preços e experiências, os consumidores já são capazes de decifrar as esfinges de patentes e brandings alienantes. Em um mundo em que a aparente abundância é a máscara que esconde recursos cada vez mais raros, a síntese artificial de percepções é uma bomba relógio que se volta, cedo ou tarde, contra as empresas, as marcas, os consumidores e o planeta.

É chegada a hora das true-brands.

As true-brands são aquelas capazes de atribuir valor às suas verdades. As true-brands explicam de onde vem o produto, como ele foi criado, produzido, embalado, vendido. Uma true-brand atribui valor ao que tem valor: a origem, a escassez, o cuidado. Uma marca valerá quanto mais autêntica for a sua origem, quanto mais cuidadosa for a sua fabricação, quanto mais transparente for a sua contabilidade, quanto mais profunda for a sua atenção aos consumidores, à comunidade, à sociedade, ao planeta, quanto mais ética for sua missão. Uma true-brand milita contra as patentes que paralisam a inovação e perpetuam a concentração de capital. Uma true-brand despreza as narrativas alienantes do branding.

Uma true-brand pode colocar a composição no rótulo, no lugar do logotipo. Uma true-brand pode colocar sua margem de lucro, no lugar do nome ou o endereço de quem produz no lugar dos textos legais. Uma true-brand pode assumir, na propaganda, quantos empregos proporciona para compensar a quantidade de árvores que cortou. Ou qualquer coisa entre a opacidade da narrativa e o confessionário. Uma true-brand se compromete ao invés de prometer.

Uma true-brand é uma marca poeta.

A propaganda morre com a mídia que a nutre

Edward Bernays, sobrinho de Freud, foi o inventor da propaganda moderna. Leia-se aqui, moderna como predecessora da contemporânea, vide, em vias de ser considerada clássica, barroca, medieval.

Sua tese era simples: a propaganda para ser convincente e, portanto, cumprir sua promessa comercial, deve operar sobre o desejo ao invés de ser um catalizador da necessidade objetiva. A propaganda deve suscitar frissons rebeldes e involuntários ao invés de acionar o cérebro analítico e conservador. A propaganda precisa flechar o coração ao invés de cutucar a razão.

Em síntese, a propaganda é uma manipulação de paixões ao serviço do interesse comercial.

Mas dois tsunamis colocam em xeque esse raciocínio tão eficiente.

O primeiro é o e-commerce que por definição é a plataforma da racionalidade. Comprar em um site, por impulso, é quase impossível tamanha a oferta de opções e de comparações. Claro que existem os poetas da navegação flanada, que flutuam ao sabor das imagens e dos estímulos. Mas a compra na Internet é antes de tudo pragmática. É preço contra preço, oferta contra oferta, review contra review. Há pouco, muito pouco espaço para a vulnerabilidade do desejo. Fazer propaganda na Internet (será propaganda?) segue a lei do mais tático e do mais rápido. Não é coisa para sonhadores estrategistas.

A segunda plataforma que desestabiliza o princípio fundador da propaganda (de massa) é a própria virada de mesa da mídia que deixa paulatinamente de falar de um para todos, para ser essa multiplicação ad infinitum dos emissores. Para Bernays, uma vez que a propaganda é a manipulação calculada do desejo, a credibilidade do meio que veicula a mensagem publicitária (e que acredita o desejo)  é um fator decisivo na capacidade de convencimento. Quanto mais independente e poderoso for o veículo, mais potencial terá a propaganda de tocar a sensibilidade das pessoas. Mas com a explosão das redes sociais que tendem a concentrar exponencialmente a atenção das pessoas, a propaganda está migrando a passos largos. E lá, credibilidade e reputação são quase irrelevantes uma vez que o que orienta os planos de mídia são algoritmos que calculam afinidades de targets com pouca relevância para o conteúdo. É da própria natureza das novas mídias que importam na Internet (Google e Facebook) serem neutras e insignificantes.

É claro que nada é tão simples nem definitivo e que ainda estamos no início das transformações. Mas também não adianta lutar contra moinhos: a propaganda está morrendo com a mídia de massa que a nutre. Para o bem e para o mau.

Santa Genoveva, Emile Glöge, Peggy Roche e Audrey Munson

landowki-sainte-genevieveNo sítio de Paris de 451, os temidos Hunos estavam prestes a ocupar a cidade subindo o rio Sena. Genoveva, notável membro do parlamento da cidade, convoca a população apavorada: “Que os homens fujam, se quiserem, se não forem capazes de lutar. Nós mulheres ficaremos e suplicaremos sozinhas a Deus”. A história não conta se os homens permaneceram, o que se sabe é que Genoveva se instalou sozinha na ponta de uma ilha para fazer prova de que a população estava pronta para a luta. Os sanguinários, assustaram-se com a corajosa aparição e fugiram dali para nunca mais voltar.

Genoveva virou santa e foi a musa que inspirou o escultor Paul Landowski (o mesmo do Corvovado) para a estátua do Ponte de Tournelle sobre o Sena.

Emilie Glöge você também conhece: ela foi a amante de Gustav Klimt (obrigado à leitora Daise Daiane pela dica). Ela está retratada em várias obras do pintor, dentre as quais o luxuoso “Beijo” que alguns críticos mal-amados viram como uma representação da submissão feminina mas que é uma quase lisérgica intepretação da união de duas pessoas apaixonadas. Emilie foi mais do que uma modelo que se entrega em poses encomendadas, ela era uma renomada estilista em Viena e incorporou na moda todas as tendências avant-garde.

Emilie não foi só a amante do grande pintor, foi a musa que, graças a seu estilo, com simetrias geométricas bizantinas, constituiu a tela de fundo da originalidade de Klimt.

Peggy Roche foi uma estilista ícone da revista Elle francesa na década de 50/60. Símbolo do chique parisiense, com seu look delicadamente masculino, Peggy desfilou para Givenchy e Guy Laroche, antes de conhecer a grande romancista feminista independente Françoise Sagan (Bonjour tristesse) e virar sua amante por 20 anos. Mais tarde, Peggy lança sua marca que lamentavelmente não sobrevive à sua preguiça comercial.

Peggy era uma musa e um esteio para a escritora que, pulando de crises de desintoxicação para crises de nervos, contava com a amante para ressuscitá-la. As duas estão enterradas lado a lado desde a morte de Sagan, em 2004.

As musas são mediadoras entre o divino e criador. Musas não são entes passivos, nem mandados. São entidades que através de suas habilidades específicas acendem e iluminam os artistas.

O criador, em transe, precisa ser tomado pela musa – ser divino, polimorfo, assexuado – para conceber.

Audrey Munson, que você talvez conheça pelas suas várias estátuas em Nova York (como por exemplo na frente do hotel cafona-glam Plaza, na ponte Manhattan ou em frente da biblioteca pública da cidade) foi uma modelo inspiradora. Sua vida, contada em “A maldição da beleza” de James Bone é uma aventura rocambolesca e triste. Além de ter sido a primeira atriz a se despir no cinema, Audrey, que nasceu em 1891, foi o maior frisson dos ateliers americanos. Seu corpo foi imortalizado nas curvas evanescentes do gosto belle époque mas sua vida terminou de forma melancólica em um asilo psiquiátrico onde permaneceu por 60 anos.

Musa e modelo não são a mesma coisa embora, muitas vezes hipnotizados, costumamos dizer que tal modelo é musa.

Modelos como tantas Audrey só inspiram.

Musas como Genoveva, Emilie ou Peggy inspiram e possuem.

Colaborou para esse artigo Renato Duo
Originalmente publicado em FFW

Alexandra David-Néel nas montanhas sagradas do Tibete

Captura de Tela 2017-03-29 às 10.22.24Sabe quando você chega em casa, depois de um dia longo e a única vontade que tem é de vegetar na frente da televisão? Sabe quando você vai dormir, tenta retroceder no tempo e percebe que ainda lhe restam 20, 30, 50 anos de vida?

Então você pega um livro na cabeceira: muito prazer Alexandra David-Néel!

Com dois anos de idade, seu pai, um ativista huguenote e maçom leva a pequena para assistir o massacre de 147 resistentes revolucionários naquela que foi chamada a primeira experiência bolchevique da história (na época ainda cheia de idealismo e pureza), a Comuna de Paris, em 1871.

Um batismo e tanto para quem se transformaria numa grande especialista do Oriente, Budista de primeira hora no Ocidente, tanto na teoria quanto na prática, gastando a sola do sapato e a coragem em longos périplos pelos mais inóspitos continentes. Isso depois de ter sido diva de ópera, cantado Violetta da Traviatta em Túnis e Hanoi por exemplo. Sem falar que ela foi  uma das maiores feministas da Europa que não se contentou com desfiles burgueses e protegidos segurando cartazes com sacadas publicitárias, mas que acreditava que a mulher precisava provar antes de manifestar.

Mas sua conquista mais inimaginável foi de ter sido a primeira  ocidental a entrar na cidade santa de Lhasa, no Tibete. Este feito  equivale mais ou menos a descobrir um outro planeta habitado por seres inteligentes.

Alexandra, que se banhou na literatura mais intelectual do século mas também na Doutrina Decreta de Blavatsky e no Livro dos Espíritos de Kardec casa-se aos 36 anos com o marido Philippe, engenheiro, homem de números. Não acreditam no casamento nem no amor mas nunca se separam. Ou melhor dizendo, as cartas nunca os separam porque dez dias depois do casório, Alexandra viaja para a Índia onde fica dois anos em uma caverna com um Iogue tântrico. Depois vai para a China, Japão, Coréia. Ao todo, quatorze anos s em reencontrar Philippe.

Mais tarde, Alexandra que já é uma das poucas mulheres lama, adota um discípulo, Yongden, que irá, com ela, penetrar o Tibete finalmente independente, mas sob influência inglesa. Várias vezes é expulsa, barrada, perde-se na neve e no frio. E depois de tentar despistar sua identidade, fazendo inacreditáveis desvios que a levam até o deserto de Gobi, acaba, quase por acaso, chegando em Lhasa, vestida de andrajos, tingindo a pele de cinzas e o cabelo de pelo de iaque. É dia de festa na cidade santa e uma explosão de cores e ritmos parecem recepcionar os dois fantasmas maltrapilhos. Mas Alexandra não consegue maravilhar-se e já planeja seu retorno.

Se a extraordinária trajetória dessa mulher de letras, jornalista e exploradora e de tirar o fôlego e que pelo excesso de feitos nos desespera ao invés de inspirar, nem por isso, ela não era como a gente, cheia de medos e fraquezas, sonhos e desejos, pecadinhos escondidos e grandezas superlativadas.

Para a reverência iluminada nos templos sagrados de Lhasa ou para a glória alcançada nos quase 30 livros publicados, para enfrentar seus demônios ou lutar pela própria independência, para provar-se a si mesma ou mostrar a todos que só a coragem é capaz de vencer os papéis que nos atribuem, Alexandra morreu em 1969, aos 101 anos, refletindo nos olhos todos os brilhos dos Himalaias.

Essa coluna foi originalmente publicada no FFW
Colaborou com esse artigo Jean-Pierre Loctin e Renato Duo

O Van Gogh do imã de geladeira

Na manchete de uma das milhares de telas que fazem um cerco exaustivo à nossa atenção, estava sendo noticiado que milhares de obras de um grande museu tinham sido repertoriadas pelo grande irmão de Mountain View. Uma notícia anódina, de press-release xoxo. Mas claro, é esperançoso saber que o maior bisbilhoteiro da vida alheia queira nos dar, e de graça, um pouco de beleza. Assim, na ponta dos nossos dedos, entre um pop-up de um varejista histérico, o retoque de um selfie e emoticons expressivos pipocando por todo canto, Rembrandt e Van Gogh vão dar as caras.

No entanto, o extraordinário altruísmo filantropo do esclarecido irmão nem era o que chamava atenção. Era o título que o jornalista escreveu: “Agora, as pessoas terão acesso a milhares de obras classificadas por data, popularidade e cor”. Data, popularidade e cor. Claro, quando quero ornar de um fundo erudito a capa do meu perfil numa rede social, melhor selecionar uma obra que combine com o verde maçã do meu cachecol. Se quero mostrar como aproveitei bem minha razia consumista em Paris, fica mais legal fazer uma graça pinçando o seio de uma beldade renascentista. E depois, se alguém resolver fazer perguntas indiscretas, como por exemplo se vi os azuis de Velasquez, ainda bem que aprendi que além de uma Pizzaria famosa, é o nome de um pintor.

Sempre achou-se que a democratização da cultura era um caminho útil e necessário para, um dia, aspirar a uma humanidade mais refinada, instruída, feliz.

Sempre achou-se que temos que começar ouvindo um bombom clássico tocado ao vivo por uma orquestra desafinada, entre um sanduíche de frango frio e um cochilo no parque, para um dia emocionar-se em uma sala de concerto num silêncio concentrado e respeitoso.

Sempre achou-se que é melhor começar lendo gibi, literatura de cordel, jornal sensacionalista e nosso feed do facebook para gradativamente abrir um livro que contenha mais do que pérolas de sabedoria.

Sempre achou-se que a gente começa gostando de grafiti para depois se interessar pelo pintor colorido dos gabinetes políticos.

Mas será que com a ajuda dos gentis engenheiros hipsters, um dia a gente vai querer saber o nome de quem pintou o imã de geladeira vermelho que compramos no camelô do Masp?

A diferença entre fama e fome

 “Você nunca me viu na teleCaptura de Tela 2017-02-03 às 15.04.31visão, você nunca viu histórias sobre mim. O tipo de papel que eu tentei desempenhar foi de juntar peças de onde organizações possam surgir. Minha teoria é que pessoas fortes não precisam de líderes fortes”

Você provavelmente nunca ouviu falar da Ella Baker. Mas se você já sofreu ou já viu quem sofre de qualquer tipo de discriminação, cor, gênero, crença, preferência sexual, corrente política, gosto, mania, time do coração ou altura da barra da saia, deveria reverenciar essa defensora americana dos direitos civis.

Ninada na infância pelas histórias heroicas de seus antepassados, negros libertos que se revoltavam contra a escravidão, Ella já foi chamada de “Martin Luther King de saias”, o que por si só já esconde um preconceito do comum senso. Como se uma mulher precisasse de uma comparação com um homem para se destacar. Como se disséssemos que o Martin Luther King foi o Gandhi negro porque um negro para se notabilizar precisaria ser comparado com um branco, e o Gandhi um JFK oriental porque um indiano desse tamanho é suspeito.

Mas de fato, Ella fundou ou ajudou a fundar um número sem fim de organizações pelos direitos dos afro-americanos (inclusive a SCLC de Luther King). Em uma participação histórica, com estudantes negros, ela convenceu os jovens que suas batalhas eram muito maiores que “um hamburger e até que uma coca-cola tamanho gigante”  – ou seja, não vale a pena brigar por tão pouco – e que é através da ação de uma organização própria que podiam ir atrás de ideais mais ambiciosos.

A luta de Ella consistia em fazer as pessoas entenderem que todos têm um poder e que esse poder só pode ser usado através de uma ação grupal de contenção da violência. A não-violência inspira não-violência.

Quando nos interessamos por um personagem histórico, o vício consiste em procurar listar seus feitos, suas glórias, suas vitórias, suas medalhas. Mas muitas vezes, esse currículo, esse arco do trinfo, não passa de atribuições póstumas, exageradas e meias verdades. A gente gosta do título e dos superlativos: “personalidade mais influente do século”, “aquela que fez o homem mais poderoso da terra ajoelhar-se” ou “a mulher mais rica e que tinha a maior coleção de perucas do universo”.  Mas nada disso se aplica a Ella porque sua atuação era de incentivo e inspiração. Ela ia para a rua, para os palanques, para as trincheiras e barricadas, e, com o gogó, discursava, incentivava e principalmente dava às pessoas uma razão para lutar e nunca desistir.

Também adoramos pessoas que inflam o peito, falam alto, posam e requebram. Como se a fama não fosse consequência mas causa. “Sou famoso e por isso posso apoiar grandes causas, dar conselhos, dar exemplo”. “É porque sou famosa que minha foto no jatinho particular com meu namorado rapper vai inspirar milhões de pessoas a serem como eu, linda e rica”. Ou linda, portanto, rica. Ou rica, logo, linda.

Nada podia ser mais distante dessa mulher extraordinária porque ela acreditava na bandeira e no grupo. Ella não fazia da humildade uma qualidade, mas uma arma. Ser humilde, não sobrepor seu nome à causa, não era uma opção de boa moça, era a própria causa. A humildade fortalece o grupo e o grupo sempre será mais forte do que a soma de pessoas, ainda que fortes individualmente.

Ella Baker tinha fome e não fama. Ela queria que as pessoas, organizadas e conscientes, tivessem fome também. Fome para igualdades de oportunidades para negros e não negros, mulheres e não mulheres, gays e não gays, muçulmanos e não muçulmanos, americanos e não americanos. Sua bandeira, mesmo que situada em um contexto histórico da causa dos direitos civis para afrodescendentes, transcende todas as épocas pelo símbolo que representa.

Em tempos de fundamentalismos brancos, heteros e cristãos, a mensagem de Ella não poderia ser mais motivadora. Em tempos de líderes que se vendem fortes e autoritários, lembrar-se de Ella Baker, que morreu em 1986 sem nunca transpirar nada sobre sua vida pessoal, é um conforto.

Mais sobre Ella no filme “Fundi, The story of Ella Baker”

Fernand Alphen é garimpeiro amador, empreendedor e tem medo de Donald TrumpColaboraram neste artigo Grégory Mertl e Renato Duo

Publicado originalmente no FFW

 

Publicitário, ora poeta, ora trator

Costuma-se classificar, para simplificar, toda mensagem com objetivo comercial, de propaganda apesar de todas as suas variantes, que vão do mais ficcional dos enredos ao mais prosaico dos apelos racionais. Mas também podemos tentar inverter o ponto de vista. Por exemplo, o entretenimento, também tem suas graduações e pode ir do conteúdo mais artístico e puramente experimental até o mais explícito dos veículos de consumo. O jornalismo pode ser puramente documental e exploratório ou flagrantemente ideológico e manipulador, com todos os tons de cinzas (mais comuns) intermediários.

Se, da noite para o dia, a indústria de petróleo deixasse de existir, o mundo entraria em colapso. Se, da noite para o dia, os bancos, as companhias aéreas, deixassem de existir, idem. Mas se, um gênio maroto decidisse que todas as agências de propaganda iriam desaparecer repentinamente, muito pouco mudaria: os estúdios, as emissoras, fariam propaganda, os escritores criariam títulos, roteiros e textos, os fotógrafos, imagens e o mundo seguiria até o dia em que alguém resolvesse inventar o já inventado.

Talvez, o drama da propaganda como profissão ou negócio, seja precisamente sua falta de identidade.

O exercício de inverter os focos, mesmo que puramente teórico, pode ser esclarecedor sobre algumas das principais motivações e frustrações da indústria da propaganda.

Em outras palavras, o publicitário vive em permanência um problema de identidade insolúvel porque convencionou-se chamar de “boa propaganda” aquela que emociona e “má propaganda” aquela que explica. Ou, “boa propaganda” aquela que entretém e “má propaganda” aquela que martela. Até porque, tanto a “boa” quanto a “má” propaganda vendem.

O trabalho de um publicitário – ou o de seu contratante, o cliente, o marketing – é decidir, ao longo do processo de elaboração do seu trabalho, quantas camadas de distrações, digressões, metáforas, ornamentos, ele irá colocar por cima do objetivo definido, sempre muito vulgar. Mas esse processo nem sempre é consciente e assumido, porque é boa prática fazer precisamente o contrário: começar pela ideia, inocente, desinteressada, pura, sensorial e emocional, para encapsular em algum momento um ricochete, escorregão, sutil lapso comercial.

Um publicitário seria, portanto, aquele cara que coloca graça e elegância naquilo que não tem e insere vulgaridade e pragmatismo naquilo que é só beleza, luxo e volúpia.

Não é fácil sair do armário para assumir uma identidade, ao invés de ficar nesse desconfortável papel de se fingir ora poeta, ora trator.

Fazendo mais pior

A crise de desatenção – as mensagerias que pipocam, os feeds que desfilam rapidamente, o seriado que nos persegue, o poderoso Pokémon que mostrou o nariz – é efeito e não causa do tenso peso de viver.  E isso sem falar da vida de sempre, das contas, dos compromissos, da saudade.

E porque somos limitados, se o esforço se multiplica, a qualidade se divide. Fazemos cada vez mais, cada vez pior.

Vivemos em tempos de cobrança por performance. Ver tudo, responder a tudo, saber de tudo, reagir a tudo. Quem dorme no ponto, quem desliga, quem se ausenta e mesmo quem acha que escapa em outras viagens de consciência, retorna devendo. E caímos de novo na ciranda, para recuperar o tempo perdido.

Recuperar? Tempo?

Certa vez, meu pai confortou um doente nos cafundós da Amazônia. Seus cuidados de homem instruído soaram como uma bênção médica aos familiares impotentes. Meses depois, retornando àquele fim de mundo, teve com a esposa do doente. Ele tinha falecido. “Sim Doutor, ele morreu alguns dias após a sua visita. Mas Doutor, ele morreu tão melhorado!”

Uma questão de pescoço

Se baixar o sarrafo na televisão, leva pito da Corte, se criticar a propaganda na Internet chateia os bannersdependentes, se opinar sobre a gestão estratégicas das agências, magoa os amigos.

Mas, relativizar a opinião é polêmica reversa: a televisão não está em estado avançado de putrefação nos lares de milhões de brasileiros (Revista About – março de 1996) nem a mídia, na Internet, continua,  melancolicamente, bannerdepentente (BlueBus – Agosto de 2001), tampouco as agências charfurdam em pântanos jurássicos (Meio e Mensagem – Maio de 2016). Mas muita coisa degenerou de lá pra cá: as audiências, os sites, as margens.

A única verdade é que a prosperidade atrofia até o dia da degringolada fatal.

A televisão enquanto encarar seu negócio como venda de espaço publicitário espremido entre conteúdos, degringola porque vê-se como mídia antes de conteúdo. A Internet enquanto foi construída como um filho pródigo da mídia impressa, degringola porque não percebe-se como ferramenta antes de ser mídia. E as agências degringolam quando balançam entre umas coisas e outras.

Muitos vão dizer que esta é uma questão retórica e que, no fundo, é tudo la même chose. Que a televisão é mídia e conteúdo, que a internet é mídia e ferramenta e que as agências servem essas coisas todas.

Mentira porque a televisão de antigamente vendia audiência ao invés de entretenimento e informação.

Miopia porque a Internet de antigamente vendia exposição ao invés de dados.

Quanto às agências – dependente das evoluções e paralisias de seus clientes – elas dançam ao sabor das visões de seus líderes, aqueles dragões enormes que comandam seus répteis com processos (sic) pioneiros.

Quem são os dinossauros?

Já reparou que o tamanho do pescoço de um dinossauro é inversamente proporcional à sua posição na cadeia alimentar? Quanto mais próxima a cabeça do corpo, mais ágil e esperto o bicho, mesmo quando ele pesa milhares de toneladas. Quanto mais distante do corpo, mais lento e mais suscetível de ser comido.

Existem dinossauros com variados tamanhos de pescoço em todas as categorias econômicas. Inclusive, claro, no mercado de comunicação.

As agências de propaganda, independentemente de serem calejadas ou adolescentes, enormes ou saradinhas, cheias de salamaleques ou broderzinhas, com móveis design ou tatuagens místicas, são Barbapapas: devem aprender a se moldar ao contextos de forma rápida e inteligente.

Isso é uma questão de pescoço. Quanto mais distante a cabeça do corpo, mais lento, e quanto maior o pescoço, menor a cabeça do bicho também.

E de pouco adiantam dietas prolongadas e ginásticas radicais. Elas são o princípio do fim.

Quantos meteoros ainda?

Existem várias teorias sobre o fim dos dinossauros. Uma delas dá conta que um doido de um meteoro caiu e matou todo mundo. Mas acho que não foi nada disso. Os dinos – os de paletó de linho e os camisa de cânhamo – sumiram porque não viram os meteoros caírem.

A felicidade não está nas coisas

Por mais estranho que pareça dizer que a propaganda nasceu para ser uma ferramenta de transformação de  pessoas normais em consumidores apaixonados (ou cegos), principalmente em um veículo que fala com os atores dessa técnica quase científica revestida de um verniz criativo, este artigo prenuncia uma tendência sutil das marcas para reconhecer que fomos longe demais.

Tudo começou com a mídia de massa, ela também um extraordinário pasteurizador de conteúdos, em que triunfa a filosofia do mínimo denominador comum. A equação é simples: a originalidade do conteúdo é tão menor quanto maior for a quantidade de pessoas impactadas. Assim também a propaganda raciocina para encontrar estímulos que motivem muitas pessoas, diferentes entre si, mas iguais em determinados valores, aspirações e necessidades.

E o que poderia ser este senso universal que toca e convence as dóceis ovelhas? Emoção. Qualquer convencimento que apela para as emoções das pessoas atinge muito mais indivíduos do que seus gostos racionais. Se o argumento exigir o gosto e der início a uma elaboração intelectual (isso é bom ou ruim porque… ou isso é melhor ou pior do que aquilo porque…), há bem menos chances de adesão por um grupo grande de pessoas do que qualquer argumento de sedução emocional. Todo mundo ama, quer viver a vida, desfrutar das coisas boas e sonhar, mas nem todo mundo gosta de branco ou doce ou gelado ou pontudo ou rápido. Nem todo mundo acredita no argumento do mais barato, do mais seguro, do mais na moda, mas todo mundo quer abrir a felicidade.

Isso era do tempo em que a mídia que consumimos era exclusivamente de massa. Isso era do tempo em que as pessoas eram ovelhas comportadas. Isso era do tempo em que as a cauda era curta e as participações de mercado das grandes marcas eram fatias gordas e suculentas. Mas nosso comportamento está mudando. Embora a mídia de massa ainda hipnotize a bunda de milhões de espectadores, a atenção das pessoas está dividida e absorta alhures, em outras telas. A televisão de massa, que antes protagonizava soberana nos lares, virou salva-tela.

E antes do ovo, a galinha. Os cidadãos, com acesso a informação universal e fácil e com um poder de opinião amplificado, já aprenderam que o entorpecente não é agradável e tem intenção ideológica. Em outras palavras, se você desvia é porque tem algo a esconder. Ou, simplesmente, não me engane que eu não gosto.

Pois antes da galinha, o ovo. Se antes a escala fazia o sucesso de uma empresa, hoje a concorrência especializada corrói rapidamente qualquer soberania. Até porque as curvas de aprendizado se estreitaram drasticamente com o poder do compartilhamento da multidão. Isso sem falar na morosidade dos tecnocratas das grandes multinacionais, que não tiram o olho do retrovisor, rezam um pai nosso às pesquisas e fogem como diabo da cruz à intuição.

As marcas, reflexo e causa dessas mudanças, não podem mais se dar ao luxo de concentrar seus esforços  ao monoteísmo da mídia de massa porque a missa ficou chata.

E porque as marcas espalham seu discurso de comunicação, adaptando suas mensagens a grupos cada vez menores, é audacioso ou míope seguir acreditando na mensagem universal e intoxicante.

As marcas pregadoras, que rezam uma verdade única, tendem a perder seus fiéis porque outros infinitos deuses  são mais terrenos.

Esse movimento das marcas voltarem a falar de suas verdades, de produto, é redentor para o consumidor que otimiza suas escolhas e minimiza o desperdício.

É também um enorme alívio para os marketings que já não sabem mais o que mentir.

E, finalmente, é um extraordinário incentivo à inovação técnica, funcional e concreta, que é pelo bem de todos.

Estamos livres para ser felizes sem mais precisar das coisas que consumimos.

Artigo publicado no Meio & Mensagem de 01/02/2016

Liberté et créativité

Quando não há musa nem acaso, a criação é a maior inimiga do tempo, da pressão, da encomenda. É por isso que fala-se de milagre, de magia, de genialidade. Mas é só uma desculpa. O processo criativo – ou a quimera de um processo criativo – é tão débil que ele nunca se reproduz da mesma forma nem produz os mesmos efeitos.

No entanto, a gente tenta e se atenta, tarde, que não deu.

Como deve ser o ambiente? Silencioso ou agitado? Confortável ou monástico? Luminoso ou claro-obscuro? Os estímulos precisam se de fora o de dentro? Entusiastas, psicotrópicos ou coercitivos? E quais referências trazer? Ou é melhor deixar o espírito vagar pelo dédalo sagrado das musas? Vale debater e com quem? Com o público? com o próximo? Com o espelho? Pé de coelho, figa, Ganesha ou algum ritual particular? Ou consagração coletiva? Briefing aberto e solto ou fechado e preciso? Briefing? Checkpoints programados? Hot houses pan-discilplinares? Coachs, gurus, terapeutas? Sem falar no sufrágio, lançado ao acaso das anônimas células pretensamente criativas que existem no fundo de cada ser humano, mais conhecidas como crowdsourcing.

Ambientes, estímulos, referências, debates, superstições, briefings, checkpoints, hot houses, coachings são melhores álibis do que inspiração.

Chercher? Pas seulement: créer.

Não basta procurar: é preciso criar, dizia Proust. E procurar é processo científico, tentativa e erro. Causa e efeito. E porque é nisso que investimos nossas energias, então acrescenta-se uma variável pragmática: tentativa e erro até tal dia. Mas o que se encontrou não foi criado, quando muito foi descoberto ou inventado à nossa imagem e semelhança, como Colombo diante dos selvagens do Novo Mundo.

E porque a eternidade está naquilo que não dura (Proust de novo), para criar, é preciso estar livre das amarras, de todas e principalmente do tempo. Criar é ser livre.

Brief: primeiro era o verbo

Quando um escritor, um músico, um chefe de cozinha, inicia um trabalho, qual pulso o move a ultrapassar as fronteiras do fazer por obrigação, por dinheiro, por hábito?

Alguns dirão que toda e qualquer produção criativa transcendente é uma filosofal reação química, mágica, mística. O autor é emissário e tradutor de uma pulsão e conexão que sensibiliza uma religação. Religar religioso.

Mas para além da inefável mecha iniciadora, o que conduz a termo a mágica manifesta, a criação do poema, da canção, do regalo, da campanha publicitária?

É esse fio de Ariadne que poderíamos chamar de brief, no sentido bíblico da palavra. Brief é a quintessência da matéria, sua redução primal, explosiva e durável. Brief é portanto o que vem antes. O verbo.

Brief não é nem especulação nem tradução, muito menos o superficial e modorrento relato de um objetivo vulgar. Ao contrário, um brief deve insuflar e excitar, deve ser o derradeiro e único folego da jornada criativa.

Então um brief deve ter:

  • Uma missão clara e desafiadora. Quem e o que devemos desvendar, matar, capturar. Qual é a missão da empreitada?
  • Uma ambição que sintetize onde queremos chegar com a missão desempenhada a contento. Ambição é desenhar cenários.
  • Uma paixão, a alma do processo: qual fogo iremos insuflar no produto ou na obra final capaz de apaixonar muito além da razão.
  • Uma vontade que explicita a quantidade e qualidade do esforço que iremos dedicar à missão.
  • Um caminho original, que suscite curiosidade, um primeiro passo, uma isca, um canto de sereia.

Reproduzir, Inovar, criar

É uma questão de segurança mental encontrar âncoras, balizas, rótulos, modelos. É graças a eles também que conseguimos reproduzir experiências e visionar sucessos. O mecanismo de encaixe entra em ação por reflexo a cada situação de nossa vida: “isso vem de onde? Para onde isso me leva? É o quê? O que isso me lembra?”

O sistema no qual vivemos e trabalhamos incentiva o exercício de referenciar tudo.

Mas nesse processo mental, existem situações típicas que confrontam a dificuldade de encontrar as gavetas numeradas e catalogadas nas quais iremos classificar as situações específicas.

A primeira diz respeito ao talento racional. A inteligência resulta da capacidade de repertoriar ao máximo.

A segunda é do domínio da intuição. Inovar é ser capaz de colocar, em gavetas novas, situações que elas jamais hospedaram antes.

A terceira é inspiração. Criar é ser capaz de inventar gavetas novas, nunca antes imaginadas.

É difícil entender a diferença e, muitas vezes, os inteligentes se acham inovadores e os inovadores se veem criativos.

Por vezes, o que se espera de uma profissão, é essa lucidez classificatória. Um engenheiro, um médico, um advogado, um administrador de qualquer ramo será tanto mais bem sucedido quanto mais desenvolver a capacidade de apreender e classificar.

Por outras, o profissional será exigido para inventar formas diferentes (e não novas) de ver o mundo. Um designer, por exemplo, um publicitário.

Finalmente, existem aquelas vocações que escrutinam além das fronteiras do bem-pensante politicamente correto mundo burguês. Um cientista, um artista, por exemplo.

E quanto mais paquerarmos, com promiscuidade assumida, com a grana e o comércio, mais próximos estaremos de um mundo ordeiro, organizado, seguro. O mundo dos inteligentes bem-sucedidos.

Mas se não fossem aqueles desinteressados, os marginais indomáveis, os visionários apaixonados, talvez estivéssemos vivendo em um mundo mais brutal, mais cinzento, mais prosaico.

Porque não voto no Aécio

A política no Brasil, principalmente nessas horas febris que antecedem um pleito importante, é uma pantomima nervosa e ensaiada, em que os autores são profissionais de prestidigitação, os atores uma gangue vaidosa e mentirosa e a plateia – nós – uma penca de marionetes adestradas.

No fogo cruzado de acusações , números  e realizações aleatórias, tudo não passa de um jogo no qual todos – políticos e eleitores – deixam-se levar ao sabor da melhor frase e do melhor jargão.

Metade dos eleitores acredita no que a outra metade desacredita justamente para poder acreditar no contrário.

Eu já não sei mais nada, não confio em nada, enjoei do jogo.

É por isso que voto, pra mim, é uma questão de pele. É extra-sensorial, intuitivo. Minha démarche é propositalmente irracional para ser verdadeira e sincera. E não ligo se me acusam de fanático inconsciente. Minha escolha – e não quero que ninguém me siga, nem acredite – vem das vísceras.

A Dilma é uma senhora obtusa, mal educada e gauche. O Aécio um fantoche de margarina, ensebado, feito de plástico reciclado.

Mas hoje de manhã, a Maria me disse: “ele vai ganhar e a gente está ferrado se ele ganha. A gente, eu digo gente como eu, pobre, não como o Senhor”. Quem sou eu para ter a pretensão de duvidar da Maria? Do alto dos meus diplomas, minha grana, minha vida ganha? Quem sou eu para saber o que é bom pra Maria?

Aécio me dá coceira.