Monthly Archives: July 2009

Vaidade digna de insignificância eterna

Outro dia, dois improváveis macaquinhos apareceram no jardim. Fiquei observando os primos alguns instantes e corri pegar a máquina. Quando voltei, eles tinham fugido. Mas de vez em quando, eles ressurgem e fazem caretas na minha cabeça.

A nossa história é um bagunça de eventos que a memória edita. A linearidade é uma presunção da linguagem. Toda criação é uma intenção ideológica. Ela tem um propósito, ainda que inconsciente.

Os saguis serviram-me para dizer que minha casa é selvagem, que sou fino observador, para irritar o sensacionalismo ecológico ou, aqui, para fingir-me de contador.

Os índios documentam-se com rigor cerimonial. Numa selva de símbolos, eles retratam suas crenças, temores, exorcismos e proezas em rituais eternamente recriados.

Nada mudou desde da noite dos tempos: somos todos documentaristas, como se isso desse mais razões a nossa incompreensível existência.

Inventamos sem cessar, instrumentos e técnicas, que calcificam a fugacidade dos eventos que mobíliam a vida.

O registro é uma espécie de obsessão pós-moderna que a Internet finge eternizar.

Os sentidos se esgarçam e vulgarizam na velocidade da tecnologia. As mensagens se simplificam ao sabor das oportunidades. Nossa história transforma-se em uma espécie de exibicionismo documentado. Agora, toda hora, para sempre e todos.

E se os macacos fugiram antes do clique, precisamos re-encenar o evento. Rápido, rápido, de qualquer jeito. Precipitar a edição dessa forma transforma nossa história em propaganda ridícula e gozação das plateias que assistem.

Vou inventar, sem avisar, um bug esteta que vai apagar do YouTube essa pornografia inútil.

Caro T.

Obrigado pelo seu email mas não sei ao certo porque estou respondendo. Sim, a vida que levamos nos torna mal educados. Ou então mais impulsivos e verdadeiros, se entendermos que educação é a arte de esconder a sinceridade por detrás de pílulas douradas. Administrar o tempo é a formula da sobrevivência e nem sempre fazemos as escolhas mais simpáticas.

Li seu email e, apesar dos salamaleques, você fala um pouco das suas duvidas, genéricas e grandiosas. E elas me trouxeram uma gostosa nostalgia. Uma certa saudade desse tempo em que eu nadava aflito no aquário, com aquelas impenetráveis paredes de vidro que me projetavam um mundo de infinitas possibilidades.

Mas levei o assunto um pouco mais a serio quando você me acusa de retratar uma realidade crua. Foi então que fiquei preocupado. Realidade e crueza são termos redundantes no meu vocabulário.

A realidade é crua e só conheço um jeito de engolir: voltar para o aquário. Voltar a ser inquieto e louco para fazer grandes coisas impossíveis.

Minha confissão é a expressividade. O fauvismo me cativa mais do que o impressionismo, o preto no branco mais do que o cinza, a opinião mais que o consenso, o extremo mais que o mínimo denominador comum.

T., o único conselho que posso lhe dar é você aprender a equilibrar convicção com curiosidade. A sinceridade sempre será premiada. A coluna do meio pode até te dar dinheiro, mulheres e fama mas se não é só isso que você procura, então talvez você goste desse mundo. Se você acredita em responsabilidade e utopia, o clichê não vai matar a sua fome, nem o truque, nem a grana.

A imaginação é mais importante que a ciência, e quem disso isso foi o maior cientista do século XX.

Na propaganda, ainda tem quem ache melhor adormecer do que despertar. O desconforto é melhor do que o chinelão passe-partout, e quem diz isso é o peixinho que lhe escreve.

Socar sem sujar

Tem gente que grita, arranca a sobrancelha, se lambuza compulsivamente de chocolate, detona o cartão de crédito, entope os ouvidos de um terapeuta, envergonha um padre, xinga o juiz, massacra o controle remoto da televisão, hiberna com o barrigão pra cima, se afoga num copo de cerveja, vocifera em nome de Jesus, mergulha em jobs imaginários até altas horas, coleciona tampinha, piada, GIF animado, coruja, mentira ou botox.

Sem esses pequenos cacoetes a vida seria enfadonha ou a morte atrasada.

O inferno são mesmo os outros.

E eis que, como se não bastasse tanta compensação, como se elas não fossem suficientemente criativas, surge a colaboração na Internet.

Se o prozac digital é igualmente prejudicial à saúde, à fé e à sanidade mental, ele tem uma vantagem quase irresistível: a eloquência.

Delirar no seu blog, expor-se no seu twitter, viralizar onde não se é chamado e manifestar-se onde se é, é um lustre de vaidade.

Nunca subestime o poder espalha-merda da Internet. E merda compartilhada é mais gostoso.

Escrevo porque o duelo em campo aberto está fora de moda e já me teria matado.

Bater com o dos outros gozar com o seu

Uma empresa é uma cultura de bactérias taradas e, para procriar nesse ambiente, uma dieta se impõe. Aí vão três possíveis dicas de como gozar nessa sopa.

1.    Senso crítico: consuma sem moderação

O senso crítico não é uma qualidade, é uma postura. É dizer não ao senso comum, vulgar justamente porque comum. A banalidade é um entorpecente cheio de radicais livres: envelhece e mata. A poção da fertilidade é destruir a golpes de espírito de a solução na ponta da língua.

2.    Autocrítica: coma escondido

A autocrítica não é um talento, é um exercício. É se olhar no pior ângulo, forçar a barriga, não tomar banho para se lembrar que somos fedidos por natureza. É uma prática privada, íntima, solitária, porque autocrítica em público é pornográfico.

3.    Não se levar a sério: a última garfada

O não se levar a sério é uma espécie de barra de energia. Dá uma força na última estocada. Quando o senso crítico e a autocrítica se esgotam, e até a mais perigosa posologia – a boa vontade e o carinho – sucumbem, relaxe porque sempre vai ter um papai sabe-tudo de plantão para te dar de mamar.

Pesquisa qualitativa é espiritismo

Quando era adolescente, apesar dos alertas místicos da minha mãe, eu adorava fazer a brincadeira espírita. Em volta do copo emborcado, cercado pelas letras do alfabeto, entoávamos, concentrados, “Esprit, es tu lá?” e a entidade rangia respondendo a nossas perguntas.

Certa vez, manifestou-se o avô de um amigo, jazzista famoso, que pediu ao neto para sentar ao piano. O copo bailou em infinitos círculos sobre a mesa. Outra: baixou o espírito do meu tio-avô, em cuja homenagem carrego meu nome. Ele revelou não ter morrido limpando a espingarda, mas suicidando-se em nome de um amor proibido.

Pesquisas qualitativas são sessões espíritas onde a moderadora é o copo, e o espírito esconde-se atrás do espelho.

Se é verdade que esses exercícios são tão previsíveis quanto deseja-se antecipadamente, os consumidores são mentirosos contumazes. Charlatões diplomados, eles vituperam opiniões, concentrados nas coxinhas e na gratificação.

Se as pesquisas qualitativas são um PowerPoint de revelações, elas são um tributo à obviedade, uma demonstração de fé de charlatão, um maldito instrumento de poder e um analgésico da pressão gerencial.

Meu amigo tinha acabado de perder o avô que nunca soube que ele tocava tão bem. Premido pela inocente paixão, eu perguntava-me se a morte era legítima demonstração de amor.

A inocência é filha bastarda da manipulação.

Não brincávamos com o copo para reconciliar-nos com a fé. Antes queríamos a manifestação de nossa vontade reprimida.

Não devemos brincar de pesquisa qualitativa para ver o espírito da verdade apontar o caminho. Antes devemos vê-la como o necessário alívio da nossa intuição.

Vamos plantar árvores para poder matá-las!

Um amigo me colocou diante da seguinte pergunta: “Se houver um incêndio em sua casa, o que você salva primeiro: seus CDs ou seu iPod?” A resposta foi fácil: “Meu iPod porque tenho amor à vida.” Mas tenho certeza de que eu ficaria infinitamente arrasado de ver tudo queimar. Se todos os livros que quero existissem em suporte digital, eu correria a comprá-los e, de preferência, se eles pudessem vir pelo correio acompanhados do livro de papel.

O que o as modernidades de suporte digital proporcionam é portabilidade, praticidade e economia.

E o prazer de pegar? Prazer sem toque é prazer? Quem nunca acariciou uma bunda de mármore num museu?

E o prazer de ter? Prazer sem posse é prazer? Quem nunca quis prolongar infinitamente um abraço?

Quando Malraux descreveu longamente Tchen apunhalando um homem em “A Condição Humana”, ele legitimava o crime político com o prazer carnal de enfiar a faca no corpo do traficante de armas.

A dead tree society, como todo rótulo em inglês, é muito chique. Mas ainda prefiro folhear uma revista a browsear um site. Ainda prefiro ver os livros empoeirando na estante do que aquele monte de bits adormecidos nos HDs.  Ainda prefiro o manifesto ao espírito.

Quando Jean Genet foi preso por roubar um livro e disse que não sabia quanto custava, mas sabia seu valor, ele talvez também estivesse se referindo ao prazer de esconder o volume junto ao corpo, numa espécie de simbiose sensual com a obra.

Baixar um livro numa biblioteca digital ou uma música na Internet é sensacional. Mas não é roubo porque não tem esse valor aí, o valor de tocar e possuir. E se não tem valor, não deveria custar. Ou muito pouco.

O gozo físico da coisa vale muito mais do que o fugidio simulacro de prazer intelectual proporcionado pelo digital.

Talvez seja por isso que pagar pelo digital só faz sentido se for ridiculamente pouco. Talvez seja por isso também que o físico descuidado, mal-acabado, só faça sentido se custar muito pouco. Um download tem que ser quase de graça. Uma publicação vagabunda idem. Assinaturas digitais e impressões em papel de pão não têm valor.

Não há sacrifício mais nobre do que uma árvore morrer por um belo livro. Não abro mão deles, mesmo que para isso eu tenha que plantar uma floresta dentro de casa.

Relacionamentos online: a inclusão que dá

João procura as botas do diabo até hoje. Disseram que, nas quebradas em que ele se esconde, tem pouca chance de ser alguém na vida. Até o “marvado” se perdeu por lá. João bem que tentou de tudo que é jeito: foi entregador de jornal, contínuo e hoje, pra escapar da exclusão, ele persevera falando com Deus e o mundo, em sua baia de telemarketing. João tem a idade de Pedro, que  estuda e viaja e até tem carro. João é um dos 323 amigos de Pedro, e Pedro um dos 362 amigos de João.

João nunca leu “Terra dos Homens”, mas ele sabe que só existe um luxo verdadeiro, o das relações humanas. No Orkut ele é tão rico quanto Pedro. Tão popular, ativo e bacana.

Assim como já foi para as salas estéreas onde se batia papo com estranhos, as redes sociais são hoje a maior razão para se conectar. E 92% de todos os internautas brasileiros já se relacionaram online.

A mãe de Pedro sempre lhe ensinou a ser discreto. A mãe de Pedro não tem perfil no Orkut, porque ela tem vergonha. Sua vida e a das suas amigas é regida pelo “que não vão dizer?”. Ela não entende seu filho que passa o dia escarafunchando a vida dos outros e se devassando online.

A Internet é a terra do quem-te-viu-quem-te-vê e 60% dos 45% de internautas que já colocou algum conteúdo online foram motivados para ilustrar ou contar algo sobre sua vida pessoal.

João comprou um celular bacana numa promoção. Mais do que para falar, o celular serve mesmo para fotografar. João virou um repórter do seu mundo e da sua vida. E, quando os 23% de bacanas que reclamam da conexão de Internet em casa dão uma folga, ele atualiza seu perfil com suas novas descobertas, como 39% de todos aqueles que ativamente usam a Internet para existir.

João que pertence à metade de todos os Internautas brasileiros e Pedro, à outra metade, nasceram para ser diferentes, mas em algum lugar eles são iguais, e isso faz toda a diferença.

Brasil um país de, ainda, e-excluídos

Aqui se vota na urna eletrônica e ainda tem político comprando voto a troco de chinelo.

Aqui se faz declaração de imposto de renda pela Internet e a sonegação mora nas barbas do poder.

Aqui se faz BO pelo computador e ainda tem filas kafkianas no Detran.

Aqui 50% da penetração das pessoas que acessam a Internet ganham menos de 2 salários mínimos de renda familiar, e 50% das famílias ainda ganham menos de 2 salários mínimos.

Aqui acesso à Internet não tem nada a ver com renda. Somos o país das correlações arrevesadas.

A penetração de Internet no Brasil é de 35%, segundo a última pesquisa F/Radar. Vamos nos comparar primeiro com outros pobres anabolizados: na Rússia é 26%, incluindo as matrioscas; no México, 23%, sem contar os zapatistas; na China 23%, segundo o mais democrático governo do mundo, e na Índia 6%, incluindo as vacas sagradas.  Isso significa que somos o mais digital dos nossos primos.

Já nos Estados Unidos, a penetração de Internet é de 73% e nos países europeus, por aí também. Essa diferença tem alguma coisa a ver com grana?

Pois vejamos: a renda per capita dos Estados Unidos é de 46 mil dólares (ou era, antes do catastrobushismo, sei lá).  A do Brasil é de quase 8 mil dólares.

Ou seja, somos quase 6 vezes mais pobres mas só 1,6 vez menos conectados.

Então, se ainda somos mais pobres do que Botsuana – aqui 31% estão abaixo do nível de pobreza contra 30% no país africano –, a gente deu um jeito e já dá pra falar em inclusão de acesso (e não digital). Obrigado, informalidade.

Já o acesso em casa são outros quinhentos. A penetração é ridícula ainda: pouco mais de 20%: 63% nas classes AB, 19% na C e ridículos 2% na DE.

Mas será que isso tem alguma importância? Talvez não tenha, na teoria, afinal de contas, se a Internet é canal de relacionamento, não precisamos estar em casa para xavecar, nem convém. Se Internet é informação, idem. Se Internet é atividade profissional, menos ainda. Quem tem tempo em casa de fazer muito mais do que dormir?

Mas tem sim: para comprar. Onde já se viu “comprar pela Internet fora de casa?” 72% dos internautas que já fizeram compras pela Internet o fizeram de casa. Vai saber por quê!

Em outras palavras, se a maioria das pessoas no Brasil acessa a Internet fora de casa (77%), esse monte de gente nunca comprou.

Aí está o nosso novo desafio, o gargalo que não tem nenhuma importância pra quase tudo, menos para aquilo que parece ser uma das salvações da lavoura da economia: o comércio eletrônico.

Esta é a nova fronteira: a inclusão comercial.

Marketing global que estais no céu

Na sala de reunião abarrotada de executivos, prepostos dos acionistas de férias nas Maldivas, um frenesi criativo agita as mentes. Ali irá decidir-se o destino de uma marca e como ela irá formular seus mantras planetários. É também a ocasião de ouro para surrupiar uns minutinhos de fama e ambicionar um memorando de recomendação para posto mais confortável em um país inútil. Há aqueles que sonham em ser CEO da Romênia, ou, quem sabe, CMO na Ucrânia, e os domadores profissionais, matracas de frases de efeito.

Num canto, uma inglesa gigantesca, cabelos tristes e olhar desbotado por décadas de transcrições aproximadas dessas orgias burocráticas, castiga seu notebook. Seu gato persa, está em algum lugar da casa, abandonado à própria agonia. A sobrinha escreve-lhe queixando-se do namorado machão. Há meses que ela não visita a mãe no asilo e, à noite, seu namorado de anos talvez lhe peça finalmente em casamento.

O workshop de café requentado e paletós amassados, ferve a cada palavra nova, fresca, nunca usada em nenhum encontro da “mediocracia” mundial. As missões são alinhavadas na mais vaga das ambições: vamos dominar o mundo com entusiasmo e dedicação.

A inglesa sabe que tudo acaba às seis. Mais meia hora para assassinar um PowerPoint, disparar o email sagrado aos quatro cantos do tabuleiro e correr para comprar para o jantar duas fatias de rosbife e uma geleia de laranja enlatada.

A tarde transcorre e o baile continua, os dribles, os golpes baixos e os transes inspirados.

Lá no escritório central, a masturbação termina e ejacula-se, mundo afora, das mãos da solteirona escriba.

A megatendência: o dijaine

Num conto futurista (Tofler, ou seria Bradbury? ou Asimov?), a sociedade era comandado por um computador provedor e um sistema ideológico de controle das tarefas dos homens. Uma espécie de “Tempos Modernos” exacerbado: “Aperta seu parafuso, Mané, e nem pense em saber em que porca ele irá se meter”. Um dia, a máquina pifa, e os Mané se apavoram sem saber como restabelecer a ecologia do mundo. Até descobrirem o último desempregado generalista capaz de colar os infinitos destroços da humanidade.

O mundo é uma ecologia de destroçados. Um quebra-cabeças de… de… como podemos chamar isso? …sei lá eu… dijaines?

Dijaine gráfico, Web dijaine, dijaine de interior, dijaine de moda, hair dijaine, dijaine odontológico, cirurgia de dijaine estomacal e dijaine futebolístico. Dijaine de parafusos e porcas. Dijaine molecular, atômico, subatômico, quântico.

Já que não sabemos mais descrever as moscas que penteamos, a gente usa a mais dijaine das tendências literárias: dijaine.

E a ditadura do dijaine nos persegue, encarcera, oprime. Se não for dijaine, é primitivo. Dijaine é o avesso de natural. Dijaine é o contrario de intuitivo.

Adão comeu a maçã e criou o dijaine para disfarçar seus pudores.

O dijaine é o prozac hype para o drama de nossa condição de primatas metidos a besta.

(em tempo: dijaine é marca registrada de Ricardo Freire dijainer de viagens)

A crise do retardamento mental na propaganda

Pronto, virou moda. A crise saiu da economia e entrou na propaganda. Crise de retardamento mental.

A moda agora é o saudosismo megalomaníaco e super produzido, a auto-ajuda coletiva, o clichê do clichê da propaganda do Estado Novo, da propaganda maoísta, neo-fascista. É o País-que-vai-pra-frente-em-berço-esplêndido-heil-mein-führer!

As cenas são Pedro Alexandrinos over-pós-produzidos; os textos, Stefan Zweig nanico; as locuções, pompas fúnebres; as trilhas ora singelas aquarelas, ora bandas sinfônicas de coreto e as mensagens comemoram o suor, o esforço e a perseverança tabajara.

O humor não é mais de circunstância: a ordem do dia é a grandiloqüência. A leveza e a poesia são coisa de veado. Contemporâneo é marchar de cabeça erguida varonil.

Por que será que nos deu esse surto de complexo de inferioridade? Os tenentes de pijama saíram do armário!

Interatividade não é para amadores

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Quem já foi a Veneza, certamente suspirou numa ponte. Seja porque se emocionou, seja porque um turista afoito com sua agenda cultural-consumista pisou no seu pé. Mas debaixo da mais famosa de todas, hoje só se bufa: instalaram um monumental painel de uma marca de luxo emoldurando o acesso à ponte. A Ponte dos Suspiros foi conspurcada, enquanto duram obras de restauração à italiana – intermináveis. A publicidade é capaz de tudo quando brinca de arte. Recriou o cartão-postal.

Mas a Bienal de Veneza é mais interessante que o Festival de Cannes, e o artista sabe disso quando renunciou à propaganda pelo cinema e ao cinema também.

Não existe cena mais povoada na arte ocidental do que “As bodas de Canaã”, de Veronese. Cento e vinte e seis personagens, sem contar cachorros, gatos e papagaios, rodeiam o Cristo para as núpcias milagrosas. Quem quiser ver o original vá ao Louvre, que abriga o quadro surrupiado do refeitório de San Giorgio Maggiore. Mas uma revolucionária reprodução da obra devolveu o trompe l’oeuil a seu habitat original. Lá estão todos eles de volta: os noivos, os músicos, os convivas, os serventes e a urna do vinho multiplicado.

Senta-se num palco tosco e aguarda-se. As luzes se apagam quando entoa-se uma cantata. O quadro se ilumina e somos convidados para a festa. Partes da cena acendem enquanto ouvimos diálogos atribuídos aos participantes: os fuxicos da cidade aqui, lampejos de discursos políticos ali, interpelações, invectivas, saltos de humores. O ambiente ganha vida, luz e três dimensões. O dia passa, fogos se acendem, chove, pássaros voam no céu.

– Eram trezentos convidados e vieram quinhentos! Não haverá vinho suficiente para todos
– Quem é ele? Um homem, um charlatão, um profeta?

E impassível, minúscula cabeça aureolada no centro da composição, o Cristo opera seu milagre.

Peter Greenaway reinventou o cinema, de novo, e sentimos gosto de vinho santo na garganta.

Interatividade é para os brutos que nos tornamos

Quando Constantinopla foi tomada pelo exército otomano, em 1453, os soldados do islã invadiram Santa Sofia e impressionaram-se com as imagens sacras que ornavam a catedral. Chocaram-se também com a ousadia de contrariar a palavra de Maomé que proibira a imagem como representação do divino. O dilema se armara entre a destruição daquelas maravilhas e o respeito à palavra santa. Trataram então de revestir as imagens com suas descrições, num inebriante entrelaçado de frases e palavras.

Não muito longe dali mas séculos depois, quando os colonizadores trouxeram o cinema para a Argélia – cinema propagandístico das glórias do exército – eles convidavam os notáveis das aldeias para a avant-première. Os muçulmanos, naquele tempo, ainda respeitavam a palavra do profeta: era ímpio reproduzir o ser humano. Preocupados com a recepção, os generais colocavam as cadeiras de costas para a tela para receber os convidados. Quando a tela se acendia, um narrador descrevia para a plateia as imagens, mudas ainda, que se sucediam.

Ler parece meio fora de moda. Precisamos de imagens, movimento, som. Carecemos de estímulos sensoriais para despertar. Crescemos as telas, aceleramos a ação, aumentamos o som. Como se a vida moderna, ao invés de agitar nossas sinapses, as calcificasse. O sentir passa a ser fator de volume e intensidade.

É nesse turbilhão que se insere o apelo à interatividade. A nova fronteira do estímulo sensorial são esses simulacros de participação – que ensaiamos no cinema, nos games, nos ARGs – e toda a parafernália tecnológica que não cessam de nos excitar. O sussurro do vento, o rugir do mar, a voz a capela, o canto do realejo não despertam mais.

Minha mãe dizia que, quando tomava o bonde no Rio de Janeiro, adorava concentrar-se na ponta da orelha de algum passageiro à sua frente. Invariavelmente, após alguns instantes, ele virava o rosto e respondia ao chamado. Hoje, entupimos nossos tímpanos com fones de ouvido, penetramos no game, e de todo jeito ausentamo-nos do mundo simulando participação nas narrativas.

Não é saudosismo, é como tem de ser. E se a nova descoberta for a imersão neurológica, que assim seja.

Mas minha sobrinha continua encantada quando lhe conto pela enésima vez a história triste da pequena vendedora de fósforos: “fazia um frio terrível, caía a neve e estava quase escuro, a noite descia: a última noite do ano…”

Histórias interativas: ai que preguiça!

Em Marrakesh tem uma praça mágica. É uma zona gigantesca, cheia de barraqueiros, amestradores de macacos, encantadores de cobras, ambulantes sinistros, fantasmas que perambulam numa densa fumaça de temperos exóticos. E tem contador de histórias. Muitos. Um deles me atraiu. Ele gesticulava, falava pouco, olhava muito. E fiquei ali, muito tempo, paralisado e enfeitiçado sem entender uma única palavra do que o barbudo contava.

Ontem, a noite era fria e silenciosa. Me larguei na frente do computador, como todo dia, e comecei a chafurdar na Internet. Aqui, ali, de todos os lados. Ao compasso dos cliques, a adrenalina subiu, a ansiedade martelando nas meninges. Me deu náuseas e, apesar da atividade frenética do meu cérebro, me senti profundamente desamparado. Larguei o aparato todo e despenquei no sofá. Liguei a TV no primeiro canal que minhas forças me permitiram ligar. E ali fiquei, muito tempo. Deu um calorzinho gostoso.

Uma história exige linearidade, uma cronologia, um começo, um meio, um fim. Uma história precisa de um narrador (ou mais de um) que tece o fio, passo a passo, segura a atenção. Ele é o foco, o centro. Se uma porta se abrir, se pessoas conversarem ao fundo, se o seu vizinho te cutucar ou roncar, a história desmorona como um castelo de areia. Para que a história fisgue, a relação que se estabelece entre o contador e o ouvinte é de atividade-passividade.

Claro que uma história pode ser interativa. Mas uma interatividade “passiva”, não “intrusiva” e quanto menos “colaborativa”, melhor para a história.

Eu preciso de passividade e atividade, atividade e passividade. Preciso ser e estar. Ser ativamente e estar passivamente.

Quando quero ouvir uma história, ainda prefiro um livro onde a página dois vem depois da um, e a três depois da dois. Ou um filme, uma novela, onde o segundo minuto vem depois do primeiro.

Quando quero uma história, eu quero um contador e quero que ele não conte comigo para fazer o seu trabalho.

A redenção da política

Com ou sem Ben Self (diretor de tecnologia do partido democrata) se o marketing na rede não vai eleger os candidatos, ao menos vai ajudar muito a riscar do mapa uma legião de safados.

Acabou de ser aprovada na câmara uma lei que regulamenta a propaganda na Internet. A lei é ingênua e vaga, como todas que se referem à desfronteira, mas é um avanço. Tímido, mas avanço. Proíbem, por exemplo, a propaganda em sites comerciais, mas autoriza aqueles não comerciais a veicularem mensagens políticas, inclusive redes sociais e que tais. Como se fosse possível hoje, em tempos de posts patrocinados, discernir o que é “comercial” do que não é! Como se possível fosse proibir, tout court, na Internet!

Mas o fenômeno Obama excita as mentes. E muitos se excitam superestimando o aparato de marketing digital que a equipe do presidente desenvolveu. Obama não ganhou por causa, nem graças ao marketing e muito menos suportado ou amplificado pela Internet. O marketing foi consequência e não causa da eleição.

A Internet não é um palanque eleitoral e todos aqueles que a usarem como uma carreata espetaculosa vão quebrar a cara. Propaganda eleitoral paga, daquela que reproduz a lógica da mídia de massa, na Internet, não carece de controle nem proibição, é contrapropaganda.

A Internet é um fenômeno de sociedade baseado na espontaneidade, na voz individual sincera. É claro que pode-se fazer barulho, influenciar multidões de seguidores por algum tempo. Mas a Internet é muito mais pródiga em desmascarar e desnudar.

A lógica é inversa àquela da propaganda tradicional: a mentira convincente, porque bem contada, paradigma da propaganda de massa, tem vida breve nas mídias sociais e é totalmente incontrolável. Cedo ou tarde, o julgamento é avassalador e destroi reputações mal-intencionadas.

A propaganda eleitoral e a doação de campanha têm que ser totalmente livre na Internet, uma vez que a rede é autorregulamentada. E nesse território, a política se redime, pois a mentira, a manipulação, a sem-vergonhice, tem perna curta.

Se Obama ganhou as eleições foi devido ao fato de ele ser sincero e acreditar no seu discurso. E talvez seu opositor, mesmo afirmando suas convicções retrogradas teria tido outra performance, não tivesse sido ele suportado por anos de propaganda mentirosa.

Candidato, minta à vontade nas mídias tradicionais, ainda funciona um pouco. Mas, se quiser usar esse espaço livre, é melhor ser sincero, ou o eleitor te pega nas curvas da teia.

Propaganda de gozo autoprovocado

A propaganda é baseada em um princípio sagrado, o da tolerância.

Trata-se de uma espécie de toma-lá-dá-cá. “Aceito ser impactado por algo que não quero, em troca de algo que quero”. Simples assim. É baseadas nesse princípio que funcionam quase todas as mídias: a TV aberta e o rádio, por exemplo. A Internet também. Os outros meios, como a TV por assinatura, o jornal e a revista, embora não sejam gratuitos, são tolerados porque o valor pago parece irrisório quando comparado aos benefícios oferecidos.

No entanto, quando o valor pago pelo serviço solicitado ou desejado parece desproporcional à mensagem “não desejada”, a propaganda é intolerável. É o que acontece, lamentavelmente, com quase toda propaganda chamada “below the line”, eufemismo publicitário para qualificar a propaganda invasiva, como a propaganda veiculada em aviões, o que vem sendo praticado de forma pornográfica por algumas companhias aéreas. É propaganda na mesinha, no encosto do assento, e, suprassumo do mercantilismo selvagem, nos lanches patrocinados. É mais uma vez uma questão de proporção: passagem aérea não é algo irrisório quando comparada ao bombardeio publicitário a que deve se sujeitar o passageiro. O mesmo acontece com a prostituição visual da mídia exterior gratuita que, sorte nossa, está sendo banida das nossas retinas (exceção dada aos relógios, pontos de ônibus, sinalização e outros mobiliários). O que falar então da festejada mídia indoor, dos monitores mudos dos ônibus urbanos, dos malhos feios nos shopping centers, dos mictórios decorados com televisão de plasma? Promiscuidade comercial e vulgarização do tempo.

Lamentavelmente, muita gente ainda defende a propaganda da forma mais selvagem possível: a efetividade é proporcional tão somente ao impacto visual e sonoro. Para esse tipo de troglodita, é o tamanho da voz que determina o resultado. E pouco importa se a voz está gritando, poluindo, estressando ou insultando. É a lei bruta do mais forte ou do mais esperto. A lei da exploração safada da fragilidade alheia: que alternativa nos resta a não ser ler que uma marca de carro está lançando um modelo novo, uma empresa de consultoria é a melhor do mundo e a sopa de saquinho é feita de improváveis ingredientes naturais?

Mas há outro tipo de propaganda. É aquela admite que, embora por vezes haja tolerância, mesmo assim a invasão precisa ser compensada. É aquela que sabe que a mensagem deve servir antes àqueles que irão consumi-la e depois àqueles que a financiam. É aquela que entende que propaganda pode ser conteúdo, pode ter um sentido para além do tamanho da voz e da simplória informação: é a propaganda que diverte e emociona sem precisar lustrar o umbigo da marca. Quando ela consegue isso, então ela assume uma dimensão cultural, ela é referência e inspiração. Essa transcendência além de responsabilidade, engendra um potencial comercial muito mais rentável porque a mensagem incorpora a linguagem comum e as mentalidades. Aí sim pode se falar de “investimento” e não “despesa” publicitária.

Propaganda pode ser muito mais do que egotrip e gozo autoprovocado. Quando o desserviço é tal, quando a propaganda masturba a marca, ou o marketing ou o publicitário que a cria, dá muita vontade de proibir ou sabotar.

Twittiqueta urgente!

Há um complô na mídia brasileira para bombar o Twitter.

Ele está em 10 de cada 10 assuntos abordados nos mais variados terreiros: ele engendra elucubração geopolítica, derruba autoridades, pré-mata ou enterra personalidades, crucifica e beatifica opiniões.

O Twitter é mesmo uma espécie de Stefany da Internet: pega mal estar por fora, ou é “muito barulho por pouco”.

Entretanto ele é um perigo, não somente porque contagia mais do que cacoete, mas também porque conta muito sobre seus autores ou disseminadores. E, pela primeira vez na história dos costumes humanos, as confissões, no Twitter, são autorais e, melhor ainda, catalisadas pela deliciosa ilusão de ser seguido por uma legião de fãs.

O Twitter revela o caráter de alguns, as frustrações de outros e os complexos de todos aqueles que acreditam no extraordinário terremoto socioantropopsiquiátrico do piu- piu.

O Twitter pode transformar todo mundo em rei nu. A plateia vira gozadora e o confesso, bobo da corte.

“Criação” (entre aspas?) publicitária

It’s not where you take things from – it’s where you take them to. (Jean-Luc Godard)

Autenticidade é quase um defeito de caráter na profissão publicitária. O estilo é escravo da idéia, quase sempre oca, porque corroída por infinitas camadas de referências.

Ser criativo na propaganda é antes “conexão” do que “intuição”. É antes colocar na mesa (ou ocultar maliciosamente) uma tonelada de déjà-vu, do que exercício de estilo. Estilo, esse tão maltratado conceito na propaganda.

E que mal a Internet (os anuários de propaganda impressos do passado anabolizadíssimos) faz!

A propaganda virou escrava do “novo”, só que o novo com a Internet não existe.

E os criativos (e planejadores) viraram cool-hunters digitais, máquinas de pesquisa, browseadores alucinados.

Mas, se criar não é um ato de inspiração pura, divina, se criar não é conectar-se com o éter místico, não é baixar o santo, o que é criar?

Será criação a busca pela ideia? Nova?

Quando a busca é pela ideia, a tentação pelo novo é quase irresistível. Peneira-se o que “ainda não foi feito, dito, mostrado” e isso significa balizar a criação, relativizá-la no tempo e no espaço. O que não foi feito AQUI ou que não foi feito FAZ TEMPO (ou o que ninguém sabe que foi feito). E esse referenciamento justifica a obra em inspirações do passado. A referência, a bagagem, o aprendizado, a vivência quase sempre sobrepõem-se a uma autenticidade que só a visão individual pode imprimir. A ideia (original?) é banalizada porque desprovida do estilo que redime e projeta uma nova visão sobre ela.

Mal traduzindo Proust: “Porque o estilo, para o escritor, assim como a cor para o pintor, não é uma questão de técnica, mas de visão. Ele é a revelação, que seria impossível por meios diretos e conscientes, da diferença qualitativa que existe na forma como o mundo se revela para nós, diferença essa que, se a arte não existisse, permaneceria o segredo eterno de cada um”.

A fotografia é o mais simples dos exemplos. A beleza de uma foto não está no objeto fotografado, sempre o mesmo, imortal e imutável no clique, mas no olhar do fotógrafo. E olhar é estilo.

Criar é olhar e interpretar, linguagem e estilo. Criar é recolhimento e contemplação interior.

Claro que isso não significa fechar as portas e janelas para o mundo, ainda que isso fosse possível. Deve-se cuidar para preservar as referências no inconsciente, onde elas produzem seu efeito catalisador de onde emergem no estilo único de cada criador.

Ou talvez a gente tenha que assumir que a propaganda não está “criando” coisa nenhuma, e o mal só esteja em dar um nome pretensioso, “criação”, a um ofício automático, muitas vezes com uma ética duvidosa. Se assim for, vale ser o Max Blogosfera, o Merlin do YouTube, o Chupachups supernerd, o Mister Hype da Oscar Freire, o Lord street, o oportunista de plantão que viu primeiro ou antes.

Mas a propaganda pode ser criação, pura, tocante, que nos devolve transformação, quando ela consegue recriar o mundo com o estilo, original do autor. Quando a gente resolve assumir que todo mundo já sabe que a Terra é azul, que as mães amam seus filhos, que um carro é testosterona, que as mulheres não querem ser suas mães, que uma geladeira é símbolo de status, que cerveja cria cumplicidade, que a gente quer serviços sob medida, que comer um chocolate é um orgasmo, que uma moto é liberdade ou afirmação ou individualidade ou simplesmente um meio de locomoção barato e rápido. Quando a gente saca que não há descoberta possível nos DNAs banais das marcas, a não ser pelo jeito como olhamos para elas. Não há possibilidade de emocionar, a não ser pelo estilo próprio e único que desenvolvemos sobre aquilo que já foi dito um milhão de vezes.

Por que será que quase dez entre cada dez porcarias que vemos na propaganda foi submetida aos consumidores em ambiente de teste e aprovada com louvor? Porque, simplesmente, é dito o que todos já sabem, do jeito que todos já conhecem. Conforta confirmar o óbvio. E a repetição, a frequência exaustiva fazem seu papel bruto de convencer. A boa propaganda é aquela que rentabiliza a exposição porque toca de cara, quase à primeira vista. E toca porque devolve-nos, através do estilo, o original, e não o “novo”.

Um dos nós górdios da audiência na Internet

Existe um número mágico que mede o alcance de algumas mídias, em particular as impressas. Estima-se, há muitos anos, que cada exemplar de um jornal e revista seja lido por 3,5 pessoas em média. Esse número, embora queiramos crer que em algum momento tenha sido comprovado, é uma convenção. Ele serve de base para todos os cálculos e, assim, permite uma aproximação mais realista da audiência desses veículos. É claro que ele é discutido, pois é provável que uma revista, por exemplo, de conteúdo adulto ou de variedades seja lida por mais pessoas do que uma de engenharia ou de caminhoneiro. Da mesma forma que convenções de discurso como “bom-dia” e “obrigado” são salutares ao bom convívio social, esses multiplicadores de alcance são universais e benéficos.

No entanto, o número mágico não se aplica aos conteúdos publicados on-line. Há uma lógica por detrás disso, é claro. A Internet, como mídia, está baseada num fundamento matemático: tudo pode ser medido com exatidão. Sabe-se a quantidade de visualizações de um conteúdo, a quantidade de visitantes únicos, o tempo de permanência dos visitantes naquele conteúdo, etc. A Internet é uma mídia precisa. Porém, assim como não é aceitável considerar que uma revista seja lida apenas por um único leitor (o dono da revista), ainda que um conteúdo na Internet seja lido em primeiro grau por apenas uma pessoa (ninguém empresta seu computador ou celular), existe um componente nunca mensurado nas pesquisas, a saber, o potencial de viralização do meio.

É, portanto, válido aceitar que um conteúdo publicado (ou veiculado) em um site tem um coeficiente multiplicador, na medida em que ele pode ser facilmente difundido, seja através de um simples copy-paste num email, seja através de RSS ou reproduções automáticas. Em decorrência disso, um mesmo conteúdo (integral, em trechos ou modificado) pode alcançar muito mais pessoas do que simplesmente o visitante de primeiro grau quantificado pelas estatísticas de mensuração. É precisamente nessa qualidade intrínseca do meio on-line que reside seu poder diferenciador. É exatamente aí que reside um dos nós da audiência na Internet e, por falta de raciocínio a respeito, uma parcela significativa do impacto de um conteúdo é expurgado de todos os cálculos.

Antes de propor uma solução (ou uma tentativa de), é importante relativizar a comparação entre a mídia referida no início (jornal ou revista) e a Internet (em qualquer meio, jornal ou revista on-line, blog, rede social, etc). Na mídia tradicional, o que define o multiplicador é o suporte físico do conteúdo. É uma espécie de fator da “durabilidade” do meio. Um jornal ou revista só pode ser lido por certo número de pessoas, porque a temporalidade é limitada. E, assim, convencionou-se que essa validade é de 3,5 leitores por exemplar. A Internet, por sua vez, é uma mídia autorrenovável. Não existe vida útil de um conteúdo publicado on-line. Ele pode perpetuar-se inumeravelmente como uma fênix.

Podemos dizer que um conteúdo on-line tem sua vida útil condicionada a dois fatores: a pertinência ou simplesmente o interesse, por um lado; e a capacidade de viralização de cada pessoa impactada, por outro. Em relação ao primeiro, quanto mais “interessante” for o conteúdo, maior a capacidade de reprodução. Esse é o dado intangível e impossível de mensurar. Vai de sua criatividade, impacto, estilo, originalidade, etc. Propomos, portanto, não nos aventurarmos em tentar quantificar tal fator, para não entrarmos em divagações conceituais.

Quanto ao segundo, a capacidade de viralização de cada pessoa impactada, esse sim, talvez seja possível mensurar ou convencionar.

Tomamos como base a visitação do conteúdo. É o ponto de partida que deveria, portanto, ser multiplicado por um fator. Vamos aceitar como referência de cálculo os número de visitantes únicos do conteúdo, dado simples de obter.

A Internet proporciona diferentes atitudes por parte de seus visitantes. Alguns contentam-se com a interação do zapping. São visitantes passivos, na medida em que frequentam a Internet apenas e tão somente para ler, assistir ou ouvir conteúdos produzidos por outros. Esta é a primeira classificação de atitude. A segunda atitude diz respeito àqueles que, além de serem passivos, em maior ou menor grau também produzem seus próprios conteúdos (um email é um conteúdo produzido, assim como um blog, um comentário em uma comunidade, etc.). A terceira atitude refere-se aos que viralizam conteúdos produzidos por terceiros, seja através de um simples copy-paste ou de qualquer edição mais ou menos sofisticada.

A proposta aqui é, por conseguinte, encontrar a parcela de pessoas que possuem um comportamento de “viralizadores” na Internet. Esse número não é difícil de obter. É um valor que só se mensura por declaração dos entrevistados, mas ele é possível. Ele pode ser mensurado em clusters ou pela média (viralizadores gerais da Internet, viralizadores entre usuários de determinado tipo de conteúdo, entre usuários de redes sociais, etc).

O segundo fator a ser pesquisado é encontrar ou estimar o número de contatos de cada pessoa. Ou seja, o número médio de pessoas com os quais cada indivíduo se relaciona na Internet. Mais uma vez, o resultado pode variar de acordo com o tipo de cluster, número de contato gerais médio da Internet ou em determinada rede, o que também pode ser obtido facilmente e de duas maneiras: por declaração em pesquisa ou por informação do cluster estudado, quando se trata de uma rede social, por exemplo.

Se multiplicarmos a porcentagem de pessoas que viralizam conteúdo pelo número médio de contatos, podemos obter um aceitável multiplicador de visitantes.

É claro que nesse número estão expurgados os graus subsequentes, mas é mais razoável ater-se ao primeiro grau: já que procuramos estabelecer uma convenção, é prudente encontrar um número bastante conservador.

Para fins comparativos, é possível também estabelecer diferentes convenções para cada tipo de categoria em que se insere o conteúdo: o potencial de viralização de uma rede social, por exemplo, é certamente maior do que o de um portal, para categorizar em apenas dois grupos.

Para ficar ainda mais fácil de entender o princípio, vamos a um exemplo:

Digamos que determinado site da categoria “portal” tem 1.000 visitantes únicos por mês. O número médio geral de “viralizadores” é digamos 20%, e o número médio geral de contatos é 20. Portanto, a audiência desse site é de 1.000 + (1.000 x 20% x 20) = 5.000. O multiplicador convencionado de um “portal” seria, portanto, 5.

Se esse mesmo conteúdo estiver inserido em uma rede social com o mesmo número de visitantes únicos, teremos um cálculo de audiência diferente, já que há um número maior de viralizadores entre aqueles que pertencem a redes sociais, assim como é maior o número médio de contatos desse ambiente. Por exemplo, se o número de viralizadores é de 40% em redes sociais e o numero médio de contatos for 50, a audiência desse conteúdo passa a ser 1.000 + (1.000 x 40% x 50) = 20.000. O multiplicador convencionado de uma rede social seria, assim, 20.

Esse cálculo pode fazer toda a diferença para efeitos comparativos do impacto potencial de um conteúdo publicado em uma determinada mídia on-line e outra. Ainda, esse número pode ajudar a parametrizar a Internet na mesma lógica de outras mídias tradicionais.

A presente proposta é, evidentemente, uma idéia; entretanto, já é mais do que tempo de nos debruçarmos sobre esse tema, para não corrermos o risco de continuarmos considerando a Internet uma mídia misteriosa e de difícil apreensão. Dessa forma, quanto mais cedo criarmos essas convenções, mais rápido poderemos converter inteligências para um cenário de mídia que a cada dia cresce em complexidade.

Finalmente, o número multiplicador resolve apenas parte do problema, uma vez que a lógica da Internet como mídia deve continuar a ser alvo de estudos e raciocínios próprios. Devemos cessar de raciocinar com adaptações acochambradas, imprecisas, e míopes, ou o controle fundamental das ferramentas de mensuração inviabilizará definitivamente o mercado editorial e publicitário tradicional. Ou tentamos desatar os nós, por mais inexatas que pareçam essas tentativas, ou a esfinge nos engolirá.