Desinformação: de quem é a responsabilidade?

Passadas as eleições, é interessante olhar, com racionalidade, para a amplitude dos desafios que o sufoco dos debates suscita na sociedade. E ninguém pode bancar isentão.

Alex Jones é dono de um site de informação-com-aspas chamado Infowars, uma página enorme e muito popular à direita do espectro político norte-americano. O seu veículo de comunicação foi condenado a pagar uma indenização de mais de 1,4 bilhão de dólares por difamar as famílias do massacre de Sandy Hook, no qual 28 pessoas foram assassinadas, incluindo 20 crianças. Segundo Jones, tudo não passou de uma encenação comandada por um bando de fanáticos que militava contra a posse de armas. Ou seja, ao mesmo tempo que choravam a morte dos filhos, os pais eram acusados de farsantes ideológicos.

Quem leu a notícia provavelmente se espantou com a aparente desproporção da multa (embora a desproporção da ignomínia seja patente). Não cabe aqui relatar o tipo de jornalismo-com-muitas-aspas que esse veículo faz, ancorando sua linha editorial em desinformação-sem-aspas. O fato é não é desproporcional.

  1. Teorias conspiratórias dão muita audiência. Uma audiência decorrente não apenas de quem adere a elas mas também de quem as repudia (chamado efeito reverso da propagação de fake news: calar pode ser mais ético do que denunciar).
  2. Audiência vale muito dinheiro.
  3. A desinformação que, até pouco tempo atrás, só grassava em grupos fechados de discussão, hoje pulula em sites constituídos como veículos de imprensa cheios de fontes-entre-aspas. As lives e vídeos são profissionais e, portanto, mais críveis, fáceis de espalhar e mais difíceis de monitorar e suspender legalmente.
  4. Na internet, os mecanismos de controle da distribuição dos conteúdos publicitários ainda são precários e majoritariamente automatizados. Em outras palavras, audiências podem ser compradas desvinculadas de seus canais de destinos, através de intermediários especializados.
  5. Anunciantes compram audiências.
  6. Teorias conspiratórias não são financeiramente desinteressadas.

O Infowars e uma infinidade de outros sites e canais na internet ganham muito dinheiro, e quem paga a conta muitas vezes nem sabe que está indiretamente apoiando um canal que se posiciona contra a vacina e que acusa Barack Obama de ser o criador da Al-Qaeda, entre outras mentiras. E pior, a simples presença de uma marca famosa em um conteúdo desses o credencia: quem duvidaria de um veículo no qual a marca X de petróleo ou a Y da indústria farmacêutica anuncia?

A perversidade dessa equação causa desconforto: quem é responsável? Apenas quem cria a desinformação (que reverbera ad infinitum)? Ou também é responsável quem veicula, paga a conta e recomenda? Judicialmente, Alex Jones foi condenado. Mas, eticamente, o que dizer das plataformas, dos anunciantes e das agências que sustentam a mentira ideológica? Se a responsabilidade jurídica ainda está começando a ser debatida, e a consciência de cada um é a consciência de cada um, o impacto de imagem para uma marca é mais imediato: o efeito rebote de uma associação indesejável pode ser devastador (e muito mais caro para consertar que as eventuais eficiências ganhas com uma compra de audiência com antolhos).

Enquanto as discussões ainda estão na esfera teórica, há pouco com que se preocupar (a não ser com a consciência, evidentemente). Mas talvez já seja possível olhar com mais critério para as audiências que “compramos”: na dúvida, melhor não comprar.

De qualquer forma, do ponto de vista da responsabilidade social de uma empresa e do impacto que esta pode causar, não basta uma agenda positiva de diversidade e não bastam compromissos ambientais radicais: há mais deveres entre uma empresa, seus consumidores e a sociedade do que creem as nossas vãs filosofias ESG.

Publicado originalmente em O Globo em 28/11/2022

Culpem os mensageiros

Eu acuso os profetas, os manipuladores, os bons de fala e, sobretudo, os ases do engajamento. Todos os pequenos influenciadores escondidos covardemente atrás de seus teclados são mensageiros e agentes do caos, da tentativa desajeitada, de opereta, de tomar de assalto os poderes institucionais do País.

O semiburguês, semiletrado e semirrico – que advoga em defesa de seu fundo de comércio, de sua pensão, de sua renda e de seus valores semiconservadores, semirreligiosos e semimoralistas – possui letras, tempo e, principalmente, amigos como ele, semibabacas.

É esse baixo clero conservador, deitado na rede, olhando para a piscina de azulejos, cercada de fina balaustrada de concreto armado, um olho no churrasco e outro nas redes sociais, que destila o levante patriótico. Essa turma da vida semiganha alimenta a conspiração, o complô e a insurreição.

Não é só o pedreiro de Lagoa Santa, o estoquista de Jaguariúna, a enfermeira de Votuporanga, a manicure de Pântano Grande, o agricultor de Gravataí, o servidor de Pancas e a comerciante de Porangatu – que ganharam um lanche e uma passagem para Brasília – que devemos processar, julgar e incriminar. Eles são inocentes e talvez os verdadeiros mártires de uma “elitezeca” egoísta, manipuladora, preconceituosa, covarde e preguiçosa. Eles seguem, não influenciam ninguém.

 

A internet e suas redes sociais não são a redenção do oprimido nem a democratização da informação, tampouco o megafone do encarcerado na busca pela sobrevivência. Este não tem tempo nem paciência para isso. A elite socioeconômica, de outra perspectiva, torce o nariz para esses canais subalternos. A grande mídia também. Elas não têm tempo nem paciência para isso. As redes sociais são, antes de tudo, o playground e a tribuna do mediano, do medo da mudança e do pavor da perda de pequenos e frágeis privilégios – herdados, meritocráticos ou “surrupiáticos”.

Sim, vamos julgar quem fez poo-poo no Palácio do Planalto ou apunhalou o Di Cavalcanti. Sim, vamos julgar quem pagou a excursão ou a merenda. Sim, também os autores intelectuais e os ideólogos. Mas são os banalizadores da infâmia, da irresponsabilidade e da mentira os mais perigosos, porque invisíveis.

Não existe pessoa mais loquaz e atrevida do que o cara da piscina de azulejos, armado de um WhatsApp do último tipo e que conta os dias para comprar um jet ski quando se aposentar. Ele não precisa fazer esforço nenhum para mover a massa que despreza: é só compartilhar sem pensar, sem analisar e sem buscar fonte. É só compartilhar mesmo, porque, no fundo, no fundo, ele talvez nem concorde que a esquerda seja comunista ou que as eleições foram roubadas. No fundo, no fundo, ele talvez não queira que ninguém invada e deprede nada. Ele só quer se achar mais informado e mais responsável. Ele só quer se achar mais brasileiro e mais patriótico. Ele só quer se achar.

O triunfo desse patriotismo é o triunfo da mediocridade digital de uma poderosa malha de influenciadores inexpressivos que reverberam mentiras, verdades alternativas, imprecações e palavras de ordem para uma pequena centena de outras pessoas medíocres e seus seguidores silentes de Rio Verde e Cacoal.

Talvez 08 de janeiro de 2023 seja lembrado como o dia da insurreição da mediocridade. O dia do fracasso definitivo das conspirações semi-histéricas dos mensageiros que tardam em calar seu arsenal tagarela. Que assim seja!

O engajamento tóxico

Se aparecer uma postagem na sua rede social favorita dizendo que as vacinas são eficientes contra determinada doença em 90% dos casos, você acredita tranquilamente. Mas, se meia dúzia de scroll abaixo, outro post afirmar que as vacinas podem causar infertilidade ou impotência, qual será sua reação? (Repare que a segunda postagem é menos exata – e isso não é sem importância.) É quase inevitável que você clique no link, se houver um, e/ou procure mais informações em alguma ferramenta de busca. Até aqui, tudo aparentemente indolor, a não ser pelo fato de que, em algum lugar, esse comportamento está sendo armazenado (ou vigiado). Na verdade, sabendo ou – mais provável – não sabendo, você acaba de acionar uma engrenagem bem pensada.

Acontece que, naquele lugar em que o seu comportamento de clicar ou buscar mais informações sobre a notícia que lhe deixou com curiosidade (preocupação ou pavor), uma máquina vai interpretar que você tem interesse em “vacinas que provocam infertilidade” ou simplesmente “fertilidade ameaçada”. Esse lugar, plataforma ou rede social, vai, portanto, atender a esse interesse e lhe propor, mais vezes, conteúdos relacionados a esses temas por um motivo prosaicamente econômico: a empresa que gerencia tais dados é remunerada por aquilo que o jargão chama de “engajamento”, ou seja, o interesse que provoca uma ação (clicar, comentar, compartilhar). Quanto mais “engajamento”, mais receita publicitária que remunera tanto a plataforma – “mera” intermediária (ou pelo menos, é a argumentação que esta usa para isentar-se de sua responsabilidade jurídica sobre a legalidade do conteúdo) – quanto o produtor do conteúdo (aquela pessoa ou empresa que criou um conteúdo sobre “vacinas com risco de esterilizar”).

Continuando o raciocínio, é muito fácil entender, então, que quanto mais engajamento um conteúdo tiver, mais dinheiro vai receber; quanto mais dinheiro receber, maior será o interesse em criar conteúdos engajadores. E, como os conteúdos mais engajadores são aqueles que tocam nossos medos e culpas, a própria lógica de remuneração das plataformas impulsiona a criação de conteúdos que acionam essa engrenagem. Não é ideológico, é simplesmente econômico.

Tem mais: existe outra lógica por trás desse thriller. Todo conteúdo é sempre cuidadosamente classificado pelos próprios criadores para que as máquinas – animais burros, mas capazes de aprender – possam interpretá-lo. Pois bem, se o conteúdo for bem classificado, por exemplo, na rubrica “infertilidade” ou “impotência”, o engajamento não somente garante mais dinheiro como ainda por cima assegura capacidade preditiva. Em outras palavras, quanto maior o engajamento, mais fácil será antecipar o que as pessoas “querem” ver e, assim, retroalimentar o sistema.

Resumo da ópera: por que existe interesse político em desacreditar a vacina (para ficar apenas nesse exemplo)? Simples: porque isso engaja mais. E, se engaja mais, é oportunismo “ideológico” e, indiretamente, “econômico” criar, divulgar e remunerar conteúdos sobre o tema.

A referência à vacina é ilustrativa (podemos falar de qualquer outro assunto – não necessariamente fake), e, embora seja um caso patente de desinformação, o estrago na opinião de milhões aconteceu. E o estrago na decisão política de muitos, por pouco, não ocorreu.

A era da procrastinação

Dizem que a quantidade de dados gerados em dois dias pelas principais redes sociais do mundo é equivalente em bytes a todos os dados gerados pela humanidade até o dia da inauguração do Facebook. Dizem também que a quantidade de bytes de toda a Wikipédia é menor do que a quantidade de bytes gerados nas redes dos 100 maiores influenciadores do mundo e seus seguidores. Não sabemos como essa estatística foi calculada e não importa muito saber se está certa. O que interessa é que o conteúdo gerado pelos 100 maiores influenciadores do mundo e seus seguidores não vale um verbete da Wikipédia, nem que seja de autoria de um deles.

E tudo bem: nem tudo precisa ser tão sério e importante.

Mas, para além dessa malignamente viciante invenção chamada rede social que enforca a humanidade nas suas próprias vaidades, estamos vivendo a morte do storytelling em fogo lento.

É claro que, como toda boa engenharia social que se preze, muitos vão dizer que não é bem assim: que nunca se venderam tantos livros, séries em plataformas de streaming e filmes blockbusters; que as biografias estão bombando, assim como os podcasts que resumem a teoria quântica em 12 minutos; que todo mundo quer sua própria websérie; e que seus filhos não dormem sem ouvir pela milésima vez que o lobo mau comeu a vovó da chapeuzinho vermelho. É claro que vão lhe dar números quase tão impressionantes quanto aqueles inventados no começo deste artigo.

Mas a realidade é que basta olhar para aquela estatística de uso de aplicativos no celular para comprovar – dessa vez com números reais – que as pessoas passam um tempo excessivo procrastinando, quando não prevaricando, em redes sociais.

Então, vamos observar – simplesmente observar – aleatoriamente esse conteúdo que o dedo aflito rola todos os dias nas mãos de bilhões de pessoas. Não rola: enrola. Enrola o tempo, como Penélope esperando Ulisses, em uma infinita tristeza, tropeçando aqui e ali em piadas mais ou menos requentadas, em surtos noticiosos mais ou menos verdadeiros, em soluços que passariam mais ou menos na prova de ditado da 4ª série. Se a gente espreme muito e descarta as expressões pré-fabricadas, as mentiras óbvias e as imagens chupadas, naufragamos em destroços de conteúdos editados, parciais e estéreis. É com isso que passamos o tempo, o tempo que passa.

E porque estamos em um veículo que se dirige a pessoas de comunicação, profissionais de propaganda e marketing, isso é uma excelente notícia. Finalmente acertamos. Finalmente realizamos a profecia de Bradbury: a era da procrastinação é o antídoto perfeito à razão, essa qualidade humana que compara para decidir. Mas essa procrastinação, por se despedaçar em retalhos de histórias, também entorpece a emoção. Com a razão extinta e a emoção adormecida, é fácil convencer. Aliás, nem precisa convencer, basta pedir. Boa notícia para a propaganda. Boa notícia para o marketing.

Finalmente, a gente conseguiu um ambiente melhor do que o rádio, melhor do que a televisão, para vender. Durante muito tempo, pensamos em evoluir o formato publicitário na internet para alcançar algo mais sofisticado, envolvente e emocionante. Erro tolo. Não é a propaganda online que tem que melhorar: é a mídia, portanto as redes, que tem que seguir estimulando a procrastinação ad nauseam por meio da agonia do storytelling.

Mas a história não acaba assim. A história acaba quando nos dermos conta de que o tempo passa. Quando nos dermos conta de que procrastinar é perder o tempo que passa. É deixar de fazer o que realmente importa, o que realmente amamos. O tempo não volta. O tempo engelha.

O tempo passa, passa, passa, como uma uva-passa.

Publicado originalmente no Meio&Mensagem de 11/08/2022

Eu sou nem-nem

O que é uma crise? É um demi-monde entre aquele que está morrendo e aquele que ainda não nasceu. É a resistência disfarçada do mundo putrefato lutando contra a arrogância do que ainda não saiu das fraldas.

O sistema capitalista, que norteia a prosperidade por meio do consumo, esconde os abusos sem volta com retóricas bem-pensantes e outras ESGs. Um marketing de boas intenções para ocultar a extraordinária produção de sucata material e cultural que nos encobre. Mas, no fundo, o que se quer é mais e mais descarte. O sistema – e seus discursos cheios de propósitos factícios – alimenta a ilusão de que está indo em uma direção sustentável, mas isso não passa de uma exploração sem dó da culpa que temos de envenenar o planeta e as mentes. É tanta palestra, tanta reunião e tanta pauta fofa e cheia de boas intenções que é de se desconfiar que algo está muito podre, nem que seja só pela falta absoluta de contraditório.

Talvez haja um consolo para essa deriva, ainda que hipócrita: o outro mundo, aquele que está para nascer, excela em mediocridade, falta de argumentos e clara ignorância. Em um desfile de estudos de casos cheios de páthos e visivelmente manipulados para abalar, o ativismo das novas fronteiras não consegue desenvolver as teses de forma prática, simplesmente porque também não sabe como realizar o que é defendido. Então, a histeria lacrimosa, a chantagem de baixo calão e o cancelamento covarde são armas fáceis.

Mas a verdade é que estamos no demi-monde, repleto de fantasmas e monstros primitivos: os fantasmas do que já era e os monstros do que não é. Talvez a solução à crise não seja enfrentar as entidades, mas, sim, bailar com elas. Talvez seja mais inteligente – ou prático, ou mentalmente saudável – o diálogo sereno, uma tolerância que aceita a complexidade sem tomada de posição. Talvez o nem-nem seja mais pacífico e rume para um futuro que, por uma vez, não admita mais as dialéticas mortíferas.

La sprezzatura

Por melhor que seja a ideia, por maior que tenha sido o esforço depositado nela, por mais receptivo que seja o cliente, não é suficiente. Existe uma arte de venda de uma ideia. E essa arte tem muito mais da performance sensível do que da objetividade argumentativa.

Uma ideia é um prematuro indefeso se não for preparada, estudada, acalentada e encarnada.

A primeira etapa, mais óbvia, é a de encontrar a melhor maneira de vestir a ideia, de fazê-la encontrar sua melhor face. Não adianta ter objetividade e simplesmente mostrar como ela será vista pelos públicos. Não existe mais jornada com mínimo denominador comum no consumo de propaganda. Tampouco é sedutor tentar uma cronologia, seja de como essa ideia entrará em contato com os públicos ao longo do período planejado, seja de como ela nasceu (do problema ao insight). Essas são apenas racionalizações acadêmicas. Preparar uma ideia para ser contada é identificar seu melhor ângulo – o mais sensível, o mais emocionante, o mais impactante – e começar por ele, como se fosse um trailer, um amuse-bouche para capturar a audiência e deixá-la salivando.

A segunda necessidade é estudar à exaustão o que será apresentado. Confiar no tato, na experiência e no conhecimento da audiência está longe de ser suficiente, pois é preciso ensaio, muito ensaio. É como estudar um instrumento: tocar é só uma questão de técnica e conhecimento. Mas tocar e interpretar são coisas muito distintas. E, para interpretar, é preciso muito ensaio. Sozinho, com plateia, de cabeça, no chuveiro, nos sonhos. Quando o conteúdo todo estiver muito automático – nos reflexos, na ponta da língua –, aí, sim, a mágica opera e seduz.

Depois de tudo isso, é fundamental gostar profundamente do que se vai mostrar. Como de um filho. Amor não é algo que se encomende, claro, mas sabemos que o amor se cativa e se domestica. Uma ideia é como um filho: é preciso gostar de forma incondicional. Se não rolar essa química, melhor passar o bastão para quem tem um sentimento filial com a ideia. Passar a apresentação para quem gerou e cuidou de sua gestação até o fim. Se nem você gosta muito da sua ideia, por que um cliente ou um consumidor iria se apaixonar por ela?

Finalmente, la sprezzatura. Para apresentar uma ideia, é preciso mostrar liberdade e leveza. Contar como se fosse para uma criança dependurada nas palavras da mãe. Sem gaguejar nem censurar. Como aquela cantora que deixa as notas mais difíceis saírem da boca num espasmo mágico. Como um jogo, uma brincadeira, um gozo. Sem franzir o cenho, sem tensão na voz, sem hesitação. Curtindo. Como aquele acrobata que dobra a espinha com a mesma elasticidade de um bambu no vento. Como um Garrincha que dribla meio campo com um sorriso na face. Como um físico quântico, preso a uma cadeira de rodas e contorcido pela doença, que discorre sobre a origem do universo numa associação livre de metáforas, bailando ao som do sussurro das estrelas.

A criação, o algoritmo e Bartleby

Muito além de qualquer invenção, a Revolução Industrial do século 19 nasceu para responder a uma ideia: todo trabalho repetitivo será substituído por máquinas, mais precisas, mais rápidas, mais produtivas e não reivindicatórias. Máquinas não sofrem, não pedem e não reclamam.

O trabalho repetitivo é todo aquele que prescinde de raciocínio, ponderação e análise para ser executado. É apertar parafusos, digitar textos, preencher planilhas, calar nas reuniões, ler em diagonal, jogar Minecraft e rolar miseravelmente as redes sociais inventadas para sequestrar o tempo. Como as máquinas, os algoritmos existem para substituir o ser humano em suas tarefas repetitivas.

Todo algoritmo, vendido (e comprado) como uma extraordinária inteligência, é só um conjunto finito de regras que, aplicado a um conjunto finito de dados, resolve um problema. Um algoritmo não tem inteligência: tem método. Tanto o algoritmo que seleciona respostas a uma pergunta – o Google – quanto a máquina que nos propulsiona sem nos cansar – a locomotiva – são fantásticas invenções.

É claro que, na observação microscópica dos fenômenos, ainda podemos preferir encontrar respostas na enciclopédia impressa: esta não veiculava coisas erradas, não viciava e não tinha propaganda. Mas tais conclusões são estreitas. Não podemos mais viver felizes sem algoritmos. Com exceção dos luditas e outros veganos, a volta às cavernas é uma opção de vida trabalhosa e cara.

A questão perturbadora, contudo, é perguntar o quanto nosso trabalho pode ser substituído por um algoritmo. Ou, mais radicalmente, quando nosso trabalho poderá ser substituído. Mas estávamos falando de trabalhos repetitivos. Vale, então, reformular a questão: em vez de “o que pode ser substituído no trabalho?”, talvez seja melhor perguntar “o que é repetitivo nele?”. Ou, ainda, indagar “o que não é repetitivo no meu trabalho?”. Pois não é repetitivo tudo aquilo que é novo, original e diferente. Ou, claro, não é repetitivo tudo aquilo que é criativo.

Não é repetitivo tudo aquilo que é feito pela primeira vez, que não foi ousado ainda, que se atreve. Não é repetitivo tudo o que contraria o status quo, as regras, as pesquisas, os dados, o passado, o senso comum, o conveniente, o responsável, o bem-pensante, o correto, o normal, o briefing.

Não é repetitivo tudo aquilo que diz “não” ao conjunto finito de regras que, aplicado a um conjunto finito de dados, resolve um problema. Não é repetitivo o que difere da solução do algoritmo. As máquinas, os algoritmos, as ferramentas e as inteligências artificiais não são inimigas: elas são referências ou, se preferirem, a régua ou o estímulo para que o trabalho seja melhor ou diferentemente melhor – portanto, criativo.

É um desafio danado, mas é melhor sentir esse frio na barriga do que rezar pelo adágio do “tomara que eu morra antes”, que já matou tanta gente antes da hora.

Bartleby (de Bartleby, o Escrivão, do escritor estadunidense Herman Melville) é um funcionário-padrão. Todos os dias, acorda, veste-se e vai trabalhar em um escritório qualquer de contabilidade, mas poderia ser de propaganda. Ele faz o que mandam e preenche seu timesheet, todos os dias, com a mesma competência. Um dia, ele resolve “não”: “I would prefer not to”. “Não” fazer como todos os dias. Desobedecer: “I would prefer not to be a little reasonable”. O “não” de Bartleby é o começo do “sim” redentor.

E, sempre que a gente se sentir desencorajado pelas distopias do Vale do Silício, lembramo-nos da utopia de Melville: “Ah humanity!”. “Machines have less problems”, disse Andy Warhol. E acrescentou: “I want to be a machine”.  Do you?

Reinvenção não é mágica

Ouve-se muito por aí a máxima (pré-histórica) de que o “negócio da propaganda” precisa reinventar-se: porque a internet, porque a mídia, porque as start-ups, porque a geração Z, porque a pandemia, porque a guerra na Ucrânia, porque o eclipse, a Anitta, as mudanças climáticas e o Rivotril que perdeu o efeito. Os apólogos da mudança também são variados e surgem de todos os cantos: tem o ex-publicitário rico “depois de mim, o dilúvio” e tem o publicitário futuro dono de pousada “não aguento mais isso”; tem o cliente “estão me pressionando” e o cliente “segura a bronca”; tem o veículo “o BV é meu” e o veículo “BV, nunca ouvi falar”. Falam na mídia, nas redes sociais, nas reuniões, nos festivais, no cafezinho e, principalmente, na hora de negociar.

O fato é que “o negócio da propaganda” se reinventa desde que nasceu. Se é que nasceu um dia. Se é que foi inventado.

Ninguém mais duvida de que esse negócio é essencial aos negócios. Em diversos e variados formatos, seja independente, em um grupo, no próprio cliente, integrado, descentralizado, com fiéis parceiros ou infiéis aventuras: toda marca precisa de especialistas em contar para os consumidores o que ela faz, pensa, deseja e defende.

Mas, com o tempo, esses fatos acima, esses perfis de profissionais e uma miríade de públicos finais exigiram dos especialistas em contar o que as marcas fazem, pensam, desejam e defendem uma especialização ainda maior. Não veio do publicitário a decisão de que era bom ter gente que entende de dados, de psicologia e de dinâmicas co-criativas; gente que sabe escrever roteiro de filme e minissérie e longa e música e todo o storytelling da intricada e insondável teia de plataformas de relacionamento. Não foi o publicitário que, do nada, acordou dizendo “pessoal, acho que seria bom a gente saber como faz para comprar mídia no Google, no TikTok ou no carro de som”. Não foi o publicitário que, para ficar mais rico, inventou um monte de subespecialidades.

A internet, as consultorias, a mídia, as start-ups, a geração Z, a pandemia, a guerra na Ucrânia, o eclipse, a Anitta, as mudanças climáticas e, em última instância, os clientes pressionados e que pressionam exigiram dos especialistas a execução de mais e mais tarefas. A contração de mais e mais especialistas portanto.

Talento é pouco

Monica tem uma loja de chocolate em Lubec, cidade de 334 habitantes na fronteira do Maine (Estados Unidos) com o Canadá. Cidade pacata, rural e pobre. Não tem McDonald’s mas também não tem nenhuma loja vegana nem boutique de queijos gourmet. Para um nova-iorquino, Lubec é o que mais se assemelha ao fim do mundo.

Mas a loja Monica’s Chocolate é um arraso: colorida, alegre, bem decorada com centenas de opções de recheios, embalagens, brinquedos e storytelling. A loja da Monica respira carinho a cada chocolatinho embalado com tanto esmero que até dá dó de abrir.

Monica faz tanto sucesso que pessoas de todo o país compram em sua loja, além de ter vários imóveis na cidade, sustentar uma ONG indígena no Peru e querer ampliar seu negócio: “Fernand, venha para Lubec, é uma terra de oportunidades! Podemos ser sócios”.

Quando Monica chegou a Lubec alguns anos antes, ela foi cuidar do marido que nasceu naquela cidade: um executivo de uma multinacional, que sofreu um AVC em Lima e não possuía plano de saúde. Depois de algum tempo gastando o que tinham para o tratamento, Monica se viu com cem dólares no bolso, um marido para sustentar e nenhuma qualificação, experiência profissional ou talento específico. Em Lubec, Maine, uma terra de oportunidades. Com seus cem dólares no bolso e uma fome atávica de sobrevivência, foi à livraria da cidade, comprou livros sobre como fazer chocolate (poderiam ter sido sobre veganismo ou queijos gourmet), encomendou matéria-prima e, no porão de sua casa, pôs a mão na massa. Monica, dona de casa de uma família burguesa de Lima, não sabia lidar com dinheiro: foi ao banco e pediu um empréstimo: “Ma’am, sorry, com seu histórico, recuperando-se de um câncer e um marido com AVC, posso lhe emprestar um pouco de dinheiro, mas a senhora vai recusar a taxa que vou lhe dar”, disse o gerente. Monica aceitou.

A menos que você seja pescador de lagosta, a loja da Monica é a única atração que vale o desvio para Lubec, Maine.

Qual é o segredo da Monica, que não falava inglês, não sabia equilibrar as finanças e nunca cozinhou na vida quando chegou a Lubec, Maine?

Talento?

O que fez o sucesso da Monica foi o trabalho, o cuidado. Foi a preocupação em fazer bem-feito, independentemente do dinheiro ou da pressão. Talento ela tinha, para sobreviver. Mas foi o amor ao trabalho que deu à Monica o passaporte para ser fornecedora da Casa Branca.

Talvez existam razões históricas para o nosso tão brasileiro desprezo ao trabalho. Pouco importam as razões de nossa gênese como povo: elas podem explicar, mas não justificam. Não justificam que a gente se apoie na nossa pretensa “criatividade” (perigosamente sinônimo de improviso) apenas para conduzir nossas entregas profissionais. Não justifica que um trabalho seja mal-acabado, malcuidado, sujinho e com errinhos, “mas tudo bem, né gente? A ideia é tão boa ou barata!”.

Intuição e talento não são nada sem trabalho. Nem em Lubec, Maine, nem aqui.

Falando com ninguém

Muita gente está vivendo a experiência de trabalho a distância pela primeira vez. Mudou ou não mudou? O que mudou, se mudou? O que não mudou, se pouco mudou?

Há mudanças que revelam mais do que modificam.

Antes da COVID-19 (AC), se alguém chegasse vestindo um boneco de Olinda, você diria um “oi” gozador ou passaria reto dando risada.

Depois da COVID-19 (DC), por que prestigiar quem entra sem câmera numa reunião remota?

 

AC, se alguém ligasse para você e não falasse nada do outro lado da linha, você desligaria.

DC, por que se preocupar com mudos invisíveis?

 

AC, quando alguém levantava correndo acometido por uma dor estomacal súbita, você não iniciava uma conversa com a pessoa.

DC, por que conversar com quem sumiu da conversa ou nem se mostrou?

 

AC, você já foi ao escritório de ressaca, sentindo-se péssimo, feio e malvestido. Nem por isso você se vestiu de boneco de Olinda pra disfarçar.

DC, por que as pessoas que ainda não tomaram banho, não se pentearam ou não se olharam no espelho desligam as câmeras dizendo: “ninguém merece me ver assim”?

 

AC, se alguém chegasse vestido de forma contrária aos seus padrões de qualidade, você respeitaria os critérios dessa pessoa e não deixaria o seu julgamento invadir a apreciação.

DC, por que o seu olhar crítico para o ambiente onde as pessoas se encontram mudaria o valor do que dizem?

 

AC, quando alguém era interrompido por uma gritaria interminável ou um barulho de furadeira, você encerrava a reunião.

DC, por que uma criança com fome ao lado do seu interlocutor remoto merece toda a calma e compreensão do mundo?

 

AC, quando alguém não saía do celular numa reunião, você repreendia essa pessoa educadamente, parava a sua explanação ou a fuzilava com olhar.

DC, por que você tem que achar normal as pessoas desviarem o olhar da câmera para responder uma mensagem?

 

AC, se alguém era interrompido numa reunião para resolver um problema, a pessoa em questão podia fazer um muxoxo educado significando “agora não, por favor”.

DC, por que você deve aceitar a desculpa “eu estava resolvendo uma pendência” quando alguém para de prestar atenção ao que está sendo dito para responder uma mensagem?

 

AC, você escolhia uma sala de reunião em função do número de pessoas.

DC, por que as salas têm que ser infinitas?

 

AC, muitos assuntos se resolviam em papos informais, num encontro, numa ligação, num tempo que não tinha sido previamente marcado.

DC, por que tudo precisa de uma reunião, e as agendas viraram um Tetris apavorante?

 

AC, quando alguém tinha uma conversa paralela numa sala ou mandava um bilhetinho, você achava chato, infantil, vulgar e desrespeitoso.

DC, por que você deveria achar natural quando claramente se percebe que a pessoa está de conversinha paralela? E por que você faz a mesma coisa instintivamente?

 

AC, se os pets podiam frequentar os escritórios, as pessoas pediam desculpas quando eles interrompiam uma reunião latindo desesperadamente.

DC, por que a gente tem que achar fofo tudo o que aparece na tela do computador mesmo quando é remelento e mimado?

 

AC, as pessoas mostravam os filhos no cafezinho, e era um prazer fazer bilu-bilu com uma foto.

DC, por que, de repente, as crianças têm que interagir com a gente nas reuniões remotas?

 

AC, você não podia ostentar felicidade e tinha um recato educado em relação aos seus problemas.

DC, por que você tem que fingir que se compadece com a sorte do próximo e disfarça quando está transbordando de alegria?

 

E por aí vai.

Será que as coisas mudaram mesmo ou tudo não passa de um pretexto para sermos o que somos, ou seja, mal-educados, preconceituosos, grosseiros e egoístas?

Propaganda e assédio

Matisse nunca assinou um quadro. Pudera: era um artista experimental. Picasso assinava até o papel higiênico em que obrava. Era um artista conceitual.

Picasso não somente assinava mas também enumerava e catalogava tudo o que produzia. Tudo o que produziu foi obra, ideia, conceito. Imediato, bombástico, performático. Obra que se abate no olhar como um raio fulgurante, deslocando a percepção e transformando a compreensão. Radicalmente. Assim como Duchamp, Bispo do Rosário e Koons. Artistas conceituais.

Propaganda tem que ser conceitual. Tem que viver de porrada em porrada. Uma atrás da outra. Uma em cima, uma embaixo e, quando vem defesa embaixo, bate em cima de novo. Não adianta ser safe, bater leve, ficar na defesa, no quentinho molengão do keynote. A propaganda tem que enunciar, posicionar, confrontar. A ideia é um big bang, um início explosivo que te faz rir ou chorar. Ou, talvez mais importante, que desperta você.

Matisse, quando estava no Sul da França, gostava de pendurar seus trabalhos nas árvores para que eles ouvissem as árvores, o vento, a montanha, o canto da cigarra. O retrato ouvindo o retratado. O retratado pintando o retrato. Autorretrato. E, não raro, a obra ficava inacabada, como são inacabados, mutáveis e infindáveis o campo, o céu e o sussurro do rio. Era sem dúvida por isso que Matisse não assinava nunca. Nunca era findo o experimento. Assim foi Da Vinci também com sua Mona Lisa que acariciou até morrer. Artistas experimentais.

Contudo, andam iludindo a gente e, a custo de narrativas esculpidas no Vale do Silício, dizem que experimentar na propaganda é uma espécie de arte. Cravejadas de dados, elas enunciam que “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. Diante de tão revolucionário conceito, fabricaram ferramentas para enfiar os coitados dos consumidores nos funis de conversão ou em outras armadilhas torturantes. Precisamos vigiar os infelizes vinte e quatro horas por dia e monitorar as presas para morderem a isca e detonarem o cartão de crédito até a quinta geração. Temos que saber tudo e aprender tudo para sufocá-los até pedirem arrego. É como aquela tortura da água que pinga na cabeça do sentenciado: uma hora o sujeito abre o bico.

Esses experimentos são simplesinhos, e seus intuitos são não terminar jamais. Always beta, always learning. Tudo devidamente ornamentado de resultados ali na lata: fez isso, deu aquilo; fez o inverso, deu aquilo outro. Afinal de contas, se nunca acaba, não tem longo prazo, só curto mesmo: tudo no passinho curtinho – bobinho, mas bonitinho. Always beta, always learning e, principalmente, always costing. Como não são mais os mesmos aprovadores depois do curto prazo, ninguém faz a conta a longo prazo. Então, parece mais barato também.

Se a propaganda fosse arte – e talvez seja, às vezes –, ela não poderia ser experimento. Não há tempo, não há sensibilidade, não há grana que pague uma longa e profunda maturação. No mundo do consumo, o jogo se ganha no imediatismo, no reflexo, no tapa na cara, na porrada no estômago. Knockdown ou nada.

Essa coisa experimental não é arte. Nem propaganda. E essa coisa também não precisa de criação, só de malcriação. Não é propaganda: é só assédio.

A pandemia da opinião

É atribuída a Richelieu (o grande ministro do rei Luís XIII na França) a frase “se me dão seis linhas escritas do mais honesto dos homens, eu encontrarei o suficiente para enforcá-lo”. Seis linhas, um post, um tuíte, uma foto.

As redes sociais liberaram a palavra e deram palco e espelho narcísico para as pessoas – qualquer um capaz ou não de dominar discursos, articular argumentos e estilos. E isso é bom porque a liberdade começa pela fala. Não se luta contra a opressão com o silêncio. É de se esperar que, depois do caos, surja certa disciplina e alguma ordem. É de se sonhar que reine a etiqueta e a reflexão.

No entanto, as plataformas de opinião inauguradas pela internet– as redes sociais e suas lógicas únicas – privilegiam duas estruturas de discurso pouco elaboradas: a instantaneidade e a hipérbole. Tudo tem de ser imediato, no calor e no atropelo; é preciso ser rápido e valorizar a moeda social do engajamento. As postagens também devem ser enfáticas, muito adjetivadas e exclamadas, justamente para repercutir, causar e se espalhar.

As redes sociais são o veículo de reação com aparência de opinião. Quem nunca soltou, espalhou ou creditou, no reflexo apaixonado, informações ou ideias das quais se arrependeria se tivesse a chance de analisá-las minutos depois? Quem nunca? Contudo, os efeitos da praga de opinião precoce e enfática são incontroláveis e invisíveis. Soltou e vociferou: esqueça ou reze.

As redes sociais, da forma como estão e progridem, são arenas de embates e não de debates. Reagir e refletir são verbos que não se conjugam da mesma maneira. A reação tem de ser rápida e exagerada para ter efeito. A reflexão deve ser lenta e cuidadosa para ser justa. E não é possível reagir e refletir ao mesmo tempo.

Se acreditamos na opinião reflexiva ainda que acessível, argumentada ainda que democrática, serena ainda que impactante, as redes sociais e seus públicos precisarão evoluir para constituir espaços civilizatórios.

Enquanto isso, o que grassa como um vírus biônico é a opinião apressada, maniqueísta e binária de bulas de autoajuda 2.0.

E esse vírus tem cura. Não precisa suicidar-se das redes nem impor censuras. Basta sossegar o dedo nervoso. Basta deixar que falem sem dar bola à gritaria.

Criatite e datose

Teve uma época, na propaganda, na qual o que levantava a crista era a criatite – a ditadura da ideia. E, nessa briga de galo, não era incomum ver que os mais fracos latiam sempre mais.

Hoje, o que arrepia as manchetes é a datose – o culto às planilhas. E aqui, claro, o complexo de inferioridade das agências, que se medem com os gigantes da tecnologia, é bufo.

Para disfarçar a falta de partido, as almas coxas escolhem o centrão. Cá e lá ao mesmo tempo, o que costuma resultar em um nem lá nem cá bem molengão. As agências se dizem criativas e técnicas, inovadoras e nerds, inspiradas e analíticas, Floki e Athelstan.

Mas o que interessa no pêndulo não é o meio, estéril. O que fascina é o movimento: ora pra lá, ora pra cá. É dessa dialética que nasce uma esperança de inovação. É puxar pra lá e depois puxar pra cá.

Não cobremos coerência e bom senso de uma profissão – a propaganda – que vibra na superfície das sensações humanas e se nutre dos mais inconstantes dos atributos: o gosto. Não cobremos implacáveis métodos da dança livre das ideias.

E, principalmente, acima de tudo e sempre, sejamos livres dos cabrestos, dos uniformes, dos léxicos e das tendências.

Deus criou o mundo do caos.

Ritualbrands: uma ética para as marcas

A grande – e talvez única – inteligência do ex-presidente dos Estados Unidos foi ter trabalhado sua marca como se fosse a de um produto comercial. Com as mesmas técnicas, as mesmas métricas e as mesmas campanhas utilizadas pelo mais banal dos bens de consumo: ouve-se o povo para moldar a mensagem. O que será de Trump? Pouca coisa, mas o irresponsável e nocivo trumpismo venceu – e de seu autor deu cabo.

Se numa democracia o poder emana do povo, uma marca pertence a quem a consome. É a partir do sufrágio da boa vontade do consumidor que uma marca trona, e são sujeitos de seu poder a empresa, seu marketing e suas agências de comunicação.

As marcas têm poder, e esse poder emana do povo: daqueles que as compram, amam ou odeiam.

Uma marca é a representação simbólica – portanto abstrata – de um produto (ou serviço) e tem como objetivo reconhecê-lo e distingui-lo dos demais que são seus equivalentes concorrentes. Uma marca também é a representante universal e popular de um sistema produtivo, de uma organização, de uma empresa e de seus colaboradores, acionistas, fornecedores e clientes. Uma marca não é, portanto, um acessório charmoso e dispensável. Uma marca não existe apenas para encher de graça e história um bem comercial. As marcas não têm somente méritos mas também culpas, deveres e responsabilidades.

Durante muito tempo, as empresas e as agências entenderam que as marcas estão a serviço dos produtos que comunicam e devem ser domesticadas ou aliciadas para servir aos propósitos econômicos das organizações que representam. Muitas vezes, são armas de dissuasão para dourar a pílula de práticas subterrâneas ou servem de biombos, trampolins ou máscaras a interesses individuais daqueles que as manipulam.

Contudo, se a força de uma marca emana de quem a consome e não de quem a gere, ela tem deveres para com essas pessoas.

Essa perspectiva, contraintuitiva para tantos profissionais de marketing e comunicação, no entanto, abre novos universos de atuação.

Também achávamos que existiam dois mundos: o das coisas concretas, do dia a dia, e o do imaginário, da imagem e dos estímulos sensoriais da propaganda. Achávamos que esses dois mundos se encontravam apenas no fundo do nosso bolso, também conhecido como fundo do funil de conversão de consumo. Naquele instante mágico, que fazia estremecer de prazer marqueteiros e publicitários, a rede agarrava o peixe, sem dilema.

A crença de um tempo em que peixes não falavam, não gritavam e não filmavam. A crença de um tempo em que George Floyd morria em silêncio, de um tempo no qual os peixes eram presas fáceis. Para o bem e para o mal, para a luz e para a mentira, com tolerância ou sem: o povo opina e fala, debate e polariza, acredita e age.

Não há mais dois mundos, o mundo onde estratégias e mensagens são urdidas e o mundo da boca do caixa. Este mundo é um só, e as marcas são porta-vozes do povo que lhes dá poder.

Foi com essa crença que criamos Ritualbrands, uma nova maneira de pensar e trabalhar para as marcas. Ritualbrands é um projeto audacioso, muito além da estética insensata da comunicação tradicional. Não é apenas um raciocínio nem só uma metodologia. Não é somente uma forma de auferir e mensurar a performance de estratégias de marketing e comunicação.

Ritualbrands é uma ética que coloca as marcas no centro de suas responsabilidades como agentes influentes da nossa sociedade.

O admirável “novo normal”

Com o confinamento forçado, descobrimos que a sociabilidade não é uma alternativa de vida, e sim um imperativo de sobrevivência e que as aparências — filtros fugazes — não alimentam: viciam. Descobrimos também que as coisas não falam, não cheiram, não abraçam nem beijam. Encontramo-nos meditativos, essenciais e cheios de mente.

A expressão “novo normal” surgiu pela primeira vez na crise de 2008. É difícil dizer o que aconteceu de “novo” depois disso, para além de intenções e promessas. Desde o começo da pandemia, o termo voltou, virou um trending topic e tem substituído muitas sessões de terapia. O “novo normal” é o que está justificando nossas frustrações, fraquezas e preguiças. Nesse “novo normal”, seremos mais saudáveis, mais solidários e mais conscientes. Nesse “novo normal”, haverá menos egoísmo e menos vaidade.

Nesse admirável novo, consumiremos menos também.

Se os quatro quintos da humanidade que consomem mais do que precisam doassem um quinto do que têm para o quinto que consome menos do que precisa, ninguém morreria de fome na Terra.

Ou se um quinto do quinto do quinto do quinto daqueles que consomem mais do que precisam doassem um quinto do quinto do quinto do quinto do que têm, cinco quintos dos humanos — todos eles — teriam mais do que precisam para viver. Cinco quintos dos humanos viveriam com tudo que faz nossas complexas existências serem mais felizes do que somente aquilo que mata a fome para viver.

Isso porque, quando muito, um quinto de tudo o que consumimos serve para matar essa tal fome para viver. Os outros quatro quintos servem para matar a fome de viver.

Com o perdão da ironia, prometem-nos que, no admirável “novo normal”, todos aqueles quatro quintos da humanidade que consomem mais do que precisam para viver estarão satisfeitos com um quinto, e, assim, o quinto que consome menos do que precisa poderá viver dignamente.

Mas se fôssemos para o divã sem mentir, se fôssemos conscientes de nossas fraquezas, talvez admitíssemos quão adoráveis elas são. Fraquezas consumidas para ocupar pelo menos quatro quintos de nossas vidas com deliciosas coisas inúteis e atividades dispensáveis. Deliciosas porque dispensáveis.

A fome de viver são os reais e palpáveis prazeres. Vis prazeres. Alguns vergonhosos, outros ingênuos, mas todos quase sempre supérfluos. Olhe a seu redor, abra o armário, desça no porão, revisite sua agenda de antes e relembre seus projetos. Viu de quantos adoráveis prazeres inúteis é feita sua vida?

Essa dualidade entre necessidade e desejo, entre sobreviver e viver, entre precisar e querer é o ringue de todos os dias de qualquer trabalho de comunicação. Num canto, a emoção; no outro, a razão. Num canto, a motivação; no outro, a função. E quando surgiram métodos mais rápidos, mensuráveis, baratos e automáticos de produzir e influenciar a compra, quando apareceu a propaganda siamesa da busca na internet — a propaganda que associa Michelangelo a pizzaria —, a diferença ficou mais clara. E, apesar de toda a saliva gasta, ainda não criaram um festival de criatividade para os anúncios da Pizzaria Michelangelo di Napoli.

A propaganda é a arte dos quatro quintos inúteis prazeres. Ela entende de preencher de sentido os quatro quintos prazeres que alimentam a fome de viver.

E o quinto restante é trabalho para o algoritmo. A fórmula que calcula sua propensão racional a comprar e que recheia a internet de propaganda feia entende mais do quinto útil. Deixe com eles. Se você é publicitário, cuide dos quatro quintos inúteis. Não é pouco, não.

Quando tudo voltar ao normal — o “novo” —, é pouco provável que a gente esvazie as gavetas de fome de viver.

As frugais promessas do “novo-normal” ficarão no divã. De “novo-normal” o inferno está cheio.

Publicado originalmente na edição de 07/07/2020 do Meio&Mensagem

E depois?

Meu avô e a família decidiram esconder-se com a roupa do corpo e algumas economias. Foram para o Sul da França viver uma vida anônima e simples enquanto durasse a guerra. Todos os dias, uma nova dificuldade, uma nova provação ou ameaça. Mas, à noite, todos reuniam-se e, depois de rezas adaptadas aos parcos conhecimentos da religião, cantavam “Demain, Yerushalaim! Demain, Yerushalaim!”. Uma longa litania, entoada num coro abafado, ainda e ainda, todas as noites, todas as noites.

Quem prevê crise é historiador, depois de a crise passar. Não estávamos preparados para a crise da COVID-19. Ninguém. Nem os mais ricos, nem os mais desprovidos. Nem os mais sabidos, nem os mais bobos. Nem os intelectualmente dotados, nem os ideologicamente atrofiados. Nem os medíocres do bem, nem os medíocres do mal.

E essa crise, mais do que qualquer outra, era ficcional demais para ser crível e distópica demais para ser séria. Portanto, mesmo que a gente descompense nosso espanto batendo no bobo de plantão, estamos reagindo, com ou sem a ajuda do plantonista.

Estamos, hoje, contingenciando, assumindo o golpe, estudando o contexto, aprendendo a conviver em um cenário de recolhimento e retração. Todo pessimismo é necessário e preventivo. Como é difícil ser pessimista!

E parece tão, mas tão inoportuno falar de negócios diante do drama dos prognósticos. Tão vulgar subestimá-los para justificar interesses. Nossos threads já estão poluídos de profetas – apocalípticos ou condescendentes –, gente dizendo que é mais ou menos, que é pior ou melhor. Um esporte às vezes inconsciente, mas sempre sinistro, inócuo, vazio, inconclusivo e dispersivo.

Então, parece melhor viver no reflexo, no dia a dia, no pulso, na intuição e na reação veloz. Contingenciamento estratégico é um oximoro, mas funciona. Vamos navegar carpe diem, fazendo o que podemos e até o que nem suspeitávamos que podíamos, para mitigar os efeitos da crise.

Passado o momento do susto e dos oportunismos voluntários ou ingênuos, é surpreendente ver como, em tão pouco tempo, uma onda de solidariedade altruísta, agnóstica e cidadã está mobilizando as empresas e as marcas. Não cabem mais julgamentos aqui. Não estamos mais numa briga por voz e originalidade da mensagem. A briga é pelo movimento que gera mais movimento.

Mas isso é só uma parte. Porque vai ter um depois. E já, já o depois chega. Depois da contingência. Depois da crise. Algumas deixam sequelas e feridas; outras, até saudade. O que é que vamos fazer depois? Continuar contingenciando?

Aqui, o jogo é de estratégia. De verdadeira estratégia. Perdemos o hábito porque, apesar de termos dado um upgrade na disciplina por modismo, nossas estratégias ainda não passam de planos. Mas estratégia e planejamento não são a mesma coisa.

Planejamento é leitura de contexto e antecipação de movimentos no tempo, enquanto estratégia é intuição e desenho de cenários. Planejamento tem a ver com probabilidades; estratégia tem a ver com visão. Planejamento tem a ver com pragmatismo; estratégia tem a ver com imaginação.

Ser estratégico agora significa ser intelectualmente honesto, neutro, sem ideologia nem paixões.

Vamos sair da crise, e tudo será como sempre foi? Com as mesmas pulsões, as mesmas necessidades, os mesmos medos, as mesmas neuroses? Terá sido uma “crisezinha” sem sequelas? Pode ser. E se for, o que faremos?

Vamos sair da crise e teremos aprendido algo? Teremos flexionado nossos valores? O mundo será mais equilibrado? Terá valido a pena? Não seremos os narcisistas consumistas de antes? Pode ser. E se for, o que faremos?

Ou será que a crise não vai acabar, que vai emendar em outra e mais outra? Será que isso foi apenas um alerta, um aquecimento, uma crise beta? Como viveremos assim, de surpresas em surpresas? Como iremos conviver com inimigos invisíveis? O que faremos?

O que faremos nesses ou em outros cenários mais oníricos ou dramáticos?

A COVID-19 não é só um briefing de hoje mas também um briefing de amanhã.

Meu avô dizia que, durante os cinco anos de guerra, ninguém teve uma dor de cabeça apesar das perseguições, ninguém teve uma dor de barriga apesar da salsicha gordurosa, ninguém teve uma briga apesar do confinamento de quarto e sala sem janela. Todo dia era uma vida inteira. E todas as noites, noite após noite, eles se preparavam para “Demain, Yerushalaim!”.

Publicado originalmente no Meio&Mensagem de abril 2020

Entre mentirosos e cândidos

Nos canais de maior prestígio do mercado, é comum descobrir que as agências estão atualizadas com todos os catecismos modernos.

Fazem processos criativos colaborativos (com todos, inclusive os clientes), estão organizadas em squads (ou outros formatos anti-hierárquicos), promovem design sprints (ou outros métodos criativos arejados), trabalham em processos agile (ou outros formatos rapidinhos), têm escritórios afetivos (ou pets and kids friendly, hot desk, pijama-office) e operam em redes descentralizadas (ou hubs ou qualquer termo que ajude a diminuir as responsabilidades trabalhistas).

Também pululam experiências idealizadas e alternativas de inserção profissional (que sejam apetitosas para os releases), processos seletivos psicossociais (ou aqueles que levam em consideração aptidões assintomáticas), políticas de inclusão e formação de minorias (sejam aquelas engajadas ou expiatórias de culpa) e metas de diversidade (de sexo, gênero, idade, raça e aparência, além de outros critérios científico-emocionais).

Se formos acreditar no que lemos, quase todo mundo está aparelhado técnica e culturalmente para apurar, ler, curar e analisar dados e contextos complexos (com todos os arsenais disponíveis e metodologias próprias apoiadas por anglicismos inteligentes), bem como para receber com generosidade e apetite no processo criativo inputs automatizados (dos dados, dos algoritmos e de todas as criações mercadológicas dos parceiros igualmente bambambãs de modernidades científicas).

Também ninguém mais possui ego nem dá valor à ficha técnica: só são inscritos em festivais trabalhos que realmente tiveram reverberação real (porque o que importa é a efetividade e o impacto no negócio, nos interesses dos stakeholders, na aceitação da sociedade ou no futuro da espécie, do planeta e de cosmogonias variadas).

Outro lugar-comum é que são poucas as agências que ainda dependem da mídia para remunerar-se e que quase todo mundo tem prestação de contas totalmente transparente, baseada numa relação de escopo/recursos reais e em fees de sucesso agressivos (sem falar da competição ética que nunca embute na formação de preço as rentabilidades oriundas de descontos, bônus, incentivos totalizadores, ou outras metáforas).

E, claro, todas essas evoluções do mercado são confirmadas pelos testemunhos honestos publicados nas redes sociais de seus divulgadores com afinco e até certa dose de humildade compensatória.

Em síntese, a crítica é blasfematória, e a autocrítica, suicida.

Talvez seja fruto de nossa formação cultural – segundo a qual a sinceridade é considerada um atentado ao convívio profissional – evitar o confronto com a verdade. Essa falaciosa polidez ou falsidade carinhosa é terreno fértil para a fofoca passivo-agressiva.

Mas por que o teatro continua? Somos ora cândidos, ora mentirosos, mas nunca, nunca desatualizados.

Publicado originalmente no CCSP dia 02/03/2020

O que o data driva

As baleias, além de serem animais lindos e impressionantes, foram uma matéria-prima que moveu a economia norte-americana no século XIX. O óleo de baleia era um combustível valioso para a iluminação e a motorização, bem como fazia parte da composição de inúmeros produtos.

Por meio século, a pesca da baleia e o beneficiamento do óleo formaram a quinta maior indústria norte-americana. Fortunas enormes constituíram-se, muitas vezes anônimas, e financiaram o início da industrialização do país. Poucos sabem, mas os robber barons, que dão nome a formidáveis impérios e obras filantrópicas no mundo inteiro, devem seu sucesso, em grande parte, ao dinheiro da baleação.

 

Mas quem já esteve em mar aberto sabe que encontrar algo – por maior que seja – naquela imensidão, não é fácil, muito menos considerando os recursos tecnológicos da época. As baleias não andam em bando nem têm predador natural e são as rainhas dos oceanos há séculos. Desenhar as rotas desses animais extraordinários era uma obsessão. Seguir as mais produtivas encurtaria viagens que muitas vezes duravam anos.

É tarefa meticulosa e disciplinada de todo capitão de navio registrar em seu diário de bordo cada um dos acontecimentos ao longo de sua jornada. Isso constitui o que chamavam “logs de navegação”. Muitos pesquisadores então começaram a desenhar, a partir desses preciosos registros, os famosos e indispensáveis mapas baleeiros. Milhões e milhões de dados coletados, cruzados e curados tinham a ambição de transformar a baleação em uma indústria data-driven.

Em 1859, Edwin Drake fez a primeira perfuração de solo em busca de outro óleo, o petróleo, nos Estados Unidos. 1859 era o auge do setor baleeiro. A substituição foi meteórica. Em 1865, a produção de óleo de baleia foi reduzida à metade; em 1870, à metade novamente – até desaparecer por completo na virada do século. A primeira indústria data-driven do planeta morreu para a sorte dos cetáceos e o azar do aquecimento global. Bancos de dados extraordinários viraram peças de museu.

A obsessão pela rápida – e cada vez mais rápida – coleta e análise de dados – e cada vez mais dados – dá conta daquilo que sabemos pesquisar. Mas ainda há todas as pesquisas que não sabemos fazer. Pior: há todas as realidades que nem sequer desconfiamos que existem para ser pesquisadas. E essas realidades são muito maiores do que aquelas nas quais mergulhamos as nossas sondas. Muito maiores do que os nossos cookies e tags histéricos são capazes de revelar.

Para tudo o que sabemos, dados. Para todo o imenso resto, mágica.

Publicado originalmente no CCSP, no dia 01/02/2020

 

Tempos de cólera

Como em todas as grandes gestações, em qualquer campo de atuação humana, elas convivem em igualdade de força, atuação e principalmente perspectiva. Na esfera dos costumes, enquanto uma ordem plena das individualidades é defendida por um grupo, de outro lado, uma horda clama pela defesa de regras mais conservadoras. No campo das ideologias econômicas, políticas mais estatizantes eletrizam os debates contra aqueles, mais liberais, a favor do mercado. Tem gente que levanta as armas pelo consumo de proteína animal com a mesma força daqueles que defendem o direito animal. Em todos os casos, há argumentos que merecem atenção e conversa.

Mas vivemos em tempos de radicalismos à flor da pele, sem gosto pela complexidade. É mais fácil tomar partido, levantar bandeiras, bradar palavras de ordem e clichês nas redes anônimas ou nas privadas. Afinal de contas, parece preferível ser aprovado por poucos do que ouvir muitos.

Enormes interesses defendem um mundo fragmentado, cheio de grupos microscópicos, de comunidades provincianas, que se bastam e ignoram as demais. Quanto mais fragmentadas forem, mais isoladas, e principalmente mais influenciáveis e manipuláveis serão. Esses grupelhos têm seus códigos e seus dogmas. Esses clãs desenvolvem razões para justificar o cimento comunitário. Essas cavernas se defendem das outras com armas e dentes. Grupos, grupelhos, clãs, cavernas. Gangues.

E estranhamente, nunca se falou tanto em diversidade.

Existe uma tendência a fazer uma amálgama entre diversidade e divisão. Assim, defender a diversidade significaria enaltecer diferenças e particularidades. Diversidade seria uma espécie de afirmação de identidades – sempre legítima – mas que coabita tantas vezes com radicalismos e intolerâncias. Mas é entender de forma rápida as duas palavras.

Divisão tem como significado etimológico “separar para conhecer” (di – separar, videre – conhecer). Separar para conhecer. Dividir os sexos, os gêneros, as raças, as crenças, é reconhecer identidades e reconhecer identidades é acolher.

Já diversidade, por razões variadas foi uma palavra apropriada para qualificar principalmente o acolhimento de sexos, gêneros e raças. Mas podemos também entender que defender a diversidade pode representar outras lutas por representatividade e igualdade. A das crenças, ideologias e opiniões, por exemplo.

É outra definição, mais complexa, humanista, universalista, cosmopolita, profundamente democrática. O respeito à diversidade, assim, passa a ser sinônimo de tolerância e escuta. É dar passos em direção aos outros, sem esperar retribuição. É acolher o outro que é diferente, pensa diferente ou age diferente. É, também, não confundir debate de opinião com processo de opinião.

Defender a diversidade talvez não seja exigir respeito às minhas diferenças, mas respeitar as do próximo.

Porque uma ideia é uma ideia

À maneira dos tímidos, ele entrou lentamente, com as mãos nos bolsos e o olhar varrendo o carpete. O encontro reuniu em volta da mesa muitos potentados que gesticulavam e conversavam com animação antes de iniciarem os trabalhos. Ele estava cansado, mal tinha conseguido dormir na véspera. A reunião começou. Focado, ele ouviu, mais uma vez, a construção cuidadosa do raciocínio.

Como sempre acontece, a história tem início com um plano aberto, descortinando uma enorme paisagem. E, aos poucos, o olhar focaliza as formas, os gestos, os humores. Começa descritiva e detalhada. Muitas informações. Organizadas. Minuciosas. Ele sabia todas. Todas aquelas coisas. Todos aqueles inventários.

Em todas as histórias, também há muitos caminhos. Eles se perdem no início e se organizam no final. A história, como todas, tem inúmeros obstáculos, intempéries, acidentes. Ele conhecia todas aquelas etapas. Todas as alternativas. Os desdobramentos. Tudo.

Uma história é feita de picadas na floresta escura dos dados. Toda história tem um final. E o final era dele. Só dele.

Ele se levantou, olhou para a plateia que segurava o fôlego. Com cerimônia, projetou na parede uma enorme planilha, cheia de quadrados – em cada quadrado, mais quadrados. Muitos quadradinhos. Muitos. Nem cabiam na parede. Precisava de mais parede. E ele foi contando um por um.

“If this, then that; if this, then that; if this, then that.” “Se isto, então aquilo” por mais de uma hora.

Durante uma hora, ele disciplinadamente preencheu todos os quadradinhos, um por um. Se for assim, assado. Se fulano, assim. Se beltrano, assado. Primeiro assim, depois assado. Depois de assado, assim de novo. Assim e assado. Assado e assim. Fulano, beltrano e sicrano. Se nem fulano, nem beltrano; então, nem assim, nem assado. E se nem assim, nem assado. Outro assim, outro assado, outro fulano, outro beltrano, outro sicrano.

Ninguém dormiu na reunião. Todo mundo prestou atenção. Todos os dignatários estavam satisfeitos.

Foi então que, do fundão do seu torpor pós-coito, lá no fundo, bem no fundo, uma ideia despertou – singela, inocente, pura. Uma ideia que, como todas as ideias, nasce de muito pouco: uma fresta na parede, um ventinho que arrepia a nuca.

Como todas as ideias, ela era tímida e, com as mãos nos bolsos, entrou lentamente: “E se… e se, em cada quadradinho, cada um desses quadradinhos, em todos os ‘assim ou assado’, a gente colocasse uma fórmula?”. A ideia continuou, com o olhar varrendo o carpete: “E se, por detrás de cada fulano, de cada beltrano e também dos sicranos, a gente colocasse um robozinho?”. E, para arrematar, em uma única proposição, acrescentou: “E se a gente nem precisasse de ninguém para fazer esse briefing?”.

Todo mundo olhou para ele fixamente. E todos, de clientes a chefes, ficaram extasiados.  Aclamaram-no com o sonoro aplauso dos justos.

Para ele e outros criativos, aquela ideia foi o fim da picada.

Coluna originalmente publicada no Clube de Criação de SP em 05/09/2019