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Safári nécessaire

“Paris” e “nada para fazer” são duas coisas que não andam juntas nunca. Portanto, resolvi atender às encomendas e uma em particular me obcecou. Eu diria até que foi uma experiência fascinante, bizarra e perturbadora: tratava-se de uns cremes novos.

Comecei pelo óbvio: free-shop. “Homens! Como são simplificadores!” É claro que não tinha nem sinal do tal do creme.

Chegando em Paris, fui ao que me parecia ser o templo supremo da vaidade BCBG: o Bon Marché. “Homens! Como são ingênuos!” Se fosse para achar no Bon Marché, não precisava pedir. Nada do tal do creme.

Pensei que poderia ser uma questão de estoque e procurei em três das lojas de departamentos mais anabolizadas. “Homens! Só resolvem no atacado!” Claro que não tinha na Printemps, nas Galleries Lafayette e muito menos no BHV.

Achei que não tinha usado a cabeça direito. Procurei na Internet. E claro, a Internet é mentirosa. Ela dizia: “À venda em todas as lojas de departamentos bem-nascidas de Paris”. Fui mais fundo e comecei a ligar para as lojas: se os bits mentem, a voz não. Mas eu não contava com o mais louco frenesi consumista do mundo por um lado e o mais florido dos humores por outro: final do ano em Paris e franceses. “Senhor, não posso informar, desolé, o senhor tem que vir à loja”.

Finalmente – vou encurtar outras etapas da peregrinação, passando por lojinhas fofinhas, com vendedoras amabilíssimas – e, de conselhos em conselhos, aterrissei naquilo que, em outros tempos, eu chamaria de templo mundial da fatuidade capitalista: a Sephora dos Champs Elysées. (Cuidado, não é qualquer Sephora, é a dos Champs Elysées!). Vamos falar sério, vamos falar com especialistas. Aprendi ali, por exemplo, entre muitas outras coisas, que qualidade sem quantidade não serve para nada. Não caia nessa nunca! Quantidade sem qualidade não serve, e nem o contrário. Quando o assunto é sério, tem que ter os dois.

A Sephora foi a mais lisérgica das minhas experiências. Gente se esfregando, odores, cores, sons, tudo ao mesmo tempo se mexendo freneticamente. Quase desmaiei, mas eu tinha ligado o único botão que um homem possui e só queria saber dos tais cremes!

Passei uma hora deambulando pelas estantes, ébrio, viajando e é óbvio que não encontrei nada e tampouco consegui colocar nada na minha cestinha de compras. Ou melhor, coloquei e tirei, coloquei e tirei, coloquei e tirei. Pelo exercício da osmose contagiante. Pelo pânico. Pela patologia consumista.

Aí, entreguei os pontos e procurei uma consultora. Era linda, alta, magra, cabelos sedosos, pele de berinjela, maravilhosa, inteligente, descontroladamente francesa e muito sábia.

– Procuro produtos da Stella McCartney. Aquele lançamento eco-minimalista? (quis mostrar que eu estava super por dentro).
– Por aqui.

Em menos de 30 segundos, lá estava meu unicórnio, meu pégaso, meu narval-de-chifre-mágico abatido nas minhas mãos.

Mas não, não pode ser tão simples. NÃO! Em nome do meu esforço, em nome da minha caçada perigosa, em nome da minha masculinidade resolvi aceitar o convite: “Em que mais posso ajudar, senhor?”

Pedi então para ela me explicar tudo e principalmente por que esse ou aquele. Ela sorriu e respondeu:

– Não é esse ou aquele . É esse “e” aquele.

Esperta ela. Mas não me dei por vencido e perguntei de quantos estávamos falando. Ela sorriu e respondeu:

– Depende da pele, da mulher, da idade, dos objetivos.

A saída clássica do relativismo. Claro, ela tinha que justificar todo o aparato. E eu tinha lá meu objetivo. Queria desconcertar o charme daquela extraordinária vendedora. “Mas assim as mulheres ficam a vida inteira passando cremes?” Mais um sorriso:

– A vida e o dia, senhor.

Simples assim. Uma espécie de escravidão. As mulheres passaram séculos lutando contra o machismo e agora são submissas à indústria da beleza. “Mas quanto isso custa, meu Deus?” O maior de todos os sorrisos agora:

– Isso é um fator do tamanho do bolso da sua mulher.

Que ironia! Que desfaçatez. Falar do bolso da mulher para um homem que está fazendo compras para uma. Que provocação! “Vocês já fizeram um cálculo de probabilidades para saber quantos milhões de variáveis isso acarreta? Qual é a fórmula mágica de fatores?” E da forma mais francesa do mundo, a minha pitonisa responde:

– Bem, se a sua esposa prefere lavar o rosto com sabão de Marseille, também temos.

Foi aí que entreguei os pontos. Vencido, arrasado, completamente aniquilado, voltei para o hotel com meus dois prosaicos tesouros…

… e mais um nécessaire cheio de produtos de beleza de uma revolucionária marca de produtos masculinos.

“A crença na cultura” de um bobo da corte

Sobre o artigo do Senhor Reinaldo Azevedo “A crença na cultura da periferia é coisa de gente com miolo mole”, na revista Veja de 05 de dezembro de 2007.

Na minha área de atividade, a propaganda: uma matéria com essa voltagem de preconceitos, falácias intelectuais e ofensas pessoais seria, com unanimidade, retirada do ar pelo CONAR, código que regula a decência e ética publicitária. Mas delitos de opinião, na imprensa, são efeitos colaterais da democracia. Ninguém criticaria a livre expressão de idéias, nem mesmo pessoas do calibre reacionário do autor do artigo.

Portanto, só nos resta manifestar-se livremente também.

Meditei longamente, portanto, e tentei encontrar, para além da racionalidade, porque fiquei tão triste. Não tenho a presunção de construir o mesmo tipo de barricadas intelectuais que o autor do artigo. Que covardia inferir sobre a possível interpretação dos ausentes veneráveis para justificar uma opinião!

Não me cabe julgar os valores do articulista, retrógado confesso. Só cabe-me questionar sobre a alternativa sugerida pelo autor. A alternativa ao patente apartheid social que nos assusta tanto e que alimenta o maior de todos os fantasmas: o preconceito.

A alternativa seria dizimar ou confinar os pobres? Como o autor quase se orgulha de ter sido feito com os “silvícolas”? Ao evocar uma certa “seleção natural”, pergunto-me, seria realmente dominante a “sua” espécie? Qual é a tese civilizatória pregada?

Não há muitas respostas no artigo, só subentendidos que tentam inverter óbvias e prováveis acusações à sua infâmia.

Pensando bem, seu artigo, Senhor Reinaldo Azevedo, não é nada além de uma boutade risível, uma acrobacia gauche, uma ilustração medíocre da vetusta inteligentsia conservadora.

O “central da periferia” diverte o povo. Bobos só divertem a corte.

E o papel do cliente qual é?

A gente discute muito. E é crítico ao extremo. Por isso, o tempo todo abre-se o debate “qual é o papel da agência?” ou “qual é o papel do atendimento, da mídia, da criação, do planejamento?”.

Embora o exercício seja de nobre propósito – melhorar ou usar o rinque para alardear diferenciais – essa inquietação também revela uma fragilidade.

Como as agências estão o tempo todo se “reinventando” ou “inventando moda”, isso pode significar que as estruturas são volúveis, imaturas, frágeis ou ainda “ao gosto do freguês”. Pelo menos aos olhos do observador desavisado ou com segundas intenções.

Agências disso ou daquilo, que trabalham assim ou assado, que desacreditam em tudo e re-acreditam logo depois, também pode parecer que o negócio está em crise constante de posicionamento, personalidade, vocação.

E como a gente fala muito, tem canais para falar e adora um glamour, tudo é dito, repercute, transcende os caldos restritos do nosso próprio fogão. Daí, todo mundo sabe quem fez isso ou aquilo, quem gosta mais daquilo ou daquilo outro, quem ganhou essa ou aquela, quem deu em cima de quem, e quem levou ou não levou. Uma transparente promiscuidade de informação.

O mercado publicitário das agências definitivamente não é o Itamaraty nem o Vaticano. Aqui, cheirou novidade, vira fato. Apontou para um lado, todo mundo fica sabendo. Não há huis clos.

No entanto, e do lado de lá, do lado do nosso cliente, do marketing? Por que tão pouco se discute? Qual é o papel do Marketing? Qual é o nível do Marketing, de seus profissionais? Vá lá que tem um pouco de debate, mas é tão recatado, tão sem sal, sem pimenta e deliciosas mentiras!

Será que rola também mas a gente está mais preocupado em olhar para a nossa deliciosa fogueira?
Ou será que só a gente escancara, expondo nossas vísceras com charme, sem vergonha de ser ridículo mas dando corajosamente a cara pra bater?

Somos bitolados ou masoquistas?

O que é do povo é classe

Nunca haverá de ser diferente: quem cria para as massas não pertence às massas. Quando muito, nasceu na mesma condição da maioria. Quando muito, mas ainda, raras vezes.

Há quem goste de usar argumentos falaciosamente fascistas para explicar o fenômeno: “vamos dar para o povo o que é bom” como quem diz “o povo não sabe o que é bom”.

Outra alternativa é desprezar eventuais diferenças de realidades e fazer “o que funciona e sempre funcionou”. Criação simples no mais puro espírito “repete e grita que os burros acabam entendendo”.

Outros fazem pesquisas de imersão, etnográficas, safáris e outros choques culturais que tais. Ajuda a entender, a aceitar na melhor das hipóteses.

A tônica, no entanto, em qualquer desses “caminhos” é temperada inapelável e muitas vezes inconscientemente por uma palavrinha cabreira: preconceito.

O preconceito de achar que “se é de muitos, não presta para mim” ou simplesmente o preconceito de pobre, de preto, de quem fala errado, de quem come errado, de quem se veste errado.

Preconceito não se combate com informação nem bem intencionadas pesquisas que só servem quando muito para combater nossa ignorância.

Um bom truque é despir-se do gosto. É apreciar sem julgar. É tentar comungar. Abrir o coração e inutilizar a cabeça. Funciona e é muito mais gostoso.

Fui convidado para a gravação do 4 DVD da Banda Calypso em Goiânia.

Não pode ser a toa que eles são a banda mais popular do Brasil como apontou a pesquisa da F/Nazca amplamente divulgada.

Eu já era um fã sincero da extraordinária trajetória deles.

Mas tinha que ter alguma coisa além da minha admiração pelo modelo de negócio que subverte totalmente os inflexíveis esquemas de promoção e distribuição de música, sem gravadora, sem padrinho, sem crítica e – até ontem – sem apoio da mídia, que a Calypso prega com enorme sucesso.

Tinha que ter algo que ia além da minha simpatia por tudo que torce pela subversão das regras instituídas para beneficiar poucos e assaltar a maioria (já compararam o preço do CD no Brasil com o de outros países, inclusive pobres como nós?).

Tinha que ter algo além da convicção de que o direito autoral é uma regra morta e incontrolável justamente porque ela é um dos maiores cabrestos ao desenvolvimento criativo do país. A Calypso assim como outras incríveis bandas de Brega e Forró namoram oficialmente com esquemas de distribuição alternativos (deve existir pelo menos meia dúzia de bandas Calypso covers por aí vendendo mais CD do que muito figurão da MPB).

Tinha mesmo. Tinha a vibração do publico galvanizado com o show, tinha a simpatia extrema da Joelma, seu sorriso, sua graça, seu jeito criança, sua elegância sensual, tinha as guitarradas do Chimbinha e seu transe com a platéia, tinha a produção impecável, de gente grande, sem nada a dever a ninguém.

E tinha eu, freqüentador empolado dos festivais de música clássica, balançando a perninha, rebolando acanhando e cantando “doce mel, doce mel”.

Big-bang

Dizem que um dia o mundo vai entrar em colapso. Gente de mais, recursos de pouco. Trânsito de mais, vias de pouco. Atividades de mais, tempo de pouco. Informação de mais, mente de pouco.

Isso seria verdade se negássemos a velocidade astronômica das expansões: das populações, do espaço, da riqueza, da expectativa de vida, dos recordes olímpicos, da maturidade das crianças. Cada vez mais gente no mundo; cada vez mais espaços ocupados ou fragmentados; cada vez mais velhos morremos; cada olimpíada é mais veloz, forte e bela e minha sobrinha de 5 anos já sabe biológica e sexualmente como se faz um bebê.

Isso talvez fosse verdade também, se não gostássemos de forma infinita de coisas novas, experiências novas, pessoas novas. Se não quiséssemos saber mais sobre tudo. E se o tudo que conhecemos sobre tudo não fosse tão pouco. E se o tudo não fosse ele mesmo infinito.

A expansão é condição da existência. Quando deixamos de expandir, deixamos de viver. Quando uma pessoa deixa de ter curiosidade, deixa de querer mais, saber mais, sentir, mais e sofrer mais, ela está morta. Como o universo. Que cresce até não mais poder. Há bilhões.

E se é assim com o universo, porque seria diferente com o armário? Com os baús esquecidos, com as sucatas que colecionamos, os enredos de inutilidades que nos cercam?

Não é culpa do cartão de crédito se estouramos decentes limites. Melhor acharmos desculpas para a incontrolável compulsão consumista.
Culpa do operário da China, do bicho de seda anabolizado, do aquecimento global que apavora as estações, dos publicitários que conspurcam a sobriedade, de Chanel, Balenciaga, Prada, Margiela e Tom Ford de volta, só nos faltava essa. Culpa da Apple, da Guerra do Iraque, do Tsunami, do planeta Chupão, da receita de Prozac vencida.

Se existe uma abjeta perversidade na desigualdade do mundo, se poucos acumulam enquanto muitos desesperam, a culpa não é do meu closet.

A culpa não é nem do hiperconsumismo nem do hipercomunismo.

Acreditemos no “ganha ganha”. No esforço de integração, nas pontes de mão dupla que fazem o dinheiro daqui circular ali, do outro lado do apartheid social.

Acreditemos que há inspiração aqui e ali, há vida inteligente, criativa, próspera e ambiciosa em todo canto.

Acreditemos na expansão.

Contração é sinônimo de envelhecimento, preconceito, caretice, censura, permanência e tradição.

Quanto mais pobre o país, maior a Internet

A imprensa gosta de alardear, com razão, os sucessos que a Internet tem no país: uma das maiores taxas de crescimento de usuários do mundo, maior tempo médio de conexão, maior comunidade do Orkut, um dos maiores acessos do YouTube, país mais premiado em propaganda interativa, o merecido prêmio que esse Overmundo recebeu recentemente, e por aí vai.

No entanto, os porquês são sempre fantasiosos, poéticos, pouco objetivos: o brasileiro adora novidade, ou o brasileiro é mais criativo – ou o mais gozado de todos –, o brasileiro é um povo surpreendente.

Mas tem uma outra possível explicação. Possível e mais interessante. E mais crível também.

Quem já foi a uma LAN house de periferia, quem já conversou com a sua empregada doméstica, com o filho da sua empregada doméstica, com o amigo mais pobre do filho da sua empregada doméstica talvez tenha um início de resposta.

Que tal pedir emprestado o pen-drive que a garotada carrega no bolso, na mochila ou no pescoço? Dos meninos dos Jardins ou do Jardim Ângela. Tem música, tem trabalho de escola, tem foto de tênis de marca, tem as fotos que ele tirou com o celular para ilustrar sua página pessoal e seus nicknames do MSN, tem até umas experiências de colagem fotográfica, uns vídeos caseiros, umas letras de hip hop.

E quantitativamente, a constatação salta aos olhos: a penetração da Internet nas classes mais pobres tem um crescimento exponencial. Todas as pesquisas dizem isso.

Uma vez, perguntei a um garoto da Cidade de Deus como ele gastava o dinheiro dele. A resposta foi óbvia: “Metade para minha mãe, um quarto para meu acesso à Iinternet em casa (banda larga, claro), mais um pouco para a recarga do meu celular (não dá pra ficar sem) e para minha academia. O restante é para me divertir.” Nada muito diferente de muito garoto bem-nascido, com exceção da ajuda familiar.

E se a gente começasse a perceber que a Internet é um sucesso porque o Brasil é pobre? Porque existem milhões de pessoas que vivem à margem das oportunidades de trabalho, estudo e inserção social. Porque existe uma imensa maioria da população que acha injusta a distribuição de renda do país. Porque toda essa gente quer crescer, quer ganhar dinheiro, quer se informar e se divertir. Porque todos os brasileiros querem se expressar, querem ser ouvidos.

Porque a Internet permite isso tudo e talvez seja a única ferramenta acessível, a única esperança. Bem-aventuradas sejam todas as iniciativas estatais (e privadas) contra a exclusão digital, de investimentos em escolas, de relativização dos direitos autorais, de software livre, de digitalização de trabalhos de domínio público.

Bem-aventurados todos aqueles que acreditarem que esta é a maior oportunidade que o país tem de escapar de um sistema perverso que concentra riqueza e distribui esmolas.

Por que a Internet tem a performance que tem no Brasil? Não seria porque o país é pobre?

A imprensa gosta de alardear, com razão, os sucessos que a Internet tem no país: uma das maiores taxas de crescimento de usuários do mundo, maior tempo médio de conexão, maior comunidade do Orkut, um dos maiores acessos do Youtube, país mais premiado em propaganda interativa, o merecido prêmio que esse Overmundo recebeu recentemente, e por aí vai.

No entanto, os porquês são sempre fantasiosos, poéticos, pouco objetivos: “O brasileiro adora novidade” ou “o brasileiro é mais criativo” ou o mais gozado de todos “o brasileiro é um povo surpreendente”.

Mas tem uma outra possível explicação. Possível e mais interessante. E mais crível também.

Quem já foi a uma lan-house de periferia, quem já conversou com a sua empregada doméstica, com o filho da sua empregada doméstica, com o amigo mais pobre do filho da sua empregada doméstica talvez tenha um início de resposta.

Que tal pedir emprestado o pen-drive que a garotada carrega no bolso, na mochila ou no pescoço? Dos meninos dos Jardins ou do Jardim Ângela. Tem música, tem trabalho de escola, tem foto de tênis de marca, tem as fotos que ele tirou com o celular para ilustrar sua página pessoal e seus nicknames do MSN, tem até umas experiências de colagem fotográfica, uns vídeos caseiros, umas letras de hip hop.

E quantitativamente, a constatação salta aos olhos: a penetração de internet nas classes mais pobres tem um crescimento exponencial. Todas as pesquisas dizem isso.

Uma vez, perguntei a um garoto da Cidade de Deus como ele gastava o dinheiro dele. A resposta foi óbvia: “metade para minha mãe, um quarto para meu acesso a internet em casa (banda larga, claro), mais um pouco para a recarga do meu celular (não dá pra ficar sem) e para minha academia. O restante é para me divertir.” Nada muito diferente de muito garoto bem nascido com exceção da ajuda familiar.

E se a gente começasse a perceber que a Internet é um sucesso porque o Brasil é pobre. Porque existem milhões de pessoas que vivem à margem das oportunidades de trabalho, estudo e inserção social. Porque existe uma imensa maioria da população que acha injusta a distribuição de renda do país. Porque toda essa gente quer crescer, quer ganhar dinheiro, quer se informar e se divertir. Porque todos os brasileiros querem se expressar, querem ser ouvidos.

Porque a Internet permite isso tudo e talvez seja a única ferramenta acessível, a única esperança. Bem-aventuradas sejam todas as iniciativas estatais (e privadas) contra a exclusão digital, de investimentos em escolas, de relativização dos direitos autorais, de software livre, de digitalização de trabalhos de domínio público.

Bem-aventurados todos aqueles que acreditarem que esta é a maior oportunidade que o país tem de escapar de um sistema perverso que concentra riqueza e distribui esmolas.

A revolução silenciosa que a mídia não vê

Deu na ilustrada que saiu dia 21/07: a banda mais popular do Brasil não tem gravadora, não está na lista das mais vendidas oficiais, não é hit das rádios FM e só recentemente apareceu na TV. Ela se chama Banda Calypso.

“Ah sim, claro, eu conheço! É aquele grupo que faz a tal da música Brega, sei sei!”.

Novela das oito, audiência alta, em todas as camadas sociais, regiões e idades. Qual é a música de abertura? Maria Bethânia cantando Copacabana.

“Claro, a grande estrela da música popular brasileira cantando o grande sucesso imortal!”

Não me interessa analisar a música da Calypso ou dos outros que compõe a maior fatia do PIB musical brasileiro (Bruno e Marrone, Zezé di Camargo e Luciano, Calcinha Preta, Aviões do Forró, Roberto Carlos, etc).

Também não me interessa avaliar a cantoria da Bethânia ou de qualquer outro monstro sagrado brasileiro.

Mas algumas palavras da segunda interjeição chamam a atenção: “popular” e “sucesso”.

Maria Bethânia é popular? Copacabana é sucesso?

Não é o que essa pesquisa diz. Não é o que se vê na real, na rua, nos shows, no gigantesco intercâmbio (já que não se pode propriamente falar de comércio) de música popular brasileira. Maria Bethânia não é popular e tampouco Copacabana é sucesso.

Onde é que a mídia se inspira portanto? Quem é que a mídia atinge? Contradição: a mídia se inspira de sua vetusta discoteca e atinge a população que não compra mais discos da Bethânia há décadas. Nem dela nem de ninguém.

Enquanto isso, nas redações londrinas dos jornais brasileiros, a crítica despreza os fenômenos populares ou os julga com velados preconceitos.

Enquanto isso, nos departamentos de marketing americanos das empresas brasileiras, os executivos copiam eventos internacionais e trazem astros para suas “experiências de marca” no Brasil.

Enquanto isso, nas criações holandesas ou argentinas das agências brasileiras, os profissionais escolhem os topos das listas como garotos propaganda ou compõem jingles medievais para martelar o consumidor “tapado, burro e primitivo”.

Enquanto isso, a população segue ouvindo – e adorando – a banda Calypso.

Tem algo de errado. Deve haver alguma coisa muita errada. E agora opinando: errados somos nós, não o povo.

Há sim, no país, uma revolução silenciosa em curso. Enorme, nunca vista e nunca imaginada. Uma revolução que desestabiliza as estruturas, sociais, jurídicas, culturais, econômicas. Uma revolução que é “A” saída para a injustiça social perversa do país.

Uma revolução que traz exemplos brilhantes, ícones sagrados, como o Chimbinha da Banda Calypso, ontem vendedor de peixe na feira no Pará, e que conseguiu romper todas as barreiras, sem mecenas, sem crítica, sem padrinho político, sem propaganda tradicional, sem mídia. Com seu talento, suas intuições, sua inteligência e sua fé.

E como eles, muitos outros, milhares, quem sabe milhões, que trabalham, sobrevivem, têm sucesso, nessa “margem” hoje muito maior e mais produtiva do que o centro alienígena ocupado pela mídia, pelas marcas e agências de propaganda.

Você já inovou hoje, meu filho?

Inovação é um mantra que vicia dez em dez publicitários, um elixir mágico que transforma um sapo em príncipe, uma mezinha que cura da ressaca criativa, um band-aid que socorre a hemorragia de atenção dos consumidores.

E a gente se envergonha facilmente de tudo aquilo que é normal e tradicional.

Daí a gente bola estratagemas ardilosos, arma a arapuca e engraxa o anzol para pegar o cara. Onde quer que ele esteja.

Na TV, quando ele não está brigando com o Skype; no rádio, quando ele não está falando no celular; na Internet, quando ele está se instruindo com o último sucesso do YouTube; na revista, quando ele vai cortar o cabelo; no jornal, enquanto o sinal não abre. E também no email, quando ele se distrai da tecla delete; na rua, quando ele tropeça e cai de fuça no adesivo guerrilheiro; no show, quando ele responde pesquisa na décima ligação “ativa” de número não identificado às 8 da manhã de sábado.

A regra é “pegue o cara na curva”, e trezentos e sessenta mil graus é a circunferência de nossas estratégias de comunicação.

E lógico, se você descobrir uma maneira de fazer o cara olhar para o céu bem na hora que sua mensagem estiver passando, se você souber que ele vai meditar sobre sua mensagem cifrada – para não dizer envergonhada – simplesmente pelo fato de que você lhe deu pistas a cada passo que deu, se você se assegurar que ele é refém de sua extraordinária estratégia de impacto e freqüência, muito além das ondas catódicas, você alcançou seu objetivo de comunicação: você catou o cara. Parabéns.

Você também conseguiu justificar com maestria sua voracidade libidinosa por inextricáveis planilhas, você deu demonstrações claras de suas antenas conectadas nas mais remotas tendências, você levantou aplausos pela sua sensibilidade transcendental.

Isso sem falar que você disfarçou com virtuosismo sua falta de criatividade.

Que tal pensar um pouco na idéia, antes de calcular em quantos graus se dispersa uma verba?

Chega de apartheid

Quando a gente fala de comunicação na Internet, ainda estamos muito viciados. Ainda somos incrivelmente preconceituosos, preguiçosos, covardes e protecionistas. A Internet ainda é assunto à parte, uma espécie de graal ou penico – depende do ponto de vista – da modernidade.

Vejamos a cobertura que a mídia dá ao assunto. Quase sempre se trata de um tema de especialistas, pessoas que só fazem isso e – pior – só sabem fazer isso. E são quase sempre os mesmos que dão opinião. O resultado é que os temas são assustadoramente repetitivos, entrópicos e chatos. Será que ninguém percebeu que não existem “consumidores de mídia”, mas “consumidores de marcas”? E, por isso mesmo, será que ninguém percebeu que não existem “especialistas em mídia”, mas “especialistas em propaganda”? Já está mais do que na hora de ouvir outras pessoas e não apenas e tão-somente os “pretensiosos” especialistas, os voluntária ou involuntariamente “segregados”. Nada contra eles, mas vamos ouvir os outros. Até porque, dessa interlocução, a gente vai descobrir também quem pensa o assunto, quem sabe raciocinar sobre ele e vai desnudar os ausentes e os que enrolam.

Vejamos como os prêmios de propaganda tratam do assunto propaganda na Internet. São prêmios separados, cheios de confusões para dividir as categorias e julgados pelos mesmos “especialistas”, os mesmos de sempre que só fazem isso. É insuportável ver o resultado, pois uma boa idéia é boa idéia, qualquer que seja a mídia, quem quer que seja quem a julga. Isso não significa, é claro, que não deva haver “categorias”. Ajuda a organizar um pouco e a comparar. Só significa que não deveria ter especialistas em Internet que criam para especialistas julgarem, especialistas verem e especialistas escreverem sobre. Ou melhor, não deveria ter só especialistas. Nem em Internet, nem em qualquer outra mídia. Devemos ter especialistas em propaganda e pronto. Ou em criação. E quem sabe, talvez, alguns especialistas em Internet também sejam especialistas em propaganda. E, quem sabe, especialistas em propaganda que julgam outras categorias não sejam assim tão especialistas assim em propaganda, porque não entendem nada de Internet.

Esses dois exemplos periféricos demonstram talvez também – e revelam – que as empresas de comunicação, as agências, não estão tão integradas assim, embora elas tenham o costume de discursar com criativas retóricas sobre o tema.

Mas é possível imaginar que exista um esforço para se rebelar contra o apartheid retrógrado, estéril e mal-assumido que acomete os profissionais do meio.

Porque propaganda na Internet é tão ruim?

A propaganda sempre vai ser propaganda, qualquer que seja o suporte, qualquer que seja a tecnologia, mídia, formato: uma mensagem comercial. E uma boa propaganda sempre vai ser uma boa propaganda, qualquer que seja o produto, a marca, ou o consumidor: uma mensagem comercial com impacto, brand linkage (tentei traduzir mas ficou horrível) e que agrada.

O que mudou, portanto, não é nem o propósito nem a forma de fazer nem a mídia.

O que mudou é que as pessoas estão de saco cheio de serem interrompidos com porcaria. É só isso que mudou.

As pessoas estão de saco cheio de serem obrigados a engolir mensagens idiotas, sejam elas comerciais ou não.

E óbvio, agora, a gente pode escolher. E isso muda tudo, porque a gente escolhe o que nos interessa e despreza o resto.

Nesse cenário, o que muda com a propaganda? Praticamente nada. Só que agora, ficou mais difícil. Muito mais. Simplesmente porque ninguém se deixa mais enganar pelos truques: martelar um jingle, contratar um ator famoso, demonstrar atributos, fazer piadas sem graça, nem mesmo fazer uma linda produção.

Mas o fato das pessoas não gostarem mais de serem interrompidos pelas mensagens comerciais, não significa que a propaganda morreu, só quer dizer que ela tem que ser o que sempre precisou ser mas nem sempre foi: boa.

Outro dia, fui julgar umas “propagandas” inscritas na Internet para um festival. Foi um show de horror, e saibam que faço isso desde tempos imemoriais.

Nunca me encheu tanto o saco ver aquele monte de sites inúteis, piscando pra todo lado.

Nunca fiquei tão irritado com tanto tempo perdido já que, contrariamente ao consumidor normal, eu estava ali para julgar portanto era obrigado a ver tudo.

Nunca fiquei tão nervoso com aquela profusão de vídeos idiotas, sem graça, intermináveis. Nunca fiquei tão desapontado com a qualidade tosca das produções.

Foi uma tortura, mas nada muito diferente de assistir ao Fantástico sendo interrompido pelo lixo publicitário.

Aliás, tem sim aquela diferença: o Fantástico me interrompe com a propaganda e se eu quiser ver o resto da programação sou praticamente obrigado a ser importunado. Já na Internet, to fora! E um dia, o Fantástico também vai deixar de interessar. Nesse dia, a propaganda ruim simplesmente vai morrer. Já vai tarde.

E não adianta nada fazer essas estratégias pseudo-misteriosas, pseudo-spam-virais. Nem encher meu saco com vídeos e interações idiotas. Nem achar que estou morrendo de vontade de interagir com o mundo real no second life.

Porque propaganda ruim, na mídia tradicional funciona. Na Internet não.

E o aquecimento global? Quem liga? Os pingüins.

Outro dia, uma instalação efêmera ocupou o parque do Ibirapuera em São Paulo. Centenas de pingüins de gelo, por algumas horas derreteram sob o sol inclemente. Seu choro tinha uma mensagem singela: e aí, e o aquecimento global? Quem tá ligando?

A autoria ainda é mais insólita: um site www.50graus.com.br. Além dos vídeos (veja no Youtube http://www.youtube.com/watch?v=y1DhylYVbZU) alguns adesivos de animais derretendo.

Entrei em contato com o site e recebi a mais inusitada e calorosa das respostas: “somos um grupo de inconformados anônimos”.

E mais adiante: “não somos ativistas, nem políticos, nem ecologistas, nem doutores, nem coisa nenhuma.”

A 50 graus é uma espécie de desorganização, portanto sem dono, sem autor.

Uma iniciativa livre – de direitos inclusive – sem expectativas, policiamentos, discursos ideológicos, compromissos institucionais, sem vaidades, sem mística.

Não tem nem a bandidagem guerrilheira do Bansky http://www.banksy.co.uk/, nem as invasões dos space invaders http://www.space-invaders.com nem qualquer manifestação do chamado “marketing de guerrilha” http://www.marketing-alternatif.com/index.php?paged=1.

Só gente como todo mundo afim de se manifestar. Longe dos discursos clichês e inócuos dos governos e instituições políticas, longe das iniciativas pseudo do bem das empresas “com responsabilidade social”, longe das caridades, longe das organizações não governamentais. Longe de tudo que é primeira, segunda e terceira via. Como uma espécie de quarta via. A via das pessoas, cada um na sua, mas com um inconformismo em comum.

A sociedade da colaboração

A propaganda sempre foi muito permeável aos modismos. Nada contra, muito pelo contrário.

Para lembrar de alguns recentes, teve o tempo das pesquisas etnográficas (não existe observação passiva), o da Internet (mídias mortas, convergências e outras hiperbólicas transformações), o do branding (a visão holística – outro modismo – das marcas), o do despertar da emoção na comunicação das marcas (essa é velha), o das tendências (desperte a parabólica que exista em você), o do buzz-marketing (o boca-a-boca, não diga, funciona), o do marketing viral (misto de telefone sem fio com fofoca exponencial).

E por aí vai, sem falar de outros mais periféricos. A propaganda da propaganda, a argentinização dos formatos, o barroco revisitado, os pastiches pseudobregas, a photoshopização desenfreada, a criação do povo para o povo e pelo povo. Me ajudem, tem muitos outros!

Não cabe nenhum tipo de crítica aqui, pois o publicitário é o mais esponjoso dos seres.

No entanto, o debate é raro. E quando surge, dificilmente ele transcende a anedota, o frasismo metafórico, a vaidade lustrosa.

A introdução é longa, mas – outra característica da publicidade – quem resiste às alfinetadas?

Parece, porém, que poucos conseguem encarar com mais seriedade a transformação que está na nossa fuça. E quando falo em encarar, não significa cacarejar, significa trabalhar, enfrentar e experimentar.

E dessa fez, não se trata de um modismo. Longe disso.

Afinal, o que é esse tal de colaborativismo?

Vou usar um recorrente artifício para qualificá-lo: a enumeração de argumentos no melhor estilo dos manuais acadêmicos, aliás, um modismo que também grassa por aí.

E são dez os mandamentos, claro.

1. Os bits da fama

Hoje é fácil, barato, rápido, eficiente emitir opinião, divulgá-la e construir reputação. Basta ter um e-mail, um blog, um megafone digital qualquer. Uma andorinha faz um verão.

2. A referência desavergonhada

A informação, a análise, os scoops, a documentação, as referências estão ao alcance de todos. Basta ter curiosidade e meio neurônio para vomitar Maffesoli e Derrida “com meia dúzia de hiperlink. Por outro lado, é verdade que a difusão de conhecimento não é sonho, é realidade.

3. A cultura da superficialidade

Desde 68 que os especialistas estão desempregados. É rei quem souber um pouco de tudo e conseguir surfar confortavelmente por todos os assuntos. Quem ainda duvida da capacidade infinita do cérebro humano está com Alzheimer.

4. Copio ergo sum

Foi-se o tempo em que uma reputação se construía à base de trabalho e autoria. É rei hoje quem mais rápido copia sem sequer cogitar citar a fonte. Acredita-se tanto no “chupo porque posso”, quanto no “chupa-me porque gosto”.

5. Eu vi primeiro

Ver antes é infinitamente mais importante do que ver certo. As reputações se constroem por sobre a capacidade de encontrar antes e – corolário indispensável – difundir imediatamente sem comprovação necessária. Não se engane, o importante não é achar, mas divulgar. E isso é lindo.

6. De graça é mais legal

Não há dinheiro no mundo para fiscalizar, repreender ou policiar o fluxo de negócios que namoram com algum tipo de ilegalidade no “Long Tail”. E é inquestionável a fertilidade e utilidade dessa “flexibilização” compulsória da legalidade.

7. Mestiçagem é bom

A heterose é profícua. E não há limites para a mestiçagem, nem rigor, nem vergonha. Não importa de onde vem a influência nem a coerência e muito menos o consentimento da origem. Definitivamente não existe geração espontânea na criação.

8. A novidade efêmera

Nada é novo por muito tempo. Embora a novidade seja a mais universal e excitante das molas intelectuais, ela dura pouco. O Zeitgeist é uma fofoca.

9. Dinheiro, dinheiro, dinheiro

Dinheiro é a mola de todas as iniciativas. E dinheiro não tem ética, nem vergonha. Dinheiro é o que eu vou ter com a fama, com o conhecimento, com a capacidade de saber um pouco de tudo, com o que copio, com a divulgação do que vi antes, com o que consegui sem pagar, com a mestiçagem da minha produção, com a natação no Zeitgeist, com o dinheiro que eu vou conseguir com tudo isso.

10. Sociedade da colaboração é um eufemismo

Quem leu até aqui pode achar que tudo isso é feio, horrível, degradante. Se chegou a essa conclusão, das duas uma: ou não entendeu nada ou é muito falso. Mas pouco importa o que se acha, o que importa é o que rola. E quem for contra o que rola, vai se enrolar.

Esses são os 10 postulados da nossa sociedade que – modismos – chamamos de sociedade da colaboração.

A mensagem final, no entanto, talvez seja mais importante do que todas as constatações acima. Mais importante do que constatar é conviver. É conseguir encontrar uma via que seja capaz de conciliar estruturas poderosas com novas ainda subterrâneas. Estruturas em cheque com novas forças. Conciliar, e não subverter.

Você já ouviu falar no Creative Commons?

O Copyright é entrave à memória, difusão e organização.

“Recente pesquisa da IDC indica que 161 bilhões de gigabytes de informação foram gerados no ano passado em todo mundo. “

Não faço a menor idéia de como essa pesquisa fez para calcular, mas é certo que a conclusão de que não há espaço suficiente para armazenar tantos dados não surpreende nem choca.

Mas me parece que o assunto pode ser muito mais interessante do que simplesmente mais um desses googolplex que poluem nossa existência.

Sabe-se, portanto e também, que não existe dinheiro no mundo capaz de digitalizar, armazenar e organizar toda a produção cultural da nossa espécie. Nem a de hoje nem a do passado, muito menos a do futuro.

Isso nos coloca uma pergunta: o que faremos com ela?

A excessiva proteção aos direitos autorais não estaria sendo um real – e inflexível – entrave não somente à difusão de conhecimento mas também à perpetuação da memória cultural?

Enquanto o debate a respeito das leis de Copyright corre solto, existem talvez mais argumentos a considerar nesse embate que colocam em perspectivas alternativas urgentes às legislações atuais.

Por exemplo, talvez exista uma forma de encarar, a disseminação dos softwares P to P como um grande benefício de bem comum. Em pró da memória, em outras palavras. A capilaridade extrema da capacidade de armazenagem beneficia a memória. A difusão desse conteúdo de usuário para usuário além de compartilhar essa produção, de forma igualitária, democrática e barata, economiza a caríssima intermediação de servidores.

Esse é um ponto da questão.

O outro é a própria digitalização dos conteúdos do passado. Certamente não existe dinheiro suficiente na economia para digitalizar tudo aquilo que ainda é analógico ou físico. E mais uma vez, não nos cabe (e não cabe a ninguém) julgar esse conteúdo. Já estou vendo os excitados de plantão (vide autoritários) propondo uma classificação daquilo que vale a pena perpetuar. Portanto, mais uma vez, a capilaridade dos recursos de digitalização beneficiam a memória. Cada vez que uma pessoa digitaliza algo que não tinha memória digital – e mesmo que tivesse – além de dividir com o mundo a produção da humanidade através dos softwares P to P ou por qualquer outro meio digital (email por exemplo), economiza muito dinheiro.

Mais há mais um ponto.

Ainda que se possa imaginar que haja dinheiro, tempo e interesse comercial em se digitalizar e armazenar tudo que foi, é ou será produzido pelos homens, quem é que vai organizar tudo isso? Como vai ser? Talvez a alternativa, mais uma vez, seja de capilarizar a curadoria de conteúdos. Em outras palavras, os conteúdos serão organizados pelos próprios infinitos difusores dos mesmos. Muito mais fácil assim de encontrar o que se procura. Divide-se mais uma vez a responsabilidade e melhora-se a qualidade.

Esses são mais alguns argumentos que deveriam entrar em debate, acredito, cada vez que estamos discutindo direito autoral versus alternativas como o Creative Commons.

O Kem Kem de Hassi Lebied

Kem Kem é o nome do Cyber café/Lan house de Hassi Lebied, uma aldeia aos pés da grande duna de Merzouga no Marrocos.

Hassi Lebied é microscópica. Não está em nenhum mapa. Para chegar lá, pegue a estrada que vai para o sul do Marrocos (só tem uma) e fique atento às placas… Se der sorte, você chega lá. E lá não é muita coisa: meia dúzia de ruas sem asfalto, mal iluminadas, casebres baixos, uma penca de dromedários mascando os dentes e sombras fugidias de mulheres veladas e berbères azuis. Com exceção de poucos turistas que se aventuram de 4X4 ou atraídos pelo exotismo de um “céu que nos protege”, Hassi Lebied é uma miragem na estrada que leva a Merzouga, importante centro turístico no deserto marroquino.

À noite em Hassi Lebied é desolada: a duna ausente, o frio paradoxal, o silêncio opressor e vez por outro o foco azul de um led a iluminar passos acelerados.

Só uma luz colhe os insones vespertinos. É o Café Kem Kem, o maior pólo de entretenimento e de negócios da região.

O Kem Kem é assim, uma espécie de bar de Guerra nas Estrelas em Tatouine (aliás, também desolada aldeia do Marrocos). Os murmúrios no Skype (analfabetos não teclam) e o batuque dos teclados mobiliam a atmosfera. Cutsa barato o Kem Kem: alguns Dirhams a hora ou seja, quase nada. Nada de azaração (país muçulmano oblige) mas muita concentração. Jogam, lêem, conversam, informam-se, assistem seriados e filmes da rica produção marroquina, batem papo com parentes presos na Argélia ou Somália vizinhas, amigos que emigraram, namoradas de um dia, espanholas, francesas, alemãs. Também vendem, compram, encomendam, fecham negócios no Kem Kem, exportam artesanato, contatam grupos de turistas. O dromedário está caro (cerca de dez mil Dirhams) porque quando chove o preço sobe, mas quem sabe em Ouarzazate, contrate-se um bom tropel. No Kem Kem a gente fica sabendo das coisas.

E no Kem Kem também, quando não se tem nada para fazer, porque não se tem nada para fazer sempre em Hassi Lebied, a gente vai lá, e fica vendo o povo, tomando um chá de hortelã, esperando o sono chegar.

O dono do Kem Kem não está rico. Nem pobre. Tem lá seu negócio e vai bem. Os computadores são novos, a conexão boa, e quanto mais pontos colocar, mais gente vai ter para passar o tempo, conversar, comunicar-se, fechar negócios.

O Kem Kem é junto com a mesquita o lugar referência de Hassi Lebied. A mesquita é pra falar com Deus, o Kem Kem é pra falar com os homens.

E existem Kem Kems assim em todo o lugar. Em Marrakesh a oferecida, em Fés a recatada, nas menores e mais longínquas aldeias, no Atlas inacessível, no deserto negro, ao longo da marcha verda na estrada colonizadora do Sahara ocidental. Porque Internet e telefone celular tem para todo canto no Marrocos. Questão de soberania. Questão de coesão nacional. De identidade.

E precisei atravessar meio mundo para entrar no Kem Kem de Hassi Lebied. Mas tem Kem Kem em baixo do meu nariz. Para todo lado, nos mais pobres rincões, das mais às menos organizadas periferias do Brasil.
E aqui o que seria? Questão de inserção social? De acesso ao inacessível? De produção cultural?

Quem tem o que falar, depoimentos (como vários aqui já feitos), mas principalmente pesquisas, estudos sobre o fenômeno das Lan-houses brasileiras? O que é que está acontecendo e como é que a gente tem que enxergar essa terceira ou quarta via da inclusão digital?

Creative commons: uma espécie de fermento criativo

Se a criação é um bem de consumo, portanto, não há tempo para degustar, contemplar, refletir, analisar. Consome-se como se lê, vê ou ouve, digere-se como se pode, e regurgita-se como se quer.

Em tempos de conteúdo colaborativo, de livre expressão, de canais abertos, de democratização criativa, de contágio viral, em tempos de acesso irrestrito aos megafones das mídias freeware, o autor que se cuide. Principalmente se ele tem a veleidade de preservar sua autoria em prol da biografia, da vaidade, da contribuição intelectual desinteressada ou não.

Enquanto a interpretação dos conteúdos ou das obras era individual, as autorias sofriam poucos ou nenhum risco. O “criador” produzia e a audiência qualificava sem conseqüências. Mas a partir do momento em que a audiência torna-se também mídia espontânea e formadora de opinião, as conseqüências significam, para além da permeabilidade das idéias, a desintegração da própria noção de autoria.

E dessa desintegração nascem certos perigos e muitas virtudes.

Perigos da difusão equivocada de conteúdos e análises, por exemplo. Perigos de comprometer reputações. Perigos inerentes a tudo aquilo que é novo e como tal, desconhecido.

Mas muitas virtudes também. As virtudes de questionar as vaidades e o egoísmo autoral. Virtudes do exercício democratizado da interpretação. E principalmente as virtudes próprias de uma espécie de fermento criativo.

Nesses nossos tempos, em que todos nos tornamos ao mesmo tempo autores e veículos, não existe mais autoria individual mas autorias coletivas.

Não importa mais a minha idéia, mas sim a capacidade que ela teve de gerar outras, complementares ou detratoras. E essa multiplicação é sempre fértil.

É esse o princípio que está por detrás de todas as iniciativas colaborativas que se assumem creative commons ou que ainda não têm toda essa coragem.

É porque acreditamos que quanto mais colaborativa for a criação, mais criativa ela é, que o direito de autor é um conceito mesquinho e ultrapassado.

É porque acreditamos que quaisquer formas de democratização da autoria – restritas ou irrestritas – quando formalizadas, preservam até as autorias originais, que o direito de autor, tal como existe, é um princípio doente e moribundo.

O tempo nem passou e já passou. Por que será? Por que será?

Nem dava enjôo de fazer mas mesmo assim não passava o tempo. Isso era antes. Antes, quando a gente acordava e não gostava de dormir porque não sabia para que serve. E já fazia os planos do dia. Primeiro tinha que ir lá ver o formigueiro destruído na véspera. Vai ver tinham desistido de vez. Teimosia de formiga. Depois, o caminho que a gente ia picar no meio do mato, para passar sem ser visto, se acontecer alguma coisa que precisa fugir é só levantar as samambaias. A comida ficaria pendurada num saco para ninguém achar. Precisava de uma faca também e uma lanterna se fosse de noite, um pouco de dinheiro para pegar um ônibus depois, e a caderneta de telefone para ligar para a vó. E se eles achassem o caminho tinha que cava um buraco. Tapar com uns galhos bem disfarçados. Mas talvez mais um depois, mais para o final do caminho. Esse eles não iam ver nunca e dava mais tempo para correr porque tem gente velha que não pode correr muito bem. Gente velha é bom porque sabe fazer comida mas dá um atraso danado!

Propaganda, targets e mídia: bagunçou

Mídia. Como é? São dois os cálculos possíveis. O primeiro é otimizar o dinheiro que tenho, o segundo é descobrir quanto dinheiro é preciso para alcançar os objetivos. Como não poderia deixar de ser, ambas as alternativas são regidas pela lei do custo X benefício onde benefício significa “quantas pessoas serão impactadas”.

Para cálculos são necessários números e para números são necessárias pesquisas. Para pesquisas é necessário controle e para ter controle é necessário isolar variáveis – coeteris paribus. Quanto mais variáveis, menos controle e quanto menos controle, menos idéias e quanto menos idéias, menos inovação e quanto menos inovação, menos ação e quanto menos ação, menos dinheiro e quanto menos dinheiro, menos tudo.

Daí a gente tem que explicar para a propaganda que não existem mais meia dúzia de veículos com força suficiente para impactar os públicos, mas milhões. Daí a gente tem que explicar para a propaganda que os veículos são feitos pelos próprios públicos que queremos impactar.

Tilt 1: a mídia é o target e o target é a mídia.

E a mensagem? Como é? São dois os raciocínios. O primeiro é dizer o que as pessoas dizem. O segundo é dizer o que as pessoas vão dizer. Como não poderia deixar de ser, ambas as alternativas são regidas pela lei do mínimo denominador comum, sendo que esse mínimo aí é o que todos os públicos vão entender.

E para encontrar esse mínimo aí, precisa de pesquisa. Nesse ponto o raciocínio volta a ser o mesmo. Pesquisa tem que ter controle, para ter controle tem que ter poucas variáveis e por aí vai.

Daí a gente tem que explicar para a propaganda que a mensagem que melhor funciona com nosso público é aquela que o próprio público faz. E a mensagem que o público faz é um monte de mensagens. E esse monte de mensagens é um monte. E se é um monte, tem um monte de mínimos denominadores comuns. Daí a gente tem que explicar para a propaganda que o mínimo denominador comum não impacta o máximo de pessoas possíveis.

Tilt 2: a mensagem é o target e o target é a mensagem.

E a esses dois tilts, como é que o mundo do marketing reage?

O mundo do marketing reage de duas maneiras: como uma avestruz ou como um hiena. Enterra a cabeça e espera que a manada faça greve ou se regala com a carniça e gargalha.

Mas que jeito a gente dá então para explicar que está cheio de tilts no circuito?

Debate político é um Fla X Flu

– Oi Maria,
– Oi Seu Fernand.
– Mas o Lula tava demais ontem não?
– Tava?
– Nossa, ele foi bom!
– Foi

Pouco depois:

– Você viu o debate?
– Vi. O Geraldo foi incisivo.
– Foi?
– Ele destruiu o Lula.
– Destruiu?

Quem aqui lembraria de um único googleplex apavorante vomitado ao longo do debate? Quem sabe quanto um investiu nisso ou o outro naquilo? Quem pagou quanto de propina para quem? E quem é mesmo que queria resposta para as perguntas? Aliás, quem é que ouviu as perguntas? E as respostas?

Um rubro-negro e um tricolor no mesmo estádio, no mesmo dia, no mesmo jogo. No mesmo jogo? Era não. Flamenguista: “O Flamengo arrasou”. Fluminense: “O Flu destruiu”. O ou contrário, mas o certo é que não estiveram no mesmo jogo, mesmo estando.

Então quem ganhou o jogo? Detalhe. Quem ganhou o debate? Detalhe. Ninguém convenceu ninguém. E também quem estava interessado em convencer? Era o prazer do debate pelo debate, do jogo pelo jogo. Era só prazer de arrumar desculpas para as derrapadas do seu candidato e anabolisar os seus ataques. O prazer de mangar das incoerências do adversário e injuriar-se com suas acusações.

Então quem tinha razão? Mas o que a razão tem a ver com isso? Coitada, a razão é tão lenta! Quase burra. A emoção é rápida, envolvente, tão mais inteligente!

A razão até convence, mas leva um século. Ou quatro. Mais pelo cansaço do que pela verdade.

A verdade é uma nuvem de fumaça. E as escolhas, inclusive políticas, pouco têm a ver com reflexões ponderadas. No fim, a gente vota na emoção. A gente também se defende na emoção e até se arrepende na emoção.

Quem mudou seu voto, no debate, mudou pelo sorriso ou pela careta, pela violência ou afago, pela pena ou paixão.

Decisão política é coisa do coração, de crença, de fé.

Cogito ergo sum, uma ova!

São Paulo não é feia, é desleixada

São Paulo é uma cidade muito feia. Dizem. Quem liga para isso? Quem liga para as calçadas esburacadas, os lixos escancarados, obras horrendamente inacabadas, tapumes descascados? Quem liga para os acampamentos provisórios, para a gatolândia de fios, para os canteiros favelizados?

Ninguém está nem aí porque é provisório, “em construção”.

São Paulo é assim, nunca acaba. E o paulistano parece não se incomodar com esse “deixa pra depois”, pro próximo infeliz que se incomodar.

Mas claro, depois reclamam que é feia a cidade. Reclamam do Minhocão, do Borba Gato, do neoclassicismo burguês, do foguete rosa da Pedroso de Morais, da melancia da Avenida Brigadeiro Luis Antonio, do abrigo da Patriarca.

Mas o que é precisamente horrendo é o inacabado ou mal-acabado. Porque até o fora de moda, o cafona, o desproporcional, o chupado, o sem noção, é melhor do que o acampamento no qual vivemos. Um dia o teatro Municipal foi démodé; hoje é ícone. O Pacaembu foi arquitetura fascista; hoje é sobriamente belo. Os casarões da avenida Brasil foram novo-riquismo; hoje são nossa avenue Foch.

E nessa Dresden pós bombardeio, respiramos em ilhas de tranqüilidade: nos Jardins, na Aclimação, no Alto da Boa Vista, na Vila Nova Conceição. Não tem nada de genuinamente belo – se é que esse conceito existe – nesses oásis. O que existe sim é organização, esmero, carinho.
O que falta aqui é uma lei de zoneamento do temporário. Uma lei de manutenção e limpeza. Uma lei do acabamento.

E para disfarçar a falta de vergonha, vem essa polêmica discussão sobre a proibição radical de qualquer mídia exterior na cidade. De um lado os probos e conscientes administradores públicos a empunhar argumentos demagógicos. De outro os empresários desse negócio a defender hipócritos argumentos.

Tenho dó de imaginar São Paulo sem o disfarce da mídia exterior. Até prefiro uma empena gigante de uma morenaça de biquíni a um muro descascado. Prefiro um tapume de aparelho celular a um gradil caindo aos pedaços. Prefiro uma série de outdoor a uma medonha obra inacabada.

Pelo menos disfarça a lepra e o descaso.