All posts by Fernand Alphen

Só pensamos naquilo

Todos vocês já devem ter notado como estamos ficando mais rápidos, mais informados, mais inteligentes e preparados. São os bônus dos tempos pós-pós-modernos.

Não é um problema de estresse pelo excesso de conteúdo informativo. Acreditamos na quase infinita capacidade de expandir a nossa percepção.

Não precisamos de curadores. Desejamos amplificadores de informação.

Não queremos um guru. Queremos milhões de sacerdotes da palavra.

Não gostamos de economia nem de essência. Gostamos de fartura e de multiplicidade.

Somos desplanejados e imediatistas, graças a Deus.

Mas também estamos ficando com mais olheiras, piores motoristas e muito mal-educados.

“O que vou escrever no meu twitter, facebook, blog etc”. Dormimos cada dia mais tarde porque temos que ler tudo que queremos ler, escrever em todas as comunidades que precisamos alimentar. Haja creme anti-age, compressa de chá de camomila, botox ou óculos escuros.

O trânsito está um caos. Sorte das redes sociais, dos blogs, dos aplicativos de celular. E só tende a piorar, porque é um olho no carro da frente, outro no celular. Uma mão no volante e a outra no teclado. Um neurônio na rua e três bilhões nas infovias. O trânsito não é um problema, é uma solução.

E como é bom descobrir todos os dias os milagres da vida: “Como é que eu vivi tantos anos sem isso e isso e aquilo!” Não dá mais para almoçar com os amigos sem verificar o nível de decibéis da sala, se a mesa está no prumo, qual é a temperatura (presumida e falsa) em Moscou. É falta de educação, mas estão todos na mesma, às vezes postando no twitter o que iremos ver segundos depois entre uma garfada de frango e uma goiabada (tudo no mesmo prato, claro).

No fundo, são poucos os prejuízos, não é mesmo? Porque, para os possíveis danos cerebrais, basta dar um reboot, de vez em quando, e bem rápido. Crtl-Alt-Del em algum lugar bem primitivo, ridiculamente ultrapassado, tipo um spa, uma viagem de avião sem internet ou uma noite, dormida.

E pronto, estamos novos de novo pra só pensar naquilo.

Ressuscitem São Tomé

No último relatório da Organização Sul-Africana para o Desenvolvimento da Pesquisa Científica (SACR), pesquisadores da ou University of Cape Town anunciaram o isolamento de um vírus de computador de incontrolável efeito. Nada de muito novo, não fosse esse um vírus de verdade, como os que nós humanos pegamos a torto e a direito. Um vírus orgânico.  Para Jackson Jukjevick, autor da descoberta, “a agressividade desse vírus é tal, que ele atua não somente nos softwares e sistemas operacionais, mas nos circuitos internos dos computadores”.

Uma lei acaba de ser aprovada pelo Senado francês: pessoas que se apropriam de conteúdos regidos pelas leis universais dos direitos autorais copiando-os em seus ambientes digitais são passíveis de prisão inafiançável. Embora a lei não pareça surpreendente, um dispositivo especial também foi aprovado, segundo o qual não são necessárias provas formais da cópia, bastando apresentar uma impressão de tela do conteúdo copiado para caracterizar crime.

Um hacker inglês entrou mês passado nos servidores da Wikipédia em sua versão romena e, fazendo uso de um robô, alterou todas as definições ali encontradas, negando todas as afirmações. Todas. Por exemplo: onde se lia “a Mona Lisa foi pintada por Leonardo da Vinci”, lê-se agora “A Mona Lisa não foi pintada por Leonardo da Vinci”. O engraçadinho ainda teve requintes de substituir autorias como, por exemplo, no caso da lei geral da gravidade, o hacker atribui a formulação ao obscuro cientista romeno Vladislav Marinono.

É tudo verdade? Não. Essas afirmações foram integralmente criadas para o propósito desse artigo. Mas digamos que essas pequenas mentiras tenham sido publicadas blogosfera afora e que elas tenham tido alto poder de contaminação. Em tempos de informação fragmentada, em tempos de desvirtuação das autorias, em tempos de bagunça virtual, a veracidade é diretamente proporcional à capacidade de reprodução. Toda mentira tem seu momento de glória na Web.

Ainda vivemos em um momento de incipiente anarquia. Mas ela promete piorar muito. Ainda convivemos com o conforto proporcionado por velhas (decrépitas) instituições. Enciclopedistas ainda existem. Dicionaristas idem. E livros e publicações e outras mídias centenárias. Mas não por muito tempo. A menos que…

A mídia (velha) morre a cada dia um pouco, quando tenta competir com criação e produção de informação. Como competir com milhões, bilhões de autores ensandecidos? Como competir com a gratuidade dos conteúdos postados por qualquer mané? Como competir com bilhões de correspondentes que testemunharam o fato in loco? A menos que…

A menos que a velha mídia ressuscite e cumpra um novo papel. E seu papel talvez tenda a ser uma espécie de “autenticador de veracidade”. Em vez de criar, validar e dar provas.

E, em tempos de informação push, recebemos o que nos interessa a qualquer momento, em todas as plataformas. A velha mídia ganhará um renovado valor quando ela for capaz de vender a comprovação.

Vem aí, em breve, o reconhecimento de autenticidade on-line que filtra o joio do trigo, o gato da lebre, a verdade da mentira. Uma espécie de São Tomé virtual.

O emergir do consumidor

É fato, no progresso econômico e, portanto, no conforto do sistema, a emergência de uma população ontem apartada. Muito se relaciona o ingresso de milhões de pessoas no mercado consumidor à rebarba da bonança econômica no qual o Brasil surfou e a certas políticas públicas – de assistencialismo para alguns, de justiça social para outros. O fato é que tais pessoas estão aí, e esse novo mercado interno pode significar um lampejo de esperança para um mundo atolado em recessão e desespero. Um novo mercado significa um novo Brasil para os milhões de sobreviventes de séculos de abandono.

Mário mora na periferia do Rio. Ele tem pouco mais de 20 anos e ganha trezentos e poucos reais com um emprego no supermercado. Mas uma coisa faz do garoto um cara diferente de seus pais, imigrantes nordestinos. Mário faz um bico vendendo DVDs piratas que ele mesmo confecciona. Dá pra tirar uns quinhentos por mês, dependendo da temporada de lançamentos. Mário também não dispensa o celular, o computador, o pen-drive pendurado no pescoço e está negociando um home theater para sua mãe (negociando, porque vai um pouco de dinheiro guardado, uma moto encostada e um pequeno empréstimo pessoal que ele conseguiu aprovar numa financeira). Mário faz sucesso e não deixa barato: capricha no visual, nas roupas da moda, perfume e produtos de beleza. Sabe tudo o que pega e o que rola.

Essa é a diferença: o desejo de consumo.

Então seria a tal da nova economia uma das novidades desse novo Brasil? Sempre houve informalidade no Brasil. Todo mundo sempre fez bico. A cauda longa é velha nossa conhecida. Só não tinha nome bonito nem frequentava dez entre cada dez congressos para bonitos executivos.

Mas vamos conversar com o Mário. O Mário tem internet faz tempo e também faz tempo que a Internet para Mário não é só uma grana a mais. Mário vai nos blogs, frequenta comunidades, se liga nas novidades. Sabe mais de tendências do que a maioria dos bacanas que aplaudem a cauda longa.

Informação universalizada, democraticamente distribuída não quer dizer apenas mais instrução e mais consciência. Não quer dizer apenas mais oportunidades econômicas. Também quer dizer mais desejo.

E o desejo é o reforço positivo indispensável para emergir da sobrevivência.

A classe C é a classe dos pobres coitados

Classe C é o que costumamos chamar de pobres. Por que será que temos tanto receio em chamar pobre de pobre?

Portanto, não vamos nos enganar: vamos falar em linguagem para pobre, gosto de pobre, argumentos para pobre, garotos propaganda que pobre gosta, música de pobre, entendimento de pobre, pesquisa sobre pobres, estratégias para fisgar os pobres.

Não é uma questão de semântica, é uma questão de preconceito classista.  Chamar pobre de classe C mascara a real intenção de classificar as pessoas pelo seu dinheiro.

A intenção não é discorrer sobre luta de classes nem sobre ética cristã. Só parece interessante raciocinar sobre o tipo de comunicação que decorre de um “parti pris” financeiro.

Se avaliamos as pessoas pela grana, a propaganda deve, por consequência, falar quanto custa e como se paga. Propaganda de pobre deve falar “Custa pouco e você pode pagar”. Senão, o pobre não vai comprar. Põe logo um cara que pobre gosta, gritando quanto custa aquele produto que o coitado quer tanto. Não enrola e repete as coisas várias vezes pro pobre se convencer.

Na propaganda é assim. Pobre só vale pelo seu dinheiro. E como ele tem pouco dinheiro, tem que fazer muita propaganda para muitos pobres comprarem.

Simples e não precisa inventar moda.

E fora da propaganda como é?

Se o cara não tem grana, não quer dizer que ele é burro e surdo. Se o cara tem recursos limitados, não quer dizer que ele é feio e fede. Se o cara é humilde, não quer dizer que ele tem gosto simplório e só aprecia porcaria. Se o cara é um financeiramente desavantajado, não quer dizer que ele gosta de comunicação vagabunda.

A propaganda será muito mais eficiente quando ela for capaz de tocar, de provocar sentimentos, emoções, quando ela falar com o coração e não, com a cabeça. Essa é uma afirmação lugar-comum, um clichê que dez em cada dez profissional de comunicação repete como um mantra de emancipação criativa.

Mas é difícil porque as pessoas tem valor pela sua grana, mesmo que ela seja pouca. E é difícil porque no Brasil tem muito mais pobre do que rico. É difícil porque quem faz propaganda para a classe C é a classe A.

A menos que a gente assuma o preconceito ou lute contra ele.

A menos que, sempre que aparecer no briefing “Classe C”, a gente troque por “Pobre” e desista de fazer propaganda boa.

A menos que, sempre que aparecer no briefing “Classe C”, a gente devolva com um palavrão bem feio.

A Internet é um convento cheio de putas

No início, ninguém dava muita bola para o que saia na Internet, para o que se falava nos seus inescrutáveis meandros. Era uma molecada que brincava de ser jornalista, publicitário, comediante, cineasta.

A confusão está apenas começando.

A Internet é um megafone

Toda confusão começa com uma boa intenção. A boa intenção de falar a verdade, de ser franco, de ser uma bandeira de oprimidos, incompreendidos. Mas toda causa tem um efeito. Falar o que se quer e bem se entende sempre dá confusão. E falar num megafone como a Internet, mais ainda. E o que era apenas um suspiro de frente para o espelho vira um manifesto público multiplicado ao infinito e sem controle. A vida é assim – e não só na Internet: quem te apoia avisa. Quem não te apoia se vinga sem avisar.

Pra abrir o bico, tem que ter peito

Portanto, não adianta muito bancar o jovem imaculado descobrindo o mundo cruel, o artista inspirado no seu mundo cercado de virtualidades. O mundo não é um aquário cheio de peixes Nemo. Todo mundo tem ideias e, pior, interesses próprios. A inveja é a nossa gasolina. A Internet não é diferente de nada. Ainda que ela possa parecer livre de leis – e em larga medida é – não é livre de gentes, de pessoas. E pessoas podem ser muito mais repressoras do que a mais repressora das leis.

Quinze reais de fama

A imensa possibilidade de liberdade de expressão que a Internet proporciona está na raiz utópica do sucesso dos blogs e que tais. E, por detrás dessa sede de oratória e autoria, tem a vontade de ser visto. E, por detrás da vontade de ser visto, tem a fama e uns trocos.

Mas a confusão começa quando pingam os primeiros dinheiros. Ganhar dinheiro não é tão fácil quanto parece. Não basta dizer coisas inteligentes ou fazer macacadas. Se tem dinheiro envolvido, tem regras e leis e – queiramos ou não – elas devem ser seguidas. Podem espernear, fazer campanhas, mas pintou dinheiro, pintou confusão. Esse povo tão “liberal”, tão “paz e amor” vai se chatear.

Dinheiro e espontaneidade não ornam

E a maior confusão se arma então, quando tudo fica de pernas para o ar.

Os produtores de conteúdo, os da grande mídia, acham que essa “garotada da Internet” pode dar uma renovada. Aí a molecada vai para a grande mídia com aquela farta experiência dos seus blogs e views no YouTube. Se os brothers curtem, a Dona Maria vai curtir.

As agências de propaganda, sedentas de novidades, transferem a presumida liberdade de expressão da Web para a TV. Ao invés de comprar mídia, dá-se uma ajuda de custo àqueles que irão disseminar a mensagem. Uma espécie de suborno à legitimidade.

E as marcas, elas também, começam a achar que o que liga não é fazer propaganda, mas uma espécie de brand content ou qualquer outro anglicismo bacaninha. Tipo Merchandising 2.0

Os heróis dos blogs, porém, começam a ganhar dinheiro das marcas através de suas agências de propaganda. E o dinheiro estraga tudo.

Estraga o conteúdo, que por sua vez estraga a criação publicitária, que estraga a marca. E qualquer estrago é caro, mesmo que tenha custado três tostões.

Como salvar a mídia (e a propaganda)

A mídia está morta. Viva a mídia!

Estamos no futuro porque é muito mais fácil pensar assim.

Há alguns dias, uma crucial reunião decidiu o futuro da mídia, dos autores, dos criadores e de todos os pretensos provedores de conteúdo. Da assinatura do termo resultante, acordou-se que doravante tudo será cobrado. Chega dessa palhaçada de trabalhar de graça. Nem uma linha mais será derramada sem reciprocidade financeira. Nenhum jornal será lido mais de graça na internet, nenhum vídeo baixado ou assistido sem pagar, nenhuma música, nenhuma foto, nenhum game, nenhum outro conteúdo que tenha a mais ingênua pretensão de assim chamar-se vai ser franqueado, barganhado na xepa.

Muitos choraram na reunião que celebrou o acordo. Lágrimas de alívio carregadas de deliciosa vingança. É o troco, depois de anos de lamúrias e penúria. “Vencemos os anarquistas bandidos!”

Mas alguns dias depois, as cabeças decisivas reuniram-se novamente para colocar em prática a mais difícil das equações: como cobrar? O que cobrar? O que será justo e rentável?

A reunião foi uma tragédia. Dizem que alguns chegaram às vias de fato, e algumas mortes foram contabilizadas. É o que dizem, mas ninguém soube de nada porque nenhum leitor quis comprar esse conteúdo.

Flashback. Hoje, a questão que movimenta dez entre dez pessoas de mídia é como resolver a mais apavorante das equações: o conteúdo deve ou não ser gratuito?

Walter Isaacson discursou recentemente sobre o assunto num interessantíssimo artigo. Sua visão é lapidar, precisa, contundente. Em resumo, Isaacson propõe uma saída para a crise com uma simples e desburocratizada cobrança pontual (micro) dos conteúdos desejados. Essa possível solução, para ele, resolveria as perdas de receita dos jornais na ponta “venda de jornal”.

Ainda que essa solução não seja nova e já tenha sido experimentada (de forma fracassada), vale muito a provocação.

No entanto, não basta debruçar-se sobre essa “perna” capenga da receita, assumindo que as demais estão fortes. É tapar o sol com a peneira.

Talvez seja mais pertinente e urgente debruçar-se sobre a outra: a publicidade. Não apenas porque ela é mais importante, mas principalmente porque ela também cambaleia e há mais tempo.

Por outro lado, é tocante a ingenuidade porque as pernas são promiscuamente comunicantes. A questão não é, portanto, resolver partes separadas de receita, mas encarar a questão de face, sem preconceito, sem medo e de forma radical: quem vai pagar o conteúdo produzido? Pois parece que sempre será o cliente do conteúdo, direta ou indiretamente. E é o indireto a mola do sistema: a propaganda.

A propaganda “compra” audiência, e os provedores de conteúdo “vendem” audiência. É essa audiência que paga a conta. Se resolvermos essa perna, o conteúdo poderá ser gratuito sempre.

Ainda que pudéssemos precificar um conteúdo, ainda que pudéssemos nos entender sobre esse preço, quem nos compra tenderá sempre a não querer pagar. Eles também são tão variados, que a conta será ínfima, ridícula, dispensável. Sem falar da enorme dificuldade de criar uma forma de pagamento segura e simples.

Se nossa audiência não quer mais pagar pelo conteúdo – seja porque ele foi dado um dia de graça, seja porque o conteúdo é, e sempre será, mais importante que o autor, a cópia gratuita, portanto, tem exatamente o mesmo valor do original – de que serve remar contra a maré?

Existe muita coisa para ser feita e cobrar “microtaxas” é uma   solução microscópica.

Primeiro fato aterrorizante: as receitas publicitárias talvez estejam também minguando. Ou pior, talvez os anunciantes não estejam muito felizes com os resultados dos seus investimentos.

Segunda tragédia: na gênese desse problema, infinitamente mais relevante para as economias dos provedores de conteúdo e para os próprios pagadores da conta, os anunciantes, está a ineficiência dos formatos de publicidade e da lógica de precificação desses formatos.

Terceiro pavor: os meios digitais, gratuitos, livres, sem controle possível e infinitamente mais poderosos que qualquer outro meio físico vão quebrá-los. E nesse ambiente, só prevalece uma lei: a gratuidade.

Se formos corajosos, uma vez na vida que seja, devemos assumir essas verdades e, se quisermos encontrar uma saída, talvez devêssemos encará-las de forma exagerada, sem meias soluções, sem acochambros.

Na perna da publicidade, a idéia do “micro” talvez seja uma saída muito mais original.

Voltemos ao futuro agora. Lembram da reunião que terminou em sangue e morte?

Pois num outro lugar, um dono de jornal resolveu declinar do convite de participar dessa tragédia anunciada. Ele estava muito ocupado com seus jornalistas e programadores para perder tempo com panacéias jurássicas.

Ele estava lançando o primeiro jornal do mundo a vender publicidade baseada na lógica do micropagamento publicitário. Simplesmente indexou todas as palavras e expressões de seu conteúdo. Todas eram ofertadas a quem pagasse mais por elas. E ele foi mais longe: o leitor que fizesse a busca na sua ferramenta para um conteúdo específico seria imediatamente direcionado para ele, mas uma propaganda iria interromper por alguns instantes esse fluxo. Propaganda essa, paga pelo anunciante que tivesse comprado precisamente aquela palavra ou expressão.

Simples. Muito simples e fácil.

Algumas pequenas regras para ajudar na solução:

– Conteúdo deve ser de graça para o receptor.

– Quem paga a conta são os compradores de audiência, os anunciantes.

– Provedores de conteúdo devem priorizar a busca em detrimento da navegação aleatória, baseada em índices, cadernos, editorias, etc.

– O conteúdo deve ser todo indexado de forma dinâmica e automática.

– A venda de impacto publicitário deve ser feita pela compra desses “indexadores”.

– Leva quem paga mais pela compra dos “indexadores”.

– A propaganda deve interromper o clique da busca e intrometer-se entre ela e o resultado.

– A interrupção deve ser suficiente para impactar sem prejudicar.

– A compra de mídia passa a ser compra de conteúdo, e não mais de espaço.

– E para terminar, valem todas as regras anteriores: liberdade, qualidade, criatividade, pertinência, ética e principalmente, sempre, coragem de se reinventar todos os dias.

Vamos enterrar nossos mortos, rezar por eles, mas sobreviver.

Ai, se!

Ai se,

Quando Germaine pôs o ovo, ela não sentiu aquele alívio matinal. Ela virou-se, dobrou a cabeça de um lado, de outro e caiu de joelhos. O ovo era vermelho.

Matilde tirou a cabeça para fora da toca e farejou o ar, mas o céu estava escuro apesar da hora. Ela pôs as patas no focinho e se assustou.

Se Adélia soubesse o que lhe esperava quando mergulhou, ela não teria saído: a água tinha deixado lugar a uma lama escura. Voltou apressadamente para a borda do lago, muda.

Mesmo insistindo, Marcelinho não conseguia ir para frente. O chão andava e para trás. As árvores, as nuvens, as pedras no caminho, tudo para trás. E sua memória retrocedia também.

E foi parecido também com Valéria, cujo cabelo amanheceu crespo, com Sílvio, que teve suas economias dilapidadas de repente, Maricota, que cresceu vinte centímetros, Abelardo, que saiu voando quando abriu a janela. Noêmia não acordou e Felisberto perdeu o sono; cresceu um pelo no nariz do pequeno Carlos e Clotilde cuspiu chocolate, Gláucia e Luzinete e Deolinda e também Fábio, Graciliano e Olívio gargalharam no enterro das avós, enquanto Fátima, Cristiano e Lucila choraram sem motivo algum.

O souflé cresceu demais e o pudim espatifou, o vento entornou e o rio encolheu, a chuva esquentou e as pedras todas rolaram montanha acima. As formigas brincaram de estátua e os colibris cochilaram, os jacarés gargalhavam no pântano que secara, e todos os cachorros latiam em inglês.

Meu relógio cantou pagode, minha poltrona preferida me engoliu, meus sapatos ficaram pequenos, minha gravata bateu asas e até a geladeira se encheu de sorvete de morango.

O mundo e meu coração soluçam juntos nesse todo dia que, de tão igual, dá saudade de nascer.

Alegria

Todo dia é dia de alegrias. Pequenas, tímidas, particulares. Tem a alegria de acordar. Abrir os olhos, levantar, esticar-se e dar aquele grunhido bem longo. E coçar a planta do pé, esfregar os olhos e bagunçar os cabelos. O cheiro da toalha seca, a água escorrendo, o xixi delicioso, a boca lavada.

Quando Jim Musc despertou, não abriu logo os olhos. Farejou, tateou, arrepiou. Nada estava como antes. Mas o que era o antes? E o que era diferente? Finalmente ele abriu os olhos. Nem forma, nem cor, nem movimento. Só nada em cima, nada embaixo, nada dos lados.

Ele levantou-se quando percebeu que já estava de pé. Então, deitou-se. Mas ele estava deitado. Também. Caminhou, e não saiu do lugar porque nada não tem referência.

Lembrou-se dos outros, mas duvidou se eram, tinham sido ou haverão de ser. E tudo virou uma grande fumaça transparente. O redemoinho de memórias evaporou-se.

Pôs se a pensar, mas o devir desfez-se diante da lógica e o que era não era mais.

E aos poucos, Jim Musc esqueceu-se de Jim Musc. Perdeu-se. Sumiu.

Jim tinha morrido durante o sono. Sem perceber. Sem caretas nem choro. Sem despedidas nem remorsos.

Nem alegrias particulares nunca mais.

Nada como não se ser-se

De manhã, quando acordava, corria para o espelho do banheiro.

E conversava longamente com seu avô:

– Vô, lembra daquele dia que a gente fazia barragem no riacho atrás de casa? Lembra quando alagou o jardim? Lembra da bronca?

Com a vó:

– Vovó, me leva para colher ervilha no jardim? Quantos ovos você acha que tem hoje? Se eu acertar, você faz bolo cru só pra mim?

Com o tio ele só pensava, não falava:

– Que diabo tem de tão importante em calçar uma meia? Primeiro tem que dobrar de jeito a enfiar a ponta do pé, esticar tudo certinho e ir desdobrando, até ficar que nem pele.

Para o pai, ele queria dizer coisas, e sempre mudava de assunto:

– Vamos de carro? Posso ir na frente? Posso hoje?

E lá dentro, remoia:

– Conta de novo aquela história dos índios? E aquela outra quando você brigava nas festas? De novo, de novo.
Com a mãe, ele sempre queria dizer a mesma coisa, mas ficava com vergonha:

– Te amo, te amo, te amo, te amo, te amo. E que mais? Ué, te amo.

Não faltava assunto. Nunca.

O reflexo do espelho, que não era ele, mas os que eram um tantinho dele. Saudade. E eles que eram o que os outros tinham sido. Saudade. E nós que somos o que outros hão de ser, no espelho, um dia. Que saudade danada!

Elefantes e outros humanos

Para Suda

Nossa história aconteceu num reino distante, num triângulo dourado, confluência de raças e destinos, terra de tráfegos intensos e futuros incertos.

O monarca, que pertencia a uma dinastia obscura e usurpadora, cultivava o excêntrico protocolo de dividir o trono com seus animais de estimação: galinhas ornamentais, najas domesticadas e elefantes sopranos.

Galináceos pela manhã, cobras à tarde e paquidermes à noite. Os dias de Fonte Única de Prazer eram divertidos, barulhentos, emocionantes e grandiosos. Nos entreatos a logística era sofrida, uma vez que najas comem galinhas e só existe uma coisa que tira uma naja do sério: competições entre membros tubulares. O risco era, portanto, da naja se regalar com a penosa e do elefante gabar-se com seu avantajado priapismo trombal.

Nenhum sábio jamais tinha sido capaz de resolver a questão de forma harmônica: A Ira dos Quatro Pontos Cardeais não suportava a idéia de ficar um instante sequer sem o suporte dos animais. Portanto, eram necessários  estoques inesgotáveis, imprevisíveis e caros dos animais.

Um dia, chegou ao reino um ancião que resolveu a charada,
propondo substituir os animais do protocolo. Os ministros entraram em polvorosa com a idéia. Cobriram o velho de ouro e mulheres.

Restava, no entanto, encontrar os tais animais. Tentaram trocar a naja por um gato, mas o bicho era egoísta e entediava Sono da Humanidade. Tentaram urso para o lugar da galinha, mas ele era preguiçoso e dormia demais. Um tigre pelo elefante, mas quem suportava o bafo? A arca inteira desfilou: animais exóticos, polares, temperados e tropicais, aquáticos, aéreos e terrestres, da carochinha, do além e dos infernos.

Outro dia, apareceu naqueles debates outro velho sábio. Embora ele concordasse com a tese inicial, sua proposta foi ainda mais revolucionária: o problema era a frágil galinha e a ciumenta naja. Portanto, a solução era colocar três galinhas ou três najas. Presentearam o gênio com montanhas de Viagras e dentaduras

Novamente, grandes estudos foram entabulados. Qual seria a melhor composição? Galinhas ou najas? O Senhor de Todos os Infinitos Sexos não podia ser envolvido, ocupado que estava com suas ciumentas concubinas, ou com cínicos e fofoqueiros eunucos.

Simularam a operação com um dos muitos sósias de Inigualável, Inimitável e Inclonável Poder do Oriente. Mas o resultado foi desastroso. As fogosas do sexo frágil entraram em cacarejante conflito com os interesses do harém. Já as serpentes, envenenaram os eunucos que se amotinaram.

Finalmente, aportou no reino um secular naturalista, filósofo, e astrônomo. Foi imediatamente assediado com o assunto e inquirido de resolver tão grave problema de Estado.

O homem deu graças às soluções apresentadas
anteriormente, que, por força da lógica, conduziam a uma única possibilidade: três elefantes deveriam suceder-se no trono de Luz da Terra, do Céu, dos Mares e de todos os Zoológicos. Ele saiu do país com incontáveis plásticas, implantes e vitaminas geriátricas.

Os três paquidermes guiaram por décadas o ócio de Bússola do Universo, cantando, pintando, dançando, fazendo tricô, macramê e petits-points com ele.

E quando A Memória do Mundo descansou, os animais choraram pesadas lágrimas de dor e saudade.

Elefantes são seres humanos mais humanos do que todos os humanos.

Coração de legionário

ParaJunior

Criado por avós aristocratas, falava línguas, estudara os clássicos e jogava críquete quando os compromissos filantrópicos o deixavam em paz.

Um belo dia, numa festa regada a muita gargalhada e olhares de raios X ele se recolhera ao bar para refrescar-se das dramaturgias sociais. Estava lá um sujeito que, não estivesse completamente afundado no copo, estaria totalmente deslocado da opereta rega-bofe. Sua elegância rude destacava-se da figuração cheia de atitude que pululava em todo canto. O homem era um legionário, daqueles de palavra e pouca fala, reflexo e pouco cálculo, honra e pouca fé.

As pálpebras murchas do lordezinho desabrocharam nesse dia e ele mudou-se para um país africano, numa zona sombria, onde as leis de sangue valem mais que as de papel. Ele virou um matador sem raça, sem credo, sem escrúpulo nem viadagem. Ninguém nunca mais ouviu falar dele, nem ele de mais ninguém.

Legionário não planeja, age: passados muitos anos, ele naufraga de volta na sua terra.

Assim que atracou no primeiro bordel, já saiu degolando um advogado, um cirurgião e um banqueiro. Logo que encalhou no primeiro bar, tratou de supliciar um ministro, um cardeal e um jogador de futebol. Quando amargou a primeira cadeia, estuprou o capelão, o chefe do tráfico e o emissário dos direitos humanos.

E de colunas de “faits divers” para policial, de policial para comportamento, de comportamento para social, de social para política, sua fama ia galgando escalões.

Tornara-se assunto obrigatório em qualquer roda: de pária para assassino, de assassino para psicopata, de psicopata para excêntrico, de excêntrico para visionário.

Há quem não duvide que ele seria agraciado com o Nobel, não tivesse fatalmente desmaiado com a morte da mãe do Bambi.

Global warning (com N mesmo)

“A Amazônia tísica”, “O buraco chupador da camada do ozônio”, “Degolaram uma foca”, “Socorro, as baleias sumiram”, “O lixo de Chernobyl vai feder”.

Nos últimos anos, somos bombardeados diariamente por esse tipo de notícia. Todo dia é epitáfio dos dinossauros, Armagedon e ataque de marcianos.  Chama o Noé, que a coisa está feia.

E nós, aqui, vermes insignificantes, metendo a mão no lixo para separar o orgânico, xingando o plástico, parando de usar sabonete que faz espuma e pedalando no meio dos carros para salvar o planeta.

A Amazônia existe mesmo? Que diabo é ozônio? É verdade que foca fede? Como é que uma baleia some? E muitas baleias? Alguém avisou os russos do lixo atômico?

Sempre que encaramos essas bombásticas notícias, alternamos uma sensação de impotência com indiferença. Quanto maior e mais distante é a notícia, maior a impotência e seu corolário natural, “tô nem aí!”.

Que tal se a gente se desplugasse dessas hecatombes sensacionalistas? Será que, se pensássemos pequeno, no nosso quintal, não nos envolveríamos mais com essas causas que certamente são verdadeiras e dramáticas?

Se parássemos de fumar porque as roupas ficam com cheiro? Se usássemos detergente ambientalmente correto porque não tem aquele cheiro artificial que deteriora o gosto dos pratos? Se andássemos mais a pé por causa da barriguinha? Se escolhêssemos comida orgânica porque ela é mais saborosa? Se substituíssemos os copinhos de plásticos pelos de cerâmica porque é mais elegante? Se comprássemos menos porcaria porque não tem onde enfiar tanta bugiganga em casa? Se não jogássemos lixo na rua porque depois entope os bueiros?

E se a gente fosse só ambientalmente responsável porque a gente gosta de árvores e passarinho? E se a gente fosse socialmente responsável porque a gente gosta de gente e criança?

Se parássemos de olhar esses números que ninguém sabe calcular?  Se deixássemos de pensar nas consequências das consequências das consequências das consequências das consequências das consequências que vão, no final de infindável lista de conseqüências, acabar com a vida inconsequente dos terráqueos?

Projetos de sustentabilidade pessoais, ao invés de globais. Nanoprojetos individuais, ao invés da causa globais.

Podem até nos acusar de hipócritas egoístas, de alienados provincianos, mas o perigo global é que, justamente pelo fato de ser global – portanto, de todos –, torna-se distante e difícil.

Transfusão de samba

Para André

Era um vampiro como outro qualquer.

Como todos, tinha lá suas restrições, seus reflexos e charmes irresistíveis: não jogava altinha na praia, não via corpos soltos havia quase dois séculos e disfarçava sua libido permanente com o mais sofisticado dos
guarda-roupas. Suas noites eram sempre muito animadas, de balada em balada, de cama pra cama, de bebedeira em bebedeira. Era um depravado conquistador e um evangelizador tenaz. Seu charme ancestral, sua polidez esmerada e erudição clássica faziam o mais escolado dos humanos babar-se em súplicas de “Mais!”

Certa vez, lá pelas tantas da madrugada, lá estava nosso vampiro todo chique, numa roda de samba. O maestro de salas aveludadas não tinha preconceito.

Aquela noite, era véspera de carnaval, ensaio para gringo, patrocinado por uma grande empresa inglesa de amortecedores, com o objetivo de experimentar o novo molejo de seus produtos na pele de seus clientes, fornecedores e autoridades. A quadra estava cheia de samba para inglês ver.

Depois de um tempo, o vampiro foi perdendo o entusiasmo: aquele rebolado de bundas brancas dava-lhe enjoo. Com exceção de três mulatas sambadas, a paisagem era de triste descompasso, um sem-jeito desolador, uma bananada sem borogodó.

Enfadado, ele desafogou a gravata, arregaçou o fraque, esponjou a testa numa renda alva como a tez da ruiva desengonçada que piscou em sua direção, acendeu um havana e saiu do barracão.

Meditava: “Qual seria a próxima escala? Uma rave em Bangu? Um inferninho de Copacabana? Um clube burguês? Um funk além-túnel? Um madrigal na mansão de uma duquesa falida?

Foi quando emanou de um beco escuro um batuque singelo, uma jinga gostosa, um baticudum suado.

O vampiro ajeitou o fato, abriu três botões da camisa, dobrou a perna e os braços para evidenciar atributos: lá vinha coisa boa, carne fresca e um banquete promissor.

Lá vinha Maria Escopeta, espetáculo! Tremelicou para fora do beco cantando, exalando ritmo e ouriço por todos os poros.

Nosso ser ficou catatônico, ofegante. Depois do espanto, perdeu o prumo, a pose e a compostura: atirou-se na negra. Sugou-lhe até a última gota de samba das veias.

Foi assim que nosso vampiro aposentou os caninos, deixou de frescura e até hoje toca zabumba no cemitério, até o sol raiar.

Papagaiada

Para Cumpadre Mário

Ele voara muito, por cima de florestas, cidades, campos e colinas amassadas.

Vez por outra, pousava para descansar e refletir. Gritava em voz alta: “Preguiçoso, preguiçoso Mané” ou “Alô, Jovina, telefone!”, ou ainda “Melchior, você é o maior!”, “alonzanfandelapatri”.

Lembranças de outras terras: “Acorda pra cuspir, Ignácio”, outros laços: “Te amo, flor”, outras lições: “Un, deux, trois, chassé croisé, Manon”, e outras gaiolas: “Fome, Benedita” – ele estava velho e cansara da vida que se repete, repete e emborca de tanta preguiça. Por isso, fugira, numa manhã igual a todas as outras: “Lá na gaiola, fez um buraquinho, voou, voou, voou, voou. A menina que gostava tanto do bichinho, chorou, chorou, chorou, chorou”. Ele cansara daqueles mesmos sorrisos: “Dá o pé, dá o pé”, daqueles mesmos galos: “Cocoricó, acorda preguiçoso”, daqueles alpendres ventosos: “Frio, tô com frio”, da vida de papagaio repeteco: “Papagaio repeteco, uma ova!”

Sobrevoando as matas, as cidades e as gentes de toda espécie, a ave falante repetia “Nunca, nunca, nunca mais, nunca, nunca mais”.

E foi assim, voando longe, que, numa tarde, o louro aterrissou numa palmeira barulhenta. Ele ajeitou o topete, esfregou o cocoruto num galho e, tremelicando o pescoço, observou: no meio das folhagens, uma revoada de sabiá conversava. Uma algazarra, uma fofocada, uma babel. Ele bem que tentou entender e se entreter, mas os primos não falavam coisa com coisa, era um cré sem cré ensurdecedor.

Enfim, era sua hora: sonhara com aquela liberdade de criar. Uma plateia selvagem, primitiva, sem traquejo nem requebro. Uma turba que não sabia que papagaios são papagaios, ou seja, só sabem papaguear.

Impostando a voz, ele recitou:

– Abaixe a tábua!  Lave as mãos! Tomou banho, Zé Caribé?!

O frufru dos sabiás não ensaiava reação.

– Fogo, fogo na canjica! Apeia, pirulito! Cabulou de novo, Marquinho?

A cacofonia redobrava de intensidade. O louro ensaiou em prosa e verso “baratinha quando nasce”, “ouvido do ipiranga”, “ave Maria cheia de garras” e ninguém deu bola para sua eloquência.

E quando ele já desesperava de ter voz naquela barbárie sem pé nem bico, um sabiá poliglota aproximou-se e sentenciou:

– “Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá.”

O Louro acocorou-se num canto do galho e fundo, fundo, lá no fundo de seu coração, de saudade soluçou, soluçou e soluçou um chororô sem fim.

E de tanto soluçar, a colônia de sabiás apelidou o exilado, liberto, repeteco, tagarela e soluçante: papagaio!

O jogging da avestruz

A avestruz é um pássaro com longas patas que vão até o chão, delgado pescoço rosa que chega à cabeça e um traseiro grande que rebola lindas penas brancas. São exímias fundistas quando se abanam com seus braços rendados.

A avestruz é um bombom formoso que adoça os cerrados.

Certa vez, Ana, um desses privilegiados seres, saiu para seu footing matinal. Estava despenteada e desarrumada e cantarolava “Rocket man, rocket man”, arremessando Mimi, sua pelúcia preferida, para o alto. A cabeça nas nuvens e as mãos nos bolsos davam-lhe ares de bailarina emancipada.

Numa esquina, ela cruzou com um amigo que franzia de nervoso, em outra, um anônimo espirrou negros odores, adiante, uma senhora encastelada num penteado paralisante equilibrava seus predicados injetados.

A sensível era dada a profundas introspecções e interrompeu seu passo, cessou as rimas e pôs-se a meditar.

“De que nos serve a vida se pouco nos preocupa a morte na alma de um, a doença do outro, a vaidade de todos? De que nos serve viver sem definhar a cada momento de sobrevida? Sobreviver é uma cantilena de apesares.”

Mas foi curta sua filosofia porque já despontava na sua frente um saltitante transeunte.

– Oi, linda!
– Oi, fofo.
– Tá na paz?
– Pensando na vida.
– Pra quê?
– Bobagens
– Que boa idéia!

Foram seguindo pelas quebradas, tagarelando animadamente sobre as coisas que na vida dão gostosura: quanto por quanto, quem com quem, gasto como gasto. Temas sem gastura.

Dulcílio também não voava, mas como nadava! Vogava nos lagos atarefado: tinha prole para alimentar, roupa pra passar, meias para cerzir, feijão pra refogar. Ele também sabia da guerra que grunhia, do vento que destelhava, dos poemas de todo dia e de sempre. Dulcílio tinha muita graça e muita história para contar. E quando retornava do chafurdo, juntava gente para ouvi-lo.

Foi assim que Dulcílio, o pato, ultrapassou os dois flaneurs e captou suas perorações.

– Quá-quá-quá, quem-quem-quem, gá-gá-gá.

O pato não era versado em assuntos de sociedade, mas tinha lá suas tiradas e soltou alto e bom som: “Depois, o pato sou eu!”. E seguiu caminho.

O arqueólogo

Para Aaron

Morava numa montanha bem alta e, quando o sol escorregava para o chão, o velho despertava. Apressadinho, chacoalhava os ossos e saía.

Logo na soleira da casa, desvelava um olhar preciso: o poço resistira.

Era assim: ele dormia de tanto sonhar. Mas, na primeira hora da noite, corria para o poço, tirava a tampa, aninhava-se no balde e soltava a polia.

Um, dois, três, vinte e quatro, vinte e cinco, cento e quarenta e nove, mil oitocentos e vinte e três.

Aproximadamente três metros de sonhos fujões. O poço secara muito dessa vez. Ele nem lembrava de nada não.

No coração da montanha, ele tirava a picareta, o delicado pincel e seu caderno pautado. Fosseis quebrados  desenhavam as viagens que se foram.

Agachado no escuro, ele psicografava vestígios.

Quando lá no alto uma nuvem de luz tremelicava, era hora de voltar, um tanto compensado, um tanto envelhecido.

Um pouco mais curvado, mais dolorido, mais senil e esburacado, ele se arrastava para a cama para, mais uma vez, dormir e sonhar a vida que se evapora do poço, no coração da montanha.

Como nasce um rio

Para Cacaia

Um lago pacato se estendia entre os braços de Montanha pontuda e Colina de bumbum pro ar. Era um tédio milenar. Uma preguiça geológica imemorial.

Naquele pedaço esquecido do mundo, chovia de vez em quando, mas só dava uma coçadinha na superfície do lago. Fazia sol também, mas nem fum no seu gogó. Ele só mamava tranquilo nos rios que brotavam das tetas de Montanha e Colina e arrotava ondinhas nas margens arenosas.

Para quem olhasse de fora, era um êxtase lírico e arroubos poéticos se perdiam nos desvarios dos tempos. Mas para quem armava a cena, era uma preguiça, uma falta de viço, um coma estéril.

Até que um vento safado, um cupido pornográfico, resolveu passar por ali. Não havia quem acudisse a tamanho fudevu, e a chuva, lasciva messalina, acudiu no rendez-vous.

Choveu tanto que o lago despertou e inundou pés e encostas. Foi subindo, subindo, subindo. E quanto mais subia, maior a febre. Colina enfeitou-se de brilho, Montanha suava em bicas.

Ao final de dois dias, o vento distraiu-se e foi armar-se em outras praias.

Mas Montanha e Colina deliravam em cama ardente tamanha tinha sido a corte que o malandro aprontara. Suas súplicas eróticas chegaram a seus ouvidos.

Ô cupido de sádico saber!

Vez por outra, lá ia ele cutucar Montanha e Colina.

Cutucava e se mandava, cutucava e escapulia, gargalhando, gargarejando, garganteando “sem contenção não tem tesão!”

E o lago transbordou um belo dia, num fluxo de interminável gozo.

As redes sociais e a democracia

Redes Sociais: duas entre cada dez palavras pronunciadas por qualquer bem pensante hoje em dia, em papos de “Abalar Bangu”. Mais um daqueles inúmeros fenômenos que surgem para acrescentar alguns charts às palestras dos gurus Best Sellers. Mais um tema para excitar os especuladores, os caçadores de talentos e os vendilhões de empresas.

Tudo nas novas plataformas de informação são reedições corrigidas e ampliadas. Os luditas e blasés adoram dizer isso. Portanto, para eles, redes sociais são espécies de “Rotary(s) Clubes” digitais.

Esse tipo de desmistificação é sempre um divertido argumento para brochar os excessivamente excitados mas é quase sempre um álibi intelectual para uma inépcia de entendimento das mudanças de comportamento que estão por detrás dessas “velhas novidades”.

Mas o que me interessa mais nos clubinhos virtuais é uma espécie de panacéia democrática que por ali grassa. Sem querer intelectualizar demais o papo, já é lugar comum dizer que a molecada tem um interesse muito passageiro, para não dizer inexistente, por política. A não ser em momentos de euforia ideológica, como a atualmente em curso no ringue das eleições norte-americanas, ela tem um desprezo absoluto por qualquer lógica majoritária.

É que de fato, essa coisa de submeter-se a qualquer decisão da “maioria”, é frustrante em tempos de liberdade de expressão absoluta e universal, de cauda longa, de morte do direito autoral e etc.

Em nossa democracia, é muito baixa a possibilidade de decidir e intervir. A única delas é o voto, pouco para um exército acostumado a clicar, a escolher tudo a toda hora.

É essa falência do “majoritário” que motiva e apaixona as redes sociais em todas as suas manifestações.

No limite, é como se estivéssemos encubando uma nova ordem mundial em que os humanos se agrupassem em torno de idéias compartilhadas, interesses ou polemicas comuns, gostos e simpatias antes de geografias, línguas e qualquer outro tipo de aglutinação física.

No limite, as redes sociais configuram os novos “Estados” que trocam o majoritário pela unanimidade. E não há “exclusividade” nem “limite” de “nacionalidades”. Pode-se pertencer ao quantos “países” quisermos, com múltiplas “identidades” até e “desertá-los” quando eles não mais interessarem ou outros mais atraentes surgirem.

Antes de tratar-se de uma utopia, a experiência da nova ordem e sua possibilidade virtual, vai corroendo todos os organismos e reinventando as relações sociais irremediavelmente.

A nossa crise, a internet e a propaganda

Está virando mania falar da crise. E manias são fenômenos retroalimentados: quanto mais a gente coça, mais coça. Quanto mais a gente come crise, mais ela nos come. Mas é irresistível e útil. Raramente uma crise foi tão fácil de explicar. As justificativas são irritantemente as mesmas e simples: excesso de liberalismo, crença na cura espontânea dos excessos, falta de transparência. E todo mundo tem culpa no cartório. Pois falemos um pouco da nossa crise: na propaganda.

A Internet é a plataforma do liberalismo absoluto, beirando a libertinagem. É algo geneticamente constituído para contornar e oferecer soluções rápidas e simples para subverter as estruturas de poder. E, ainda que organismos arcaicos (certos governos, instituições e empresas) tentem desesperadamente construir ferramentas de controle, elas são sempre humilhadas pela criatividade ou sucumbem às virtudes incontornáveis que a Internet tem também.

Mas a Internet não é nem boba, nem nada. Ela crê piamente na cura espontânea. Isso significa que a liberdade absoluta de expressão e ação, no limite, separa o joio do trigo, descarta o que não presta pelo sufrágio popular e conserva o que a unanimidade elege. Sua doutrina, “Se o povo quer, Deus quer”, é inequívoca. O laxismo corrige o achismo.

Poderíamos pensar, no entanto, que, por detrás das intricadas teias da Web, potencializadas por nossa infinita sede de aparecer e apoderar-se, somos todos os agentes trapaceiros e malandros que habitam esse templo obscuro. Mas a Internet vai na contramão desse vício sedutor. Ao contrário, ela é a mais transparente das nossas criações. O anonimato sucumbe e denúncias ganham proporções de avalanche num piscar de olhos.

A propaganda é, e sempre foi, uma espécie de ponte que conecta os dois lados do nosso sistema. De um lado, empresas que fazem coisas; de outro, pessoas que precisam dessas mesmas coisas. Para diferenciar umas coisas e outras e todas elas, criamos marcas que são uma espécie de representação das próprias. Essas marcas são os atores da propaganda.

Se as marcas simbolizam os produtos, elas também tentam sensibilizar as pessoas, valendo-se da exploração de suas aspirações, sonhos, esperanças, complexos, frustrações. É aí que a marca seduz e estimula a mágica química do sistema: faz-nos escolher e comprar. Essa é a alma do negócio que ela é.

Mas na ponte que conecta consumidores e empresas, existe um pedágio, pago pelos primeiros aos segundos, e esse pedágio se chama “marca”.

Essa taxação será tão mais importante e significativa quanto melhor for precisamente a propaganda que a veicular. Para ser melhor, a propaganda se utiliza de muitos recursos e, embora o debate aqui seja extenso, convenciona-se, quase unanimemente, que a boa propaganda é aquela capaz de suscitar-lhe emoções genuínas. Propaganda boa é aquela que diverte ao invés de aborrecer, que questiona ao invés de amortecer. Propaganda boa é aquela que diz a que veio, com clareza.

Quando a propaganda é boa, portanto, é como se o consumidor estivesse pagando um extra pela capacidade que ela teve de emocioná-lo.

A propaganda torna-se assim um “plus à gagner” (mais a ganhar) do produto e do consumidor.

Se a boa propaganda é um “plus à gagner” de mão dupla, no entanto, quando a propaganda é ruim, é como se o consumidor estivesse sendo potencial e inconscientemente extorquido.

O que seria uma propaganda ruim, portanto, nessa análise? Propaganda ruim é aquela que espertamente mascara o “plus”.

As formas mais clássicas são o entorpecimento e a insistência. Outras são requentar fórmulas. Ou ainda apelar para reputações alheias para referendar escolhas. Propaganda ruim pode ser simplesmente também aquela que apela para recursos pretensamente técnicos e demonstrativos para enaltecer vantagens racionais (precisamente função de outros recursos de comunicação como a própria internet).

A propaganda ruim cobra o pedágio mas não garante a viagem.

A Internet, como vimos, é a mais poderosa das armas para escancarar opiniões, potencializá-las. Está também se tornando a ferramenta por excelência de escolha por produtos. A internet é a plataforma decisória da pré-compra. E é lá também que o extorquido inconsciente abre os olhos ou pode abri-los.

É como se o pedágio fosse se tornando mais claro, mais transparente.

Esta crise é nossa. A crise da propaganda ruim, safada, opaca.

O ClasseCeísmo

Quando Henry Ford começou a produzir seus carros em linha de montagem, ele dizia que seu objetivo era de que cada um de seus operários fosse capaz de comprá-los.

Mas o industrial também teria dito que se poderia escolher qualquer cor de carro, desde que fosse a preta.

Essas pequenas anedotas poderiam ilustrar o atual frisson que a celebrada base da pirâmide vem provocando ao redor do mundo, em particular em um país com mais de 66% das famílias vivendo com até três salários mínimos, o nosso por exemplo.

A não ser à luz fria de pesquisas, é inegável a nossa ignorância a respeito dos nossos queridos abandonados desabonados.

E, por conta da distância que separa nosso dourado óvni dos pobres mortais, a gente usa toda a nossa capacidade de abstração e experimentação para traçar os contornos comportamentais da última fronteira comercial que nos resta penetrar: a classe C.

É assim que surgem os especialistas: dissecadores de impulsos de todos aqueles que ainda não têm a chance de consumir aquilo que deveriam para ascenderem ao status de cidadãos.

As campanhas políticas são uma referência quase inevitável. Afinal de contas, não dá para se eleger só com ricos eleitores, nem para vereador de municípios pequenos. Basta analisar os recursos técnicos de que se valem os candidatos, ao produzirem suas plataformas publicitárias para aprender os truques: palavras simples, coloquiais e gíria, repetição à exaustão, abuso de superlativos, modelos do povo, sotaques exagerados e por aí vai. Quanto à sintaxe das frases e dos textos (textos? Só se for para repetir a gritaria), ela tem que ser franciscana: sujeito-verbo-predicado, poucos adjetivos, voz passiva nem pensar, tempos complexos ainda menos.

Dizem os especialistas que a classe C tem deficiência cognitiva. E o resultado é essa propaganda-decoreba para retardados. A Classe C só gosta daquilo que pode ter. E o resultado é essa propaganda-baciada por 9,90.

O que será que estamos aprendendo com essas ciências novas? Com essas atenciosas investigações? Será que não estamos simplesmente reproduzindo a propaganda medieval dos mascates?

Talvez não seja assim tão simples. Mas será que as regras têm que ser tão primárias?

O que significa dizer que a propaganda varejista (varejeira?) de sempre é boa para atingir a classe C? Na pior das hipóteses significa que não temos absolutamente nada a aprender, porque essa é a propaganda que sempre se fez para os pobres infelizes que queremos como consumidores de nossas marcas.

Quantas pesquisas serão necessárias para entender que cada vez que usamos um filtro de classes (sociais), estamos sendo oportunistas, imediatistas e preconceituosos?

Propaganda deve falar para o coração e não para o bolso.

Quando Duveen, grande marchand, imprimiu um livro único com obras-de-arte na esperança de convencer o homem mais rico dos Estados Unidos a adquirir uma grande coleção, Ford teria respondido: “Para quê, se já tenho o livro?”