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Baile das Índias Orientais

To little Gary

No canto da esquerda, entre Balzac e Perrault, ele vivia, aprumado, mantendo a guarda sob o capacete vermelho, mãos na espingarda. É que ali, logo atrás do pequeno relicário de madeira, dormia seu tesouro encantado num cofre dourado. Marechal sempre controlara, anos a fio, sua curiosidade. Mas a disciplina de quartel não permitia tamanha indiscrição e o cofre permanecia selado. Ainda naquele pequeno espaço, onde acotovelavam-se outras histórias, residiam uma bala de vidro, um delgado caçador africano e a luneta de ópera.

No extremo oposto, apoiada em pesados volumes, Paloma soluçava.

E logo acima, três cavaleiros Jedi duelavam. Abaixo, um buda sereno contava as pétalas da flor de lótus que acolhia suas nádegas. Mas no edifício também residiam outros tantos hóspedes, esquecidos, solitários e estáticos. Lembranças, amuletos, e retratos, bibelôs quebrados, brinquedos enferrujados. Objetos tristes entre livros cerrados.

Uma noite. Era noite sim. Talvez fosse um ária famosa de Haydn que despertou. Fez-se também uma luz que, flutuando nas fantasias, espalhou a excepcional nova. À noroeste a agitação crescia. Um clima de arrumação reinava.

Uma fada comandava: “Poltronas enfileiradas, piano afinado, mesa posta, lustres brilhando de mil fogos do Olimpo. Vamos logo com isso, os convidados vão chegar”.

No centro, bem no centro, a velha preparava o baile.

Aos poucos, os vizinhos debruçaram-se pelas prateleiras. O que a velha estava aprontando?

Reclusa em sua fantasia de porcelana, a fada convidava para o baile da Companhia das Índias Orientais, com pompa e fartura. O salão era redondo, ornado de arabescos azuis e mil detalhes floridos em relevo dourado.

Marechal saiu de sua vigília, Paloma secou as lágrimas com o punho de pena. E com grande esforço, venceram os obstáculos da natureza rígida dos objetos. Arrastando-se por entre páginas amareladas e memórias náufragas, hipnotizou-lhes o encantamento.

Logo se viram, ao entrar no baile. Paloma, tímida, sob uma guirlanda azul; Marechal, imóvel, sob outras tais.

Sorriram, piscaram, enrubesceram. Aproximaram-se, cochicharam impronunciáveis resmungos, tocaram-se. E rodopiaram sem fim.

Amaram-se, uma noite para sempre, na grande estante errática da sala.

Babi e Cacá

A borboleta Babi apaixonou-se por Cacá. Foi uma paixão daquelas meio forçadas. É que a Babi já tinha passado da idade de casar; portanto, ficava enamorada com tudo o que voasse e tivesse pressa: colibris, abelhas e até helicópteros.

Era perto das onze da manhã e o sol escorregava sem convicção pelos eucaliptos. Babi caçava, tonta. Aqui, ali, acolá. De decepção em decepção das alturas, ela voava baixo. Foi quando avistou Cacá, um besouro verde, com tanta virilidade que fez Babi tremelicar até a ponta das asas e esquecer a modorna do coleóptero.

Babi, cada vez mais aflita com o atraso, posou-se, sem temores, no chifre de Cacá, e com graça lançou-lhe um “Oi, queridinho”.

Cacá, besouro experiente, fez-se de “não é comigo”.

Claro que Babi não percebeu o jogo e insistiu:

–    Calor, não?

Cacá ficou mudo e continuou sua caminhada pesada com Babi trepada no chifre.

–    Como você se chama, gato?

Finalmente Cacá respondeu sem entusiasmo.

–    Cacá
–    Eu, Babi. Calor, não?
–    É
–    Você faz o que na vida, bonitinho?
–    Sou coletor.

Babi ficou encantada com a profissão do seu novo amigo e, para enveredar a conversa em um terreno mais romântico, acrescentou:

–    Que interessante! Eu também! Coleto pólen, cores e juras de amor. E você?
–    Merda, bosta e cocô.

Babi não perdeu a classe e, engolindo um cagejado “interessante”, lançou-se em outro tema:

–    Você tem namorada?
–    Não.

Babi animou-se com a resposta e corou.

–    Você já teve alguma?
–    O que você acha?
–    Que não.
–    E esse chifre, então, o que é?
–    Um lindo chifre.
–    Lindo? Olha aqui dona borboleta, a minha namorada me colocou nesta situação, tá entendendo agora?

Babi não entendeu nada, mas assim mesmo insistiu.

–    Um chifre desse não é fácil de carregar, não é mesmo?
–    Não mesmo.
–    Você deve ser muito forte.

Cacá tocou-se com a sensibilidade de Babi.

–    Tem que ser sim.
–    Eu gosto de pessoas fortes.
–    Você não se importa?
–    Com o quê?
–    Que eu carregue um chifre desses?

Babi novamente não soube o que responder e simplesmente escorregou um: “Acho lindo”.

–    Mas dói. Dor de corno, sabe?
–    Imagino, Cacá.
–    Não é fácil, sabe, a maldita, a safada. Eu não esqueço, sabe?
–    Mas como poderia esquecer tanto peso, tanta dor?

Aconteceu assim e Cacá amou Babi que já amava Cacá.

E daí que os mal-entendidos eram subentendidos e os subentendidos, mal-entendidos?

Branco

O campo também estava branco, todo branco. Tão branco, tão branco, que nem dava para ver a fronteira entre o céu, a terra e as coisas todas entre eles.

Fazia muito frio naquele dia. Nem chovia, nem ventava, nem nada, mas o sol dava-se em tom de desafio. Quando ele despontou no horizonte, entre as duas árvores que se abraçam no leste, a claridade reverberou no gelo que aprisionava a casa. Uma bainha assimétrica enforcava-se ao longo do beiral, e as paredes escorregavam de luz.

Um fantasma cavalgava naquelas paragens e avistou o refúgio. Quando chegou próximo da cerca, apeou, acendeu um cachimbo e fumegou um bocado. Ele percorrera muitas léguas, mas não estava cansado. Só com um pouco de nostalgia ao avistar o naufrágio da mansão quase submersa.

Finalmente ele atravessou a porta e penetrou na casa. O espetáculo que se esculpiu diante de seus olhos encheu de lágrimas o peito do cavaleiro. Anos de abandono cristalizaram ambientes e memórias.

O fantasma percorreu o espaço, arrastando suas lembranças nos móveis, no piano que desafinara seus amores, no lustre bailarino de noites fulgurantes, nos tapetes que abafaram gozos proibidos.

E lá, na cômoda petrificada, diante da coleção de saudades, o conde penado deitou seu corpo oco. E chorou lágrimas de fantasma. Lágrimas sem calor.

Nas estepes de cristal que o sol empalidece, um lençol branco percorreu destroços frios. Tão brancos, tão brancos.

Ele e o resto

O mundo que ele via era todo remendado de arame quadriculado. A rua, as árvores da calçada, os passantes, os carros e outros animais. Mas, quando ele dava as costas para esse quebra-cabeças, a visão era coesa e uniforme. As plantas do jardim abraçavam-se em comunhão com a casa, o céu, a terra e tudo que ele via.

Cedo ele concluiu que, para cá da cerca, era ele e, para lá, era o resto e os outros. Sua consciência era assim delimitada pelas fronteiras da casa. Esta propriedade dava-lhe o direito de ir e vir livremente. E todos os dias ele aprendia os limites de seu ser: subir nas árvores não era possível, nem entrar na casa, quando chovia. Também não dava para voar no céu, nem morder os gatos que passeavam pelo telhado. Mas, em compensação, ele podia enterrar ossos, dormir no sol e também esgueirar-se pelas pernas que cruzavam seu caminho.

Alguns fenômenos, no entanto, eram estranhos à sua compreensão. Por exemplo, o carteiro que ora pertencia ao resto, ora a ele. Por isso, quando o cão foi invadido pela primeira vez por aquele corpo amarelo estranho, ele debateu-se todo, mordeu e conseguiu expulsá-lo. Ou, ainda, outra esquisitice da natureza ocorria quando alguém da casa saía para a rua e, de repente, era expelida de sua consciência para quadricular-se toda. Esses fluxos eram um mistério muito atraente. Por isso, ao primeiro sinal de interferência, campainha ou buzina, o animalzinho armava-se para lutar, latia, mordia o vento, pulava na cerca.

Foi assim quase a vida inteira: preservando a sua consciência e deixando o mundo, o resto e os outros, no seu devido lugar.

Só deu tudo errado, quando o cão escapou pelo portão. E foi, a partir de então, que ele soube que era possível transcender-se.

Era assustador e, por isso, ele sempre voltava.

Mas era bom demais e, um dia, foi-se o cãozinho ser um com o mundo, o resto e os outros para nunca mais voltar.

Eleflight

Era um elefante alado que adorava passear pelas trepadeiras do jardim.

Ora, mas ele tinha o defeito desnaturado de assumir a cor das corolas que chupava. E nos dias de primavera, quando as glicínias, lágrimas-de-cristo, jasmins borboletas e congéias floresciam, o elefante ficava alaranjado, vermelho, branco, rosa, ou arco-íris quando a fome era grande.

Mas esse era apenas um pequeno defeito. Com o tempo, todo mundo acabou se acostumando com a digestão cromática do elefante. E não é que ficava uma beleza o jardim com o Proboscídeo colorindo os ares?

No entanto, o bicho também tinha outros mais graves sinais de estranheza. Por exemplo, sua voz de soprano ligeiro que ele desembrulhava em vocalises agudíssimo. Os gafanhotos, coitados, davam pulos de susto! Sem falar do jabuti. Com tanta tensão sonora, ele ficara anoréxico.

Além dessas particularidades, o elefante era sonânbulo e atormentava as mariposas com suas incursões descontroladas nas arandelas do terraço. Porque, como se não bastasse, ele tinha espírito de porco e sempre rodava em volta da luz, no sentido contrário das bruxas. Elas perdiam o norte, coitadas.

Tinha mais coisa. Ele jogava críquete. Já imaginaram o formigacídio que isso causava? O elefante também era um livre-pensador, laico, antipapista. Não precisa falar da raiva dos louva-a-deus! Para finalizar, o animal se apaixonava diariamente. Até por moscas e aranhas ele caía de amores. Que coisa!

Era, como dizia seu Manuel, o jardineiro: um elefante atrapalha. Um elefante voador atrapalha muita gente.

Era uma vez

Era uma vez, uma princesa da Dinamarca que se apaixonou à revelia de toda a família, dos compromissos políticos e também da ciência. Mas foi daqueles amores que não se pode conter. Cada vez que o galgo branco saía no jardim, o coração da menina saltava como um feijão mexicano. O cão também não escondia sua devoção. Latia e se requebrava só de farejar o perfume de lavanda almiscarada da pequena.

Inocente em flor, Kátia confidenciava suas juras até nos corredores do palácio. Logo a notícia chegou aos ouvidos reais. Seu pai, já velho, pouco duvidou das intenções da princesa. Afinal, ele também tivera outrora uma grande paixão eqüina e amargara a pilhéria da corte por isso. A rainha também caíra de amores por um papagaio bem como todos da dinastia anterior por animais diversos. Era, pode-se dizer, comum, embora perigoso.

Contava-se, por exemplo, que o avô da princesa fora banido do reino, ao assumir sua incontrolável paixão por uma cabra montanhesa. O mesmo com sua esposa e o tamanduá real do zoológico. Era uma maldição ancestral e, para prevenir o futuro sombrio de Kátia, o rei encarcerou a pequena na torre do castelo de inverno, guardada por mudos guerreiros. Seu destino estava selado, até que o alvo de suas taquicardias fosse comprovadamente eliminado.

Quanto ao pobre galgo, ele fora levado ao cadafalso e, para não levantar suspeitas, a execução teria lugar numa província deserta e longínqua. No entanto, na hora de pisar no patíbulo, foram tantas as lágrimas do cão, que elas inundaram o coração enregelado do executor malvado. Assim, redimindo-se de mais um pecado, o carrasco degolou um pau de cedro que ele cuidadosamente esculpira à imagem do galgo.

O crédulo rei reconheceu a petrificada criatura como prova da morte canina e, com grande pompa, liberou a princesa.

Não fosse essa uma história, assim findaria o destino de Kátia. Mas, nesses tempos perdidos, as lendas tinham outro fim.

O cão apaixonado cavalgou anos pelas planícies brancas, décadas. A pequena princesa amargou um casamento humano durante anos, décadas. O rei um dia morreu, e o degolador virou monge.

Nas condolências reais, o drama findou por obra do carrasco, que anunciou sua desobediência. Nesse instante também o pequeno galgo ressurgiu. Ele jogou-se esquelético aos pés de Kátia, que desmaiou nas suas rendas enlutadas.

Não fosse essa uma história, aqui terminaria o idílio de Kátia e o galgo. Mas, nessas eras sem testemunho, as lendas não tinham fim.

O galgo, reanimado pelos pajens, declarou-se à Kátia, que pediu bênção aos sisudos cardeais. Só que não deu certo, por causa dos dogmas. O galgo foi levado aos ferros e Kátia, à Patagônia.

Sendo essa uma história, cá terminam as palavras. Sendo essa de amor, foram-se outras e muitas vezes mais, sem fim.

Causa de quê?

Marta achou tudo aquilo estranho, mas não esquentou. Mesmo quando ela acendeu um cigarro e nenhuma fumaça saía de sua boca, mesmo quando ela não se enxergou no espelho. Até de tomar banho e não sentir frio, nem ficar molhada, nem cheirosa. O sono estava aprontando com ela.

Já vestida e, apesar da saia cair, mesmo apertada na barriga, só ficou de fato espantada quando empurrou a porta da cozinha com os ombros e deu de cara com a rua.

Aquilo já não era porque dormira pouco ou mal. A cozinha tinha sumido. Assustada, ela fechou-se com pressa na sala e, sentada no chão, começou a raciocinar. Mas, apesar de todas as lógicas e desculpas, nada se encaixava. E muito menos a falta de sombra ao pé da jabuticabeira, o livro voando a poucos centímetros do chão e o sumiço de Gibi, seu gato.

Marta rezou um pouco. Gritou, mas nem som saiu e, quando cerrou os dentes, sua voz se pendurou no teto com letras enormes. Não é que nada acontecia. Acontecia, mas diferente.

É que o tempo se rebelara contra as causas e seus efeitos. Culpa da Marta: era só olhar, pensar ou querer, que tudo se atrapalhava. A observação mudava o efeito da causa. Era isso.

Uma hora, já noite, uma idéia despencou-lhe no colo. Sabe-se lá de onde. Simples, cristalina: “É só não provocar, que não acontece”. Foi o que Marta fez, e tudo entrou na normalidade. Só restava resolver o problema de como acordar sem causar nada.

Mas como não dava para dormir eternamente, no dia seguinte, tudo continuava estranho, porque causar era mais forte do que Marta. E os efeitos continuavam desordenados, voluntariosos, excêntricos.

Paciência.

Marta contentou-se com isso. Assim. Pelo resto da vida.

De casualidades em casualidades, ela sobreviveu. E o único efeito causal do resto de sua vida foi quando ela morreu.

Campo fértil

O espaço era vasto, descampado, uma árvore penada aqui, outra muito adiante, e a vegetação rasteira, queimada pelo sol, cobria toda a terra de espinhos e galhos retorcidos. O campo escondia-se deserto além dos subúrbios, como uma alma aprisionada.

Mas por vezes, nem tão raras, a área banida era tomada de grande agitação. Nesses dias, logo cedo, um vai-e-vém de operários sacolejava o ambiente, edificando magros patíbulos em horrenda simetria.

O país alternava guerras com epidemias, epidemias com loucuras, loucuras com sacrifícios, sacrifícios com guerras, havia séculos. E, pontuando o rotineiro ciclo, os monarcas faxinavam, com vinganças exemplares, inimigos, desenganados e mártires. Duzentas, trezentas, certa feita mais de mil forcas espetavam o solo do campo de San Genaro.

O populacho, raivoso ou submisso, celebrava esses mórbidos eventos com barulho e fé. De frente para o nobre palanque das autoridades, ele aguardava, febrilmente, o início das festividades. E, quando o cortejo de carruagens ferradas finalmente despontava do portão da cidade, em reverência, um enorme silêncio tronava na última morada dos enforcados.

Tudo era muito rápido e, numa ensaiada engenharia, os condenados eram alçados aos cadafalsos, trajados de toscos mantos e trazendo no pescoço suas acusações. Traição infiel ou fornicação adúltera, a sentença era a mesma. A morte. O santo pároco discursava nesse momento, lamentando a escolha errada dos coitados e imprecando o perdão divino. Em mágica sincronia então, os inimigos eram arremessados das cordas. Em instantes entregavam a alma, sem lágrimas. O povo assim saciado, retornava aliviado e amnésico. Ficava o campo novamente nu, balançando seus campanários de carne no vento.

O que ninguém via, o que nem suspeitava o povo, no entanto, era do troco dos mortos, tão certo quanto a lavada consciência dos vivos.

O sêmen escorria das pernas dos enforcados e abeberava o solo. Duzentas, trezentas, certa feita mais de mil ejaculações davam a vida.

E dias depois, mandrágoras furavam a terra dura, espalhando no campo sua muda herança. E dias depois desses, homúnculos saltavam da terra dura, espalhando no mundo sua degradante vingança.

Floresta assassinada

Soou volumoso, persistente, profundo, monódico. Uma única nota a ricochetear nas copas. O caçador anunciou assim o final da caçada.

Aos poucos o tropel de cavaleiros perfurou a floresta, manchando o plácido cenário de pinceladas rubras. Alguns cantavam, outros discutiam, um mar de cachorros se esparramava pelo campo e, mais atrás, uma horda de serviçais transportava o fabuloso butim. De carne feridas, sanguinolentas, doídas.

E quando descansou das febres bárbaras, um ponto silencioso, solene, fúnebre emudeceu a mata. Nem lamento de órfãos, nem descabelos, nem desesperos.

Assim, depois da carnificina ignorante, a morte suspende o tempo, o medo paralisa.

Quando a dor é enorme, gigantesca, do tamanho de uma floresta inteira, chorar é vão desperdício. Rezar, arrazoar e morrer, também.

Ou talvez cantar um infinito suspiro. Para continuar a viver, por falta de opção.

Aquele abraço

Ele me deu um abraço muito forte. Quase me amassou inteiro. Foi uma sensação estranha, quase perdi o fôlego e, para sobreviver, abri a boca em desespero, sobre seu peito peludo. Finalmente ele me soltou e reencontrei o solo com a ponta dos pés.

Foi tudo tão de repente e tão gigantesco, que, quando olhei para ele, não tive muito tempo de raciocinar e tirar conclusões. Nas minhas narinas, aquele cheiro acre me embriagou.

Afastei-me do urso e voltei alquebrado para o carro.  Devagar. E, quando finalmente me sentei no banco, comecei a tremer da cabeça aos pés. Ali me dei conta do perigo, retrocedi no tempo e quase desmaiei.

Mas aos poucos fui me acalmando. Afinal eu tinha sobrevivido ao ataque do urso. Agora era só voltar para casa, e, quem sabe, contar para os amigos aquela fantástica experiência.

Enquanto eu estava no meio dessas prosaicas conjecturas, ele reapareceu a meu lado, toque-toque no vidro. O urso negro estava lá. Dei um grito, ele urrou. Me escondi embaixo do volante, ele atrás de uma árvore.

E o jogo continuou. Eu me recuperei e ele reapareceu, toque-toque no vidro. Gritei e ele fugiu. E de novo, uma, duas, três vezes.

Finalmente me cansei daquele jogo e, quando ele toque-toque da quarta vez, abri a porta e desci.
Que fosse o que Deus quisesse.

O bicho me encarou, eu também. Ele abriu a boca, sorri para ele. Ele dobrou o focinho sobre o peito, eu fiz uma careta com as sobrancelhas. Ele avançou uma pata, eu, a mão direita. Dei um passo em sua direção, ele se ajoelhou. Deitou-se e eu sentei. Ficamos assim, longos minutos, olhando um no olho do outro.

Bem que a gente se deu. Urso é muito gente, sabe?

Dias depois eu voltei à floresta. Lá estava ele, com Dona Ursa e a molecada, me aguardando para um piquenique de mel e salmão.

Azaléia

Era um frufru barroco despontando da moita. No primeiro dia, foram só as anáguas lavadas; no segundo, as línguas pontudas, e no terceiro, todas as dobras carmesins. O buquê de azaléia dialogava assim com outras murchas épocas. Com o tempo antigo em que marcava a cerca ou delineava a alameda. Com o mais remoto ainda, quando fora plantado, numa manhã sem vaidade.

Com o passar dos anos, ele ficou mais prolixo, mais saudoso. E de sua explosão exalavam-se histórias e mais histórias. Das  chuvas temporãs, da carruagem a amputar-lhe os membros, da recepção nupcial do duque, do abandono nas trevas, do renascimento cheio de podas, dos muitos beijos e juras disfarçados.

Pois, após as longas estações, recolhido em disciplina, ele resplandescia um dia de maio, às vezes de abril. Era sua vez de acumular suas destiladas observações. Todas estavam lá, sempre as mesmas, acumuladas ou renovadas. E as novas. Invariavelmente ele explodia e tagarelava de um fôlego só, para quem quisesse ouvir.

Maria saiu para ornar, naquele dia, o altar, e Maria nem aí, ao cortar rico e longo ramalhete. Mas os santos pobres da paróquia choraram das histórias que a azaléia anciã desfiou.

Atrasada

Acocorada à margem, ela arremessava pedras chatas no rio. Elas ricocheteavam uma, duas, vitória!, três vezes antes de serem engolidas.

Mas o que Sofia não sabia era que lá embaixo a turma de tilápias e acarás jogava beisebol com seu passatempo. O jogo foi duro, longo e terminou empatado, pau a pau.

Mais tarde, já muito atrasada na hora de voltar para casa, a menina não resistia e trepava na amoreira da praça. E com maestria ela tingia os dedinhos.

Só que Sofia nem desconfiava que, do alto, o sabiá desafinava quando avistava o topete loiro por cima da cerca. Em sincronia, então, as frutas riam de encher as bochechas de sangue.

A camisa de Sofia ficava toda salpicada. “Mancha de amora trai a demora”, rimava a canção. Mas a menina desajeitada antes piorava a evidência na pia.

Daí, o sapo ficava bêbado com as gotas doces que aspergiam a moita. E de alegria, saía em pula-pula até a cozinha, para confraternizar com Max. O gato levava um susto e corria  em disparada, escorregando no mármore.

Sofia sempre estava atrasada para o almoço. Ia ter bronca. E que bronca com a blusa assim!

Foi, então, que Max deu o alarme na casa. Deslizando a pança enorme, ele entalou debaixo do armário. E todos vieram ver a arte. Até o pai levantou da poltrona, para salvar o animal.

Foi justo aí que Sofia entrou de ladinho, sem ninguém ver. Nem seu atraso, nem a blusa toda traída de primavera.

Espelho

O espelho era grande e tronava sobre a penteadeira. Sua moldura de dourada pátina era um naufrágio.

Desde tempos antigos ele acompanhava o mundo em perspectiva geométrica. De seu ponto em fuga, ele refletia, sem pudores, épocas e modas, vivos e espectros. Sem vergonha, mas mudo.

No entanto, apesar de tudo compartilhar, de tudo devassar, o velho espelho era uma pessoa muito solitária. Ele era amnésico. Não lembrava de nada, nada, nada. Nem do dia, nem da noite. Nem de sua existência.

Por isso, ele sonhava. E os menores estímulos eram férteis: cartões-postais amarelados, sorrisos imortais, pequenas frestas na porta, até mesmo sua própria imagem convexa que reverberava nas pomas lustrosas da cama. O velho espelho cansado não ligava para o passado.

Por isso, ele sonhava. E era com as ruínas quebradas na paisagem árida, o campo de lavanda, o sol cambaleando atrás do porto. Com o casamento campestre, o cãozinho adormecido no colo, a pescaria na quermesse da aldeia. Com o salão de veludo vermelho, a mesa posta, a árvore de natal brilhando.

Por isso, ele sonhava também com o reflexo do reflexo do reflexo das pomas da cama. Ele sonhava com um grande e velho espelho que tronava sobre uma penteadeira.

Feijões, lingüiças e o resto

Era um prato de feijão branco com algumas pelancas afogadas.

Boiando na travessa, feijões, lingüiças, nacos de penosa e uma folha de louro atropelavam-se acaloradamente. Mas, para quem via de cima, por entre os odores aromáticos, o ambiente era harmônico.

De volta ao prato, o mais gordo dos grãos, elevou a voz e, colocando todo o bafo para fora, gritou um canto marcial. Alguns ingênuos feijões acompanhavam em coro. E, quando ele finalmente resfolegou, não faltaram vaias e risadas. Quem liderava a pilhéria era uma rodela vermelha de lingüiça. O velho general feculante ainda se agitava de indignação, mas a massa ingrata deu de ombros para suas medalhas e mofadas conquistas. A lingüiça era uma palhaça. Sua pantomima era hilária e, apesar de por vezes vulgar, o plenário inteiro gargalhava.

Jacquin, o guarda-florestal da província, sua esposa, Marceline, e duas bufas crianças sentaram-se à mesa. “Deus é bom, Deus é grande. Agradecemos, Senhor, pelo pão, pela paz – e avistando a travessa fumegante – pela paz e por essa maravilha aí.”

Aqui em baixo, os humores amainaram-se rapidamente. As penosas arrepiaram-se, os feijões rebolaram e até as irresponsáveis lingüiças soltaram gritos de pavor. “Maravilha”, ele havia dito “maravilha”! E mais uma vez, sem ser convidado, foi o veterano militar que tomou a palavra: “Meu povo, minha gente, maravilha é o nome. É disso que ele nos chamou. “Feijões, lingüiças e penosas, uni-vos e que o Todo-Poderoso nos guie” e numa bravata vingativa, acrescentou: “Palhaçada não põe mesa, uni-vos!”. Boas de palanque, as linguiças teorizavam ironias maliciosas. Bom de pelanca, o general distribuía ordens e autoridade.

Mas os partidos rapidamente se dissiparam, porque a família já engolia um “amém” protocolar. Marceline levantou-se e, com sua voz de falsete anunciou, o início dos trabalhos.

Foi guloso o ataque. Jacquin comeu três pratos, Marceline, um e os fedelhos obesos até lamberam os pratos. Foi passiva a defesa. O general morreu heroicamente na garganta do guarda- florestal, as penosas suicidaram-se e as lingüiças discursaram, mas foram devoradas sem piedade.

Após o almoço, enquanto a família resfastelava-se preguiçosamente na varanda, lá na mesa, na travessa deserta, a folha de louro, bardo venerando, cantarolava, com sua lira, a inoperância das políticas do cassoulet.

Assassinato suicida

Ele despertou do coma. Parecia que não comia havia muito tempo. E como um cego, Sysop tateou à sua volta.

Lá no fundo de sua inconsciência, as memórias de outras experiências vegetavam. Mas o ciclo renovava-se. Um sutil arrepio de vida iniciava-se ali.

Sysop carregava um vazio que parecia infinito. Era muito pesado comportar o oco. Ele precisava comer, alimentar-se, preencher aquele nada.

A garganta da Maria era escura, fria, úmida. Catarrenta, pelancuda, reverberante, como um pântano, uma gruta, uma concha.

Mas foi ali que Sysop, um vírus excomungado, renasceu. Foi ali também que a Maria, gripada, começou a queixar-se. Logo a intimidade virou promíscua: Sysop multiplicou-se, porque fértil era a garganta da moça.

Foram dias de orgia para Sysop. Comendo e procriando. Dias de pena para Maria. Tossindo e escarrando.

Uma tarde, a siesta de Sysop foi interrompida, abruptamente. Uma enxurada letal, amarelada e fedorenta, despencou, afogando a obesidade parasita do vírus.

Foi melhor assim, porque a moça respirou com o último suspiro do vírus assassino. Foi melhor assim, porque o último suspiro da Maria asfixiaria Sysop, o vírus suicida.

Filomena despertou abusada

Um raio de sol escorregou pela testa e furou as pálpebras.

– Jacinto! Jacinto!

Jacinto arranhou a porta e entrou precedido de uma servil reverência.

– Pois não, madame.

A loira estava recostada em suas almofadas de pena, com a maquilagem mal-lavada escorrendo pelas bochechas, e os cachos em desalinho. “Terremoto escala seis no Museu de Cera”, pensou Jacinto.

– Meu espelho, meu espelho!

De lá, Filomena agitava seus braços bufantes e de cá, os pés gordinhos jaziam como bebês saciados na coberta de cashemere. “Que mania de repetir duas vezes as ordens. Gaga ela, e surdo eu”, incomodou-se o mordomo.

– Que horas são? Tenho compromissos?

A condessa constatava o desastre da ressaca. Ajeitava uma ruga aqui, esticava uma madeixa lá. “Quando o prato está uma pia, não adianta colocar açúcar depois”, filosofou o empregado, enquanto abria silenciosamente as pesadas cortinas do boudoir de madame.

– Sim, madame. O coiffeur já chegou, a esteticista e seu instrutor de ginástica rítmica, também. O banho está pronto. Tafetá ou mousseline hoje, condessa?

Filomena empoleirou-se nas plumas. Como ela gostava desse momento mágico! Era a coroação de sua indispensável importância no universo. “Pode vir, pode vir, me bate, me humilha, me chama de capacho, pulga, verme, salmonela perniciosa”.

– Minhas panóplias de esgrima e equitação, já Jacinto. Já, eu disse, Jacinto.

O séquito rumou para o parque do castelo, para acompanhar as performances esportivas da dama. Até o cabeleireiro tagarela, o esteticista andrógeno, a ginasta romena aposentada. “Vai chover.”

– Meu penteado!

As alamedas eram uma paleta ocre e sépia e como se tentassem uma última súplica, os carvalhos fremiam seus galhos nus no céu grávido. “Muita escolha mata a escolha”, lamentou Jacinto, a caminho da herborização na estufa de bromélias.

Como velar-se do casamento

Plínio saltou para fora da água. Ele se espreguiçou longamente, esticando as nadadeiras, mas tomou um susto enorme. Pesada, por cima da linha do horizonte, uma tempestade enegrecia a manhã.

O honrado bacalhau não acreditou e repetiu a ornamentação várias vezes. Era verão e no verão não chovia. E mais: ele estava noivo e chegara o dia de suas núpcias. Além disso, tinha o cruzeiro austral que coroaria sua lua-de-mel e Marcelina, tão sensível, tão nervosa, tão inocente, tão desprotegida! Adiar? Nem pensar. Contar para ela, pior ainda! Transferir o local para uma caverna protegida, talvez fosse uma idéia. Mas e as flores, o bolo, os chapéus das damas especialmente confeccionados para a garden-party originalmente planejada? Isso era impossível também.

Só lhe restava uma alternativa. E foi assim, cogitando, que Plínio afundou e nadou rapidamente para o salão de beleza. Marcelina esperava notícias da previsão do tempo que definiria qual dos véus usaria, se o longo, vaporoso para correntes leves ou o curto, rendado em caso de ondulações sutis do mar.

Tempestades são inimigas dos véus, todos sabem.

E se ele dissesse simplesmente que o véu lhe parecia desnecessário, enaltecendo, assim, sua nobre testa, suas escamas prateadas, sua tez? Ou talvez ela pudesse amarrar a organza com a tiara de algas polinésias que Plínio lhe havia dado na celebração de seu noivado? Quem sabe não ficasse melhor ainda encimar a cabeça de Marcelina com um chapéu? Ou grampos? Transformar o véu em turbante à moda do golfo pérsico? Quem sabe um nó cigano? Como convencer Marcelina? E pior, seus cabeleireiros, maquiadores, estilistas e a mãe? A mãe, aquele arenque empalhado, aquela moréia desdentada, histérica!

Plínio estava desesperado, aflito, tresloucado.

Mas, afinal, para que véu? Para que o protocolo? Para que tanta cerimônia? Para que festa, convidados mil, bacalhaus de companhia, coral de sereias? Esponjas e anêmonas enfeitando o cortejo? Sogra fedida e sogro e cunhados e primos e cardumes de familiares? Para quê?

Para que véu de noiva? Para que véu? Para que casamento, véu, noiva, por Netuno?

Para velar a honra da noiva, Plínio velou-lhe a tempestade. E, velando a tempestade, velou-se-lhe o raciocínio.

Com que roupa eu vou?

Talvez apenas porque a escolha tivesse sido tímida ou inocente, mas Caio não estava satisfeito. Voltou para o quarto para uma nova tentativa. Tinha que ser com aquela calça, novinha e cara. Afinal de contas, ela originara a excepcional mudança de aparência requerida. Mas a camisa cinza acinturada dava-lhe ares de aprumo exagerado. O sapato, embora adequado para o clima, era uma repetição que certamente seria notada.

Escarafunchando na pilha de camisetas, Caio foi jogando algumas eleitas na cama, seguindo motivações ora de aparência, ora de afeto ou de combinação. E, de frente para o espelho, experimentou todas. Mas algumas mostraram-se alegres demais, apertadas ou soltas, outras apresentavam um caimento triste, uma estampa cheia de subentendidos ou simplesmente uma dobra feia nas costas, um ombro deslocado, uma gola amarfanhada. Sobraram três que lhe pareciam adequadas, embora apenas uma delas refletia seu estado de espírito blasé chic, ou melhor, o jeito como ele queria parecer naquele dia.

Caio tentou por cima da calça, mas o comprimento era estranho. Ele ensaiou uns movimentos, mas ele não tinha engordado, ele tinha certeza. Só podia ser a camiseta, que ele tratou de enfiar por dentro da cintura. Melhorou muito, porém era arrumado demais. Ia ficar evidente que ele passara horas se enfeitando, e isso não combinava com o humor distraído, metafórico, poético que ele queria se impor. Puxou então os lados, encostando a gola no pescoço e soltando ligeiramente alguns centímetros de dentro da calça. O resultado agradou-lhe, principalmente sob alguns ângulos que ele trataria de privilegiar no decorrer do dia, enfatizando sua indolência aparente.

Brinca como eu brinco

Era uma vez quando eu fui lá para a casa do Luisinho.

Eu nem queria ir no começo porque eu estava brincando, mas fui. Dei a mão para ele e vi que ele nem olhou para mim. O Luisinho tinha muitos brinquedos que eu não tinha. Eu sabia que ele detestava dividir comigo os tratores e os caminhões e os carros e os castelos e os postos de gasolina e as gruas e os soldados também. Daí, como sempre, primeiro ele ficou lá no canto dele e eu na porta, olhando para o chão. Mas aos poucos, eu até estava acostumado, ele ia chegando porque no fundo, no fundo, ele queria brincar comigo. Teve uma vez que a gente chorou na hora que tive que ir embora. Eu também, quando o Luisinho vem na minha casa, fico com medo dele brincar melhor com meus brinquedos do que eu. Não gosto disso, fico com vontade de tirar as coisas da mão dele. Mas é só no começo. Um dia achei que ele tinha levado a minha espada preferida. E demorou muito porque mesmo depois que encontrei ela debaixo do armário, tive muito trabalho. Ela não queria brincar comigo porque o Luisinho tinha mais jeito de cavaleiro medieval do que eu. Era a mesma coisa com a grua dele porque o Luisinho nem sabia direito fazer ela girar. Depois a gente esquece tudo e brinca juntos.

Mas daquela vez, o Luisinho estava demorando muito para me chamar. De vez em quando, eu olhava para ele e fazia um passo para chegar mais perto. Daí, ele virava de costas um pouco. Achei estranho. Perto de mim, tinha umas placas daquelas coloridas que a gente monta, sabe? Sentei no chão e devagarzinho, eu brinquei de colocar uma em cima da outra, uma em cima da outra. De qualquer jeito, sem tomar cuidado, para não cair tudo. Então caía toda hora, fazendo barulho. Mas o Luisinho nem olhava para trás. Continuei assim e achei que podia fazer uma torre bem alta. Tinha que ser com cuidado. Caiu mais umas duas vezes e depois consegui até que ela ficasse quase do meu tamanho, ajoelhado. Levantei e continuei subindo com as placas. Ficou bem grande. Mas o Luisinho nem ligou para minha brincadeira. Como tinha ainda muita placa e tinha também uns cubos e mais umas arruelas e parafusos e tiras de ferro e legos, um monte de legos, e todas as coisas que podiam servir para minha construção, fui subindo mais. Até peguei uma cadeira, para ficar mais alto ainda. Quando cheguei quase lá no teto do quarto do Luisinho, desci e fiquei de frente para minha torre muito satisfeito.

Mas como o Luisinho continuou brincando com suas figurinhas, dei o maior chute na minha torre gigante. Aí também era demais. Então, ele se virou e riu. Normalmente eu teria ficado bravo com ele, mas nem liguei e ri também. Rimos muito, muito muito.

E brincamos a tarde toda depois. E até chorei, quando tive que voltar para casa. O Luisinho é meu amigo mesmo. Mesmo quando ele brinca melhor com meus brinquedos que eu. Mesmo quando eu brinco melhor com seus brinquedos que ele.

Além da cordilheira

No topo da cordilheira vivia uma população de águias de colarinho branco. O refúgio ventoso dos pássaros era solitário e apenas temperado pelas idas e vindas à planície, em busca de notícias e alimentos. Todos os dias, as rapinadoras desciam para caçar e observar. Ao entardecer, quando o sol escorrega por detrás dos paredões brancos, machos e fêmeas retornam para prover alegria e sustento.

O cair da tarde  convivial é uma tradição naquela espécie. Ao aproximar-se do ninho, as águias sobrevoam calmamente o local, para arrefecer o ânimo esfomeado das proles. Pousam, então, e, com um íntimo carinho, depositam na boca de cada filho a ração diária. Depois de acalmados, os rebentos adormecem ao sabor das histórias sobrevoadas pelos pais: um festa camponesa de cores e danças, uma  procissão florida, uma tosa de ovelhas e tantos flagrantes de abraços furtivos nos bosques, de brincadeiras proibidas, de enlaces e amores humanos. Quando finalmente a lua levita no horizonte, a cordilheira sossobra nos céus austrais.

Era assim também no ninho de Quetzoquil, o ancião das cordilheiras. Do alto de sua idade extraordinária, o lar do velho era o mais fértil em imaginação. É que, com o passar do tempo, Quetzoquil já não caçava, não via e não se acasalava com a mesma competência. Mas, para compensar seu cansaço, suas histórias eram as mais loucas, as mais ricas, as mais verdadeiramente falsas, as mais falsamente reais.

Um dia, na véspera de sua transcendência, Quetzoquil fez um mágico relato. As águias de todas as idades agruparam-se à sua volta, numa respeitosa e curiosa comunhão.

O velho começou esquadrinhando em todos os matizes a imensidão amassada da Terra. Sua homogeneidade disfarçada, seus infinitos cenários. Em seguida, a águia falou dos homens, dos animais, das plantas e de todas as coisas que povoam o planeta. Falou também das coisas não coisas, dos espíritos, das almas e dos humores do vento. E dos deuses atmosféricos, dos subterrâneos, dos adorados totens e amuletos sagrados.

Quando o ancião terminou seu longo desabafo, as águias, ébrias de saber, chacoalharam extasiadamente as asas, agradecidas e emocionadas.

Foi, então, que Quetzoquil retomou a palavra e, num último suspiro, declarou que era chegado seu tempo de partir, de mergulhar enfim, para além das histórias, para além do sonho e das ilusórias aparências da vida.

Seu tempo de naufragar na morte, crua, real e sem imaginação.